Com o correr do seguinte ano, a dedicação do Coruja pelo amigo parecia crescer de instante para instante. Uma leoa não defenderia os seus cachorros com mais amor e mais zelos.
Já não se contentava André com resguardá-lo das ameaças e malquerenças dos colegas, como exigia também de todos que lhe rendessem a mesma estima e o mesmo respeito, que lhe tributava ele.
Teobaldo, vadio como era por natureza, quase nunca estudava as lições, e quando não lhe valiam os recursos do seu "proverbial talento" ou da sua astúcia, tinha de copiá-las quatro, cinco ou seis vezes, conforme fosse o castigo. Então se revoltava e queria protestar contra a sentença dos mestres, mas o Coruja puxava-lhe a ponta do casaco e dizia-lhe baixinho:
— Não te importes, não te importes, que eu me encarrego de tudo...
E, com efeito, mal chegava a hora do recreio, enterrava-se André no quarto de estudo e, imitando a letra do amigo, aprontava as cópias; feliz com aquele trabalho, como se o descanso do outro fosse o seu melhor prazer.
Muita vez perdeu com isso grande parte da noite, e no dia seguinte ainda encontrava tempo para tirar os significados da lição do amigo, para resolver-lhe os problemas de álgebra e fazer-lhe os temas de latim.
Uma vez, em que o Coruja se apresentou nas aulas sem haver preparado as próprias lições, o professor exclamou com surpresa.
— Oh! Pois o senhor, seu André, pois o senhor não traz a sua lição sabida!... Então que diabo fez durante o tempo de estudo o senhor que não larga os livros?...
Entretanto, o outro Teobaldo, estava perfeitamente preparado.
Esta dedicação fanática de Coruja pelo amigo crescia com o desenvolvimento de ambos; mas em Teobaldo a graça, o espírito e a sagacidade eram o que mais florescia; enquanto que no outro eram os músculos, o bom senso, a força de vontade e o férreo e inquebrantável amor pelo trabalho.
Agora, o pequeno do padre já emitia opinião sobre várias coisas, já conversava; tudo isso, porém, era só com o seu amigo íntimo, com o seu Teobaldo. Parecia até que, à proporção que abria o coração para este, mais o fechava para os estranhos.
Quando terminou o ano, o filho do barão havia crescido meio palmo e o Coruja engrossado outro tanto; aquele se fizera ainda mais esbelto, mais distinto e mais formoso; este ainda mais pesado, mais insociável e mais feio.
Afinal, assim tão completados, formavam entre os seus companheiros uma força irresistível. Teobaldo era a palavra cintilante e ferina, era a temeridade e o arrojo; o outro era o braço em ação, a força e o peso do músculo. Um provocava e o outro resistia.
Um era o florete aristocrático, fino e aguçado, que só tem a serventia de palitar os dentes do orgulho; o outro era o malho grosseiro e sólido, que tanto serve para esmagar, corno serve para construir.
Partiram de novo para a fazenda, deixando atrás de si a solene gratidão do colégio pelo catálogo da biblioteca, que "eles" concluíram e ofereceram ao estabelecimento; e deixando também por parte de seus condiscípulos um rastro de ódios, ódios que serviram aliás durante o ano para melhor os aproximar e unir, acabando por constituí-los em uma espécie de ser único, do qual um era a fantasia e outro o senso prático.
Foi então que lhes chegou a notícia da morte do padre Estêvão; sucumbira inesperadamente a um aneurisma, do qual nunca desconfiou sequer, e, no testamento, legara o pouco que tinha a uma comadre e àquela criada de mau gênio que o servira.
Quanto ao Coruja, nem uma referência, nem um conselho ao menos; o que fazia crer fosse escrito o testamento antes da adoção do pequeno e nunca mais reformado.
Esta circunstância da morte do padre levou André a pensar em si, a pensar na sua vida e no seu destino. Interrogou o passado e o futuro e, pela primeira vez, encarou de frente a posição que ocupava ali, naquela fazenda do Barão do Palmar, esse protetor tão do acaso como o primeiro que tivera ele. Então notou que na sua curta e triste existência passara de uma para outra mão, que nem um fardo inútil e sem dono.
— Que será de mim? perguntava o infeliz a si mesmo nas suas longas horas de concentração. Mas o amigo, com a prematuridade intuitiva do seu espírito, saltava-lhe em frente, antecipando razões, como se adivinhara todos os pensamentos de André.
— Em que tanto pensas tu, meu urso? Perguntava-lhe ele, quando se achavam a sós, no bosque; já ontem à noite não quiseste aparecer na sala e cada vez mais te escondes de todos, nem como se fosse um criminoso.
— E quem sabe lá?
— Quê? Se és um criminoso?...
— Sim. A necessidade, quando chega a um certo ponto de impertinência, que mais é senão um crime? Que direito tenho eu de incomodar os outros?
— Exageras.
— Não. A caridade é muito fácil de ser exercida e chega a ser até consoladora e divertida, mas só enquanto não se converte em maçada.
— Não te compreendo...
— Pois eu me farei compreender. Vou contar-te uma parábola, que o defunto padre Estêvão repetia constantemente.
— Venha a história.
— Senta-te aí nesse tronco de árvore e escuta:
Era um dia um sacerdote, que pregava a caridade.
"— A caridade, dizia ele, deve ser exercida sempre e apesar de tudo".
Vai um caboclo, que o ouvira atentamente, perguntou-lhe depois do sermão:
"— Ó sôr padre, é caridade enterrar os mortos?
"— Decerto, respondeu o pregador; é uma obra de misericórdia".
E o caboclo saiu, matou uma raposa e foi esperar o sacerdote na estrada; quando sentiu que ele se aproximava, pôs a raposa no meio do caminho e escondeu-se no mato. O padre, ao topar com ela e observando que estava morta, ajoelhou-se, e cavou no chão, enterrou-a e, depois de dizer uma sentença religiosa, seguiu o seu caminho. O caboclo, assim que o viu pelas costas, correu à sepultura, sacou a raposa e, ganhando por um atalho, foi mais adiante e jogou com ela ao meio da estrada, antes que o pregador tivesse tempo de chegar; este, porém, não tardou muito e, ao ver de novo uma raposa no caminho, fez o que fizera da primeira vez, enterrou-a, mas sem se ajoelhar, nem repetir a sua máxima latina. O caboclo deixou-o seguir, tomou de novo da raposa e foi depô-la mais para diante na estrada; o padre ao topá-la, enterrou-a já de mau humor e prosseguiu receoso de encontrar outras raposas mortas. Todavia, o caboclo não estava ainda satisfeito e repetiu a brincadeira; mas, desta vez, o padre perdeu de todo a paciência e, tomando a raposa 'pelo rabo, lançou-a ao mato com estas palavras: "Leve o diabo tanta raposa morta!" Então o caboclo lhe apareceu e disse:
"— Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!" Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido, era natural que o protetor se enfastiasse...
— Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar...
— Decerto, porque tudo cansa neste mundo.
— És injusto e, se meu pai e minha mãe te ouvissem, ficariam bravos comigo.
— Ah! eles não me ouvirão, podes ficar tranquilo. Só a ti falo porque nós nos entendemos e bem sabes que não sou ingrato.
— Meus pais te compreendem tão bem ou melhor do que eu.
— Mas não me perdoam, como tu perdoas, o fato de ser eu tão feio, tão antipático e tão desengraçado...
— Ora! aí vens tu com a cantiga do costume. Deixa-te disso e vamos dar um passeio à rocinha do João da Cinta.
— Outra vez? Que diabo vamos lá fazer agora?
— Convidá-lo e mais a família para virem ao casamento da tia Geminiana.
— É sempre no dia 15 o casamento?
— Infalivelmente, e o alfaiate deve trazer-nos amanhã os nossos fatos novos. Mas, anda, vamos!
Coruja ergueu-se do lugar onde estava assentado e acompanhou o amigo, que já se havia posto a caminho.
Três quartos de hora depois chegavam a um grande cercado de acapu, a cuja frente corria um riacho quase escondido entre a vegetação.
Teobaldo parou, disse ao amigo que esperasse um pouco por ele e, trançando pelos barrancos do riacho, foi ter à cerca e soltou um prolongado assobio.
A este sinal, com a presteza de quem está de alcatéia, surgiu logo uma rapariguita de uns treze anos, forte, corada e bonitinha.
— Ah! disse ela, vindo encostar-se às estacas.
— Não esperavas por mim?... perguntou o rapaz. A pequena respondeu, entregando-lhe um ramilhete que trazia à sorrelfa. E perguntou depois como passava de saúde o Sr. Teobaldo.
— Com saudades tuas... disse o moço, tomando-lhe uma das mãos.
— Mentiroso..
— Não acreditas?
Ela encolheu os ombros, a sorrir, de olhos baixos.
— Dize a teu pai que não deixe de ir com vocês ao casamento de tia Gemi. Vim convidá-los.
— Entre. Fale com mamãe. Ela está aí.
— Não; é bastante que lhe dês o recado.
E mudando de tom:
— Não faltes, hein, Joaninha?...
— Se me levarem, eu vou.
— Vá, que lhe tenho uma coisa a dizer...
Teobaldo havia conseguido passar o braço por entre duas estacas da cerca e segurava a cintura da rapariga; deu-lhe um beijo; ela o retribuiu com outro de igual sonoridade, fazendo-se muito vermelha e fugindo logo em seguida.
Este namoro, inocente de parte a parte, era o primeiro de Teobaldo. Nascera naquelas férias um dia em que ele, por acaso, encontrou a pequena a lavar no riacho em frente da casa as roupinhas do irmão mais novo. Desde então ia vê-la todas as tardes antes do jantar; falavam-se às vezes à beira do córrego, outras vezes com a cerca de permeio. De certa época em diante ela o esperava com um ramilhete; conversavam durante um quarto de hora e despediam-se com um beijo.
O Coruja foi logo o depositário do segredo; Teobaldo contou-lhe a sua aventura e exigiu que ele o acompanhasse todos os dias à rocinha do João da Cinta, quedando-se a certa distância durante o tempo da entrevista.
André consentiu, sem mostrar o mais ligeiro espanto pelo que lhe revoltara o amigo.
Ainda inocente e deveras casto, não conhecia os meandros do amor e julgava dos outros corações pelo seu, que resumia toda a gama do afeto e da ternura em uma nota única. Não calculava a que podia chegar aquele inocente namoro originado entre o filho do Sr. Barão do Palmar e uma sertaneja, que nem ler sabia.
No dia seguinte o Coruja passeava sozinho por uma alameda sua favorita, quando o Caetano lhe foi dizer que o Sr. Teobaldo o mandava chamar e ficava à espera dele no quarto.
André correu ao encontro do amigo.
— Chegaram as nossas roupas! exclamou este ao vê-lo.
E sua fisionomia rejubilava com essas palavras.
— Ah! fez o outro, quase com indiferença.
— Experimentemos.
— Há tempo.
O alfaiate observou que não podia demorar-se muito.
— Deve estar direito... respondeu André. Pode deixar.
— É bom sempre ver... insistiu o alfaiate.
— É indispensável! acrescentou Teobaldo.
André não teve remédio senão experimentar a roupa. Era um fato preto, fato de luto, que mal deixava perceber o colarinho da camisa.
E ele, pequeno, grosso, cabeçudo, e queixo saliente, os olhos fundos, com as suas bossas superciliais principiando a desenvolver-se pelo hábito da meditação; ele, enfardelado naquela roupa muito séria, toda abotoada, só precisava de uns óculos para ser uma infantil caricatura do velho Thiers.
Contudo, e apesar dos conselhos que lhe dava o amigo para mandar diminuir três dedos no comprimento do paletó e tirar um pouco de pano das costas, achou que estava magnífica.
— Ao menos, disse Teobaldo, que acabava de se vestir, manda encurtar essas calças, rapaz! e soltar a bainha dessas mangas!
— Então boas... teimou o Coruja, esforçando-se por fazer chegar as mangas até às mãos.
— Parece que te meteste nas calças de teu avô.
E voltando-se para o alfaiate:
— Também não sei como o senhor tem ânimo de apresentar uma obra desta ordem... Está uma porcaria!
— Perdão! respondeu o alfaiate, dispondo-se logo a modificar a roupa de André. Vossemecê poderia dizer isso se a sua roupa não saísse boa, e essa está que é uma luva, mas, quanto à deste moço, nem só é a primeira vez que trabalho para ele, como não podia acreditar que houvesse alguém com as pernas tão curtas e os braços tão compridos. Parece um macaco!
— Bem, bem, veja lá o que é preciso fazer na roupa, e deixe-se de comparações! observou Teobaldo, defronte do espelho, a endireitar-se, muito satisfeito com a sua pessoa.
Para esse dia estava reservado ao André uma surpresa muito agradável: D. Geminiana, tendo com o casamento de separar-se do sobrinho, queria deixar a este uma lembrança qualquer e mandou buscar da corte um bom relógio de ouro e a respectiva corrente. A encomenda chegou essa noite, Teobaldo recebeu o seu presente da tia e, ato contínuo, tomou do antigo relógio e da cadeia que até aqui usara, e deu tudo ao Coruja.
Seja dito que um dos sonhos dourados de André era possuir um relógio; desejava-o, não como objeto de luxo, mas como objeto de utilidade imediata.
— Poder contar o tempo pelas horas, pelos minutos e pelos segundos!...
Isto para aquele espírito metódico e regrado era nada menos do que uma felicidade.