O Coruja/I/VIII: diferenças entre revisões

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Partiram de novo para a fazenda,, deixando atrás de si a solene gratidão do colégio pelo catálogo da biblioteca, que "eles" concluíram e ofereceram ao estabelecimento; e deixando também por parte de seus condiscípulos um rastro de ódios, ódios que serviram aliás durante o ano para melhor os aproximar e unir, acabando por constituí-los em uma espécie de ser único, do qual um era a fantasia e outro o senso prático.
 
Foi então que lhes chegou a notícia da morte do padre Estêvão; sucumbira inesperadamente a um aneurisma, do qual nunca desconfiou sequer, e, no testamento, legara o pouco que tinha a uma comadre e àquela criada de mau gênio que o servira.
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Era um dia um sacerdote, que pregava a caridade.
 
"-— A caridade, dizia ele, deve ser exercida sempre e apesar de tudo".
 
Vai um caboclo, que o ouvira atentamente, perguntou-lhe depois do sermão:
 
"-— Ó sôr padre, é caridade enterrar os mortos?
 
"-— Decerto, respondeu o pregador; é uma obra de misericórdia".
 
E o caboclo saiu, matou uma raposa e foi esperar o sacerdote na estrada; quando sentiu que ele se aproximava, pôs a raposa no meio do caminho e escondeu-se no mato. O padre, ao topar com ela e observando que estava morta, ajoelhou-se, e cavou no chão, enterrou-a e, depois de dizer uma sentença religiosa, seguiu o seu caminho. O caboclo, assim que o viu pelas costas, correu à sepultura, sacou a raposa e, ganhando por um atalho, foi mais adiante e jogou com ela ao meio da estrada, antes que o pregador tivesse tempo de chegar; este, porém, não tardou muito e, ao ver de novo uma raposa no caminho, fez o que fizera da primeira vez, enterrou-a, mas sem se ajoelhar, nem repetir a sua máxima latina. O caboclo deixou-o seguir, tomou de novo da raposa e foi depô-la mais para diante na estrada; o padre ao topá-la, enterrou-a já de mau humor e prosseguiu receoso de encontrar outras raposas mortas. Todavia, o caboclo não estava ainda satisfeito e repetiu a brincadeira; mas, desta vez, o padre perdeu de todo a paciência e, tomando a raposa 'pelo rabo, lançou-a ao mato com estas palavras: "Leve o diabo tanta raposa morta!" Então o caboclo lhe apareceu e disse: "- Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!" Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido, era natural que o protetor se enfastiasse...
 
"— Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!" Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido, era natural que o protetor se enfastiasse...
— Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar..
 
— Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar...
 
— Decerto, porque tudo cansa neste mundo.
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— És injusto e, se meu pai e minha mãe te ouvissem, ficariam bravos comigo.
 
— Ah! eles não me ouvirão, podes ficar tranqüilotranquilo. Só a ti falo porque nós nos entendemos e bem sabes que não sou ingrato.
 
— Meus pais te compreendem tão bem ou melhor do que eu.
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Três quartos de hora depois chegavam a um grande cercado de acapu, a cuja frente corria um riacho quase escondido entre a vegetação.
 
Teobaldo parou, disse ao amigo que esperasse um pouco por ele e, trancandotrançando pelos barrancos do riacho, foi ter à cerca e soltou um prolongado assobio.
 
A este sinal, com a presteza de quem está de alcatéia, surgiu logo uma rapariguita de uns treze anos, forte, corada e bonitinha.
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E voltando-se para o alfaiate:
 
— Também não sei como o senhor tem ânimo de apresentar uniauma obra desta ordem... Está uma porcaria!
 
— Perdão! respondeu o alfaiate, dispondo-se logo a modificar a roupa de André. Vossemecê poderia dizer isso se a sua roupa não saísse boa, e essa está que é uma luva, mas, quanto à deste moço, nem só é a primeira vez que trabalho para ele, como não podia acreditar que houvesse alguém com as pernas tão curtas e os braços tão compridos. Parece um macaco!
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— Bem, bem, veja lá o que é preciso fazer na roupa, e deixe-se de comparações! observou Teobaldo, defronte do espelho, a endireitar-se, muito satisfeito com a sua pessoa.
 
Para esse dia estava reservado ao André uma surpresa muito agradável: D. Geminiana, tendo com o casamento de separar-se. do sobrinho, queria deixar a este uma lembrança qualquer e mandou buscar da corte um bom relógio de ouro e a respectiva corrente. A encomenda chegou essa noite, Teobaldo recebeu o seu presente da tia e, ato contínuo, tomou do antigo relógio e da cadeia que até aqui usara, e deu tudo ao Coruja.
 
Seja dito que um dos sonhos dourados de André era possuir um relógio; desejava-o, não como objeto de luxo, mas como objeto de utilidade imediata.