O Coruja/I/VIII: diferenças entre revisões

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|obra=[[O Coruja]]
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Teobaldo, vadio como era por natureza, quase nunca estudava as lições, e quando não lhe valiam os recursos do seu "proverbial talento" ou da sua astúcia, tinha de copiâ-las quatro, cinco ou seis vezes, conforme fosse o castigo. Então se revoltava e queria protestar contra a sentença dos mestres, mas o Coruja puxava-lhe a ponta do casaco e dizia-lhe baixinho:
 
— Não te importes, não te importes, que eu me encarrego de tudo...
 
E, com efeito, mal chegava a hora do recreio, enterrava-se André no quarto de estudo e, imitando a letra do amigo, aprontava as cópias; feliz com aquele trabalho, como se o descanso do outro fosse o seu melhor prazer.
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Uma vez, em que o Coruja se apresentou nas aulas sem haver preparado as próprias lições, o professor exclamou com surpresa.
 
— Oh! Pois o senhor, seu André, pois o senhor não traz a sua lição sabida!... Então que diabo fez durante o tempo de estudo o senhor que não larga os livros?...
 
Entretanto, o outro Teobaldo, estava perfeitamente preparado.
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Esta circunstância da morte do padre levou André a pensar em si, a pensar na sua vida e no seu destino. Interrogou o passado e o futuro e, pela primeira vez, encarou de frente a posição que ocupava ali, naquela fazenda do Barão do Palmar, esse protetor tão do acaso como o primeiro que tivera ele. Então notou que na sua curta e triste existência passara de uma para outra mão, que nem um fardo inútil e sem dono.
 
— Que será de mim? perguntava o infeliz a si mesmo nas suas longas horas de concentração. Mas o amigo, com a prematuridade intuitiva do seu espírito, saltava-lhe em frente, antecipando razões, como se adivinhara todos os pensamentos de André.
 
— Em que tanto pensas tu, meu urso? Perguntava-lhe ele, quando se achavam a sós, no bosque; já ontem à noite não quiseste aparecer na sala e cada vez mais te escondes de todos, nem como se fosse um criminoso.
 
— E quem sabe lá?
 
— Quê? Se és um criminoso?...
 
— Sim. A necessidade, quando chega a um certo ponto de impertinência, que mais é senão um crime? Que direito tenho eu de incomodar os outros?
 
— Exageras.
 
— Não. A caridade é muito fácil de ser exercida e chega a ser até consoladora e divertida, mas só enquanto não se converte em maçada.
 
— Não te compreendo...
 
— Pois eu me farei compreender. Vou contar-te uma parábola, que o defunto padre Estêvão repetia constantemente.
 
— Venha a história.
 
— Senta-te aí nesse tronco de árvore e escuta:
 
Era um dia um sacerdote, que pregava a caridade.
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E o caboclo saiu, matou uma raposa e foi esperar o sacerdote na estrada; quando sentiu que ele se aproximava, pôs a raposa no meio do caminho e escondeu-se no mato. O padre, ao topar com ela e observando que estava morta, ajoelhou-se, e cavou no chão, enterrou-a e, depois de dizer uma sentença religiosa, seguiu o seu caminho. O caboclo, assim que o viu pelas costas, correu à sepultura, sacou a raposa e, ganhando por um atalho, foi mais adiante e jogou com ela ao meio da estrada, antes que o pregador tivesse tempo de chegar; este, porém, não tardou muito e, ao ver de novo uma raposa no caminho, fez o que fizera da primeira vez, enterrou-a, mas sem se ajoelhar, nem repetir a sua máxima latina. O caboclo deixou-o seguir, tomou de novo da raposa e foi depô-la mais para diante na estrada; o padre ao topá-la, enterrou-a já de mau humor e prosseguiu receoso de encontrar outras raposas mortas. Todavia, o caboclo não estava ainda satisfeito e repetiu a brincadeira; mas, desta vez, o padre perdeu de todo a paciência e, tomando a raposa 'pelo rabo, lançou-a ao mato com estas palavras: "Leve o diabo tanta raposa morta!" Então o caboclo lhe apareceu e disse: "- Já vejo que enterrar um morto é obra de caridade, mas fazer o mesmo quatro ou cinco vezes é nada menos do que uma formidável estopada!" Ao que o sacerdote respondeu que, desde que houvesse abuso da parte do protegido, era natural que o protetor se enfastiasse...
 
— Queres dizer com isso, observou Teobaldo, que já estamos fartos de te aturar..
 
— Decerto, porque tudo cansa neste mundo.
 
— És injusto e, se meu pai e minha mãe te ouvissem, ficariam bravos comigo.
 
— Ah! eles não me ouvirão, podes ficar tranqüilo. Só a ti falo porque nós nos entendemos e bem sabes que não sou ingrato.
 
— Meus pais te compreendem tão bem ou melhor do que eu.
 
— Mas não me perdoam, como tu perdoas, o fato de ser eu tão feio, tão antipático e tão desengraçado...
 
— Ora! aí vens tu com a cantiga do costume. Deixa-te disso e vamos dar um passeio à rocinha do João da Cinta.
 
— Outra vez? Que diabo vamos lá fazer agora?
 
— Convidá-lo e mais a família para virem ao casamento da tia Geminiana.
 
— É sempre no dia 15 o casamento?
 
— Infalivelmente, e o alfaiate deve trazer-nos amanhã os nossos fatos novos. Mas, anda, vamos!
 
Coruja ergueu-se do lugar onde estava assentado e acompanhou o amigo, que já se havia posto a caminho.
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A este sinal, com a presteza de quem está de alcatéia, surgiu logo uma rapariguita de uns treze anos, forte, corada e bonitinha.
 
— Ah! disse ela, vindo encostar-se às estacas.
 
— Não esperavas por mim?... perguntou o rapaz. A pequena respondeu, entregando-lhe um ramilhete que trazia à sorrelfa. E perguntou depois como passava de saúde o Sr. Teobaldo.
 
— Com saudades tuas... disse o moço, tomando-lhe uma das mãos.
 
— Mentiroso..
 
— Não acreditas?
 
Ela encolheu os ombros, a sorrir, de olhos baixos.
 
— Dize a teu pai que não deixe de ir com vocês ao casamento de tia Gemi. Vim convidá-los.
 
— Entre. Fale com mamãe. Ela está aí.
 
— Não; é bastante que lhe dês o recado.
 
E mudando de tom:
 
— Não faltes, hein, Joaninha?...
 
— Se me levarem, eu vou.
 
— Vá, que lhe tenho uma coisa a dizer...
 
Teobaldo havia conseguido passar o braço por entre duas estacas da cerca e segurava a cintura da rapariga; deu-lhe um beijo; ela o retribuiu com outro de igual sonoridade, fazendo-se muito vermelha e fugindo logo em seguida.
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André correu ao encontro do amigo.
 
— Chegaram as nossas roupas! exclamou este ao vê-lo.
 
E sua fisionomia rejubilava com essas palavras.
 
— Ah! fez o outro, quase com indiferença.
 
— Experimentemos.
 
— Há tempo.
 
O alfaiate observou que não podia demorar-se muito.
 
— Deve estar direito... respondeu André. Pode deixar.
 
— É bom sempre ver... insistiu o alfaiate.
 
— É indispensável! acrescentou Teobaldo.
 
André não teve remédio senão experimentar a roupa. Era um fato preto, fato de luto, que mal deixava perceber o colarinho da camisa.
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Contudo, e apesar dos conselhos que lhe dava o amigo para mandar diminuir três dedos no comprimento do paletó e tirar um pouco de pano das costas, achou que estava magnífica.
 
— Ao menos, disse Teobaldo, que acabava de se vestir, manda encurtar essas calças, rapaz! e soltar a bainha dessas mangas!
 
— Então boas... teimou o Coruja, esforçando-se por fazer chegar as mangas até às mãos.
 
— Parece que te meteste nas calças de teu avô.
 
E voltando-se para o alfaiate:
 
— Também não sei como o senhor tem ânimo de apresentar unia obra desta ordem... Está uma porcaria!
 
— Perdão! respondeu o alfaiate, dispondo-se logo a modificar a roupa de André. Vossemecê poderia dizer isso se a sua roupa não saísse boa, e essa está que é uma luva, mas, quanto à deste moço, nem só é a primeira vez que trabalho para ele, como não podia acreditar que houvesse alguém com as pernas tão curtas e os braços tão compridos. Parece um macaco!
 
— Bem, bem, veja lá o que é preciso fazer na roupa, e deixe-se de comparações! observou Teobaldo, defronte do espelho, a endireitar-se, muito satisfeito com a sua pessoa.
 
Para esse dia estava reservado ao André uma surpresa muito agradável: D. Geminiana, tendo com o casamento de separar-se. do sobrinho, queria deixar a este uma lembrança qualquer e mandou buscar da corte um bom relógio de ouro e a respectiva corrente. A encomenda chegou essa noite, Teobaldo recebeu o seu presente da tia e, ato contínuo, tomou do antigo relógio e da cadeia que até aqui usara, e deu tudo ao Coruja.
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Seja dito que um dos sonhos dourados de André era possuir um relógio; desejava-o, não como objeto de luxo, mas como objeto de utilidade imediata.
 
— Poder contar o tempo pelas horas, pelos minutos e pelos segundos!...
 
Isto para aquele espírito metódico e regrado era nada menos do que uma felicidade.