Sobre este vasto assunto, os trabalhos de altíssimas intelectualidades, como Teófilo Braga, Leite de Vasconcelos, Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho, etc., mostram claramente o valor que tem para o estudo psicológico dos povos o conhecimento das suas tradições.
É pelo estudo comparativo das tradições de todos os povos que a etnologia poderá precisar a marcha da mentalidade humana através os largos séculos que a separam do seu alvorecer.
Assim como no estudo do desenvolvimento embrionário assistimos à grandiosa cena da marcha da vida animal sobre a terra, vendo no curto espaço de meses a reprodução exata dessa evolução que levou milénios, assim no estudo das tradições populares, abrangendo todas as épocas e todos os povos, assistimos ao desenvolvimento da vida intelectual da humanidade.
«O homem, diz Oliveira Martins, é a imagem individualizada da humanidade e da sua história.»
Vastíssimo campo de estudo onde só os espíritos privilegiados podem alar-se.
Faltando-nos essa força intelectual, limitamos os nossos esforços a auxiliar esses altos espíritos, levando-lhes até à sua mesa de trabalho, tudo o que possamos coligir na tradição popular.
Eis o fim deste livro.
Capítulo I
editarSonhos e agouros
editarNa imaginação ainda embrionária, do homem de outros tempos, devia produzir-se uma impressão forte, ao recordar as diversas peripécias de um sonho. Depois das rudes fadigas, a que o homem primitivo se entregava, vinha-lhe a necessidade do descanso e ia repousar; e, dormindo, sabia que tinha cortadas todas as relações com a vida usual, e com o mundo exterior.
Era então que vinha o sonho.
Coisas fantásticas, mas na aparência tão reais, lhe povoavam o cérebro, que era com verdadeiro assombro que via, depois de acordado, a falsidade dessas cenas.
Então sentia em si duas vidas: a do dia, e a da noite.
A primeira, julgava ele subordinar à sua vontade; a segunda não.
Este facto levou-o a crer que a vida noturna lhe era imposta e dirigida por um ser estranho a si; e como sentia não poder influir nos sonhos de outrem, calculou que nenhum homem influiria nos seus; portanto esse ser era invisível e tão poderoso que ele, destro e forte na luta pela vida, sentia-se impotente e completamente desarmado para reagir.
Criado o ser sobrenatural e poderoso a dirigir-lhe a vida noturna, era lógico tomar os sonhos por presságios, e tentar o estudo da sua misteriosa linguagem, em suas fantásticas e caprichosas evoluções.
E séculos não bastaram para desfazer essa crença, que ainda vive entre nós, e tem crentes em todas as classes sociais.
Se o sonho não tem hoje a importância que teria nessas épocas longínquas, contudo há quem fique incomodado, e à espera de dissabores, porque sonhou com uma ave qualquer.
«Sonhar com penas traz desgostos» (penas).
Há tantos, e tão acérrimos crentes, que ainda hoje se publicam dicionários da linguagem dos sonhos!
A linguagem dos sonhos é figurada de três maneiras:
É inversa, dedutiva ou convencional.
- Sonhar com riquezas é miséria.
- Sonhar com imundícies, riquezas.
- Sonhar com morte — sinal de vida — etc. pertencem à forma inversa.
No sentido dedutivo temos:
- Sonhar com água — lágrimas.
- Sonhar com penas — pesares (penas).
- Com agulhas — intrigas.
É convencional quando se diz:
- Sonhar que se tira um dente, é morte de parente.
Quando se sonha com uma pessoa já falecida, é sinal de que a sua alma não está na glória, e anda a pedir orações aos seus parentes e conhecidos de outrora.
É mister rezar logo um padre nosso e uma ave maria por intenção do morto.
A lista de decifrações é extensíssima, como todos sabem pelos livros que tratam da especialidade, e para o presente caso, nenhum interesse oferece, pois tem por base a classificação já apontada.
Filia-se nos sonhos a crença nos agouros.
Tiveram a mesa origem e juntas atravessaram séculos até nossos dias.
São vulgares e numerosos os agouros, e também, como acontece com os sonhos, atingem todas as classes.
Há indivíduos de reconhecida ilustração, que não estão livres deste prejuízo.
A terça e sexta-feira, são dias maus para encetar trabalhos, viagens, negócios, etc.
— À terça e à sexta não te cases nem embarques.
O azeite entornado, um vidro que se parta, um besoiro (Bombus terrestres, ou muscorum) que entre, zumbindo, pela janela, são maus presságios.
O vinho entornado é alegria.
A entrada em qualquer parte deve efetuar-se com o pé direito, sob pena de mau êxito.