Era por uma dessas tardes em que o azul do céo oriental — é pallido e saudoso; em que o rumor do vento nas vergas — é monotono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio — é queixoso e tetrico.
Das bandas do occidente o sol se atufava nos mares «como um brigue em chammas»... e daquelle vasto incendio do crepusculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.
Além... os cerros de granito dessa formosa terra de Guanabara, vacillantes, a luctarem com a onda invasora de azul que descia das alturas.... recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.
Longe, inda mais longe... os cimos fantasticos da serra dos Orgãos embebiam-se na distancia, sumiam-se, abysmavara-se n′uma especie de naufragio celeste.
Só e triste, encostado á borda do navio, eu seguia com os olhos aquelle esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se á forma vacillante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus arraiaes da mocidade.
É que lá dessas terras do sul, para onde eu levára o fogo de todos os enthusiasmos, o viço de todas as illusões, os meus vinte annos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de gloria e de futuro.... é que dessas terras do sul, onde eu penetrára «como o moço Raphael subindo as escadas do Vaticano»... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por unica ambição — a esperança de repouso em minha patria.
Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céos, — a solidão que subia do oceano, — recordei-me de vós, ó meus amigos!
E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira onde vagára; nem sequer a lembrança desta alma, que comvosco e por vós vivêra e sentira, gemêra e cantára...
Ó espiritos errantes sobre a terra! Ó vélas enfunadas sobre os mares!... Vós bem sabeis quanto sois ephemeros... — passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.
E quando — comediantes do infinito — vos obumbrais nos bastidores do abysmo, o que resta de vós?
— Uma esteira de espumas... — flôres perdidas na vasta indifferença do oceano. — Um punhado de versos... — espumas fluctuantes no dorso féro da vida!...
E o que são na verdade estes meus cantos?...
Como as espumas que nascem do mar e do céo, da vaga e do vento, elles são filhos da musa — este sopro do alto; do coração — este pelago da alma.
E como as espumas são, ás vezes, a flora sombria da tempestade, elles por vezes rebentaram ao estalar fatidico do latego da desgraça.
E como tambem o aljofre dourado das espumas reflecte as opalas rutilantes do arco-iris, elles por acaso reflectiram o prisma fantastico da ventura ou do enthusiasmo — estes signos brilhantes da alliança de Deus com a juventude!
Mas, como as espumas fluctuantes levam, boiando nas solidões marinhas a lagrima saudosa do marujo... possam elles, ó meus amigos! — ephemeros filhos de minh′alma — levar uma lembrança de mim ás vossas plagas!...
S. Salvador — Fevereiro de 1870.
Castro Alves.
- Notas da edição (1913)
- «Era por ama dessas tardes.. etc.»
Era por uma dessas noites vagarosas do inverno, em que o brilho de um céo sem lua é vivo e tremulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluto e tetrico.
(Eurico. — Cap. 4º.)