Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Gemidos de Arte

Gemidos de Arte


I


Esta desillusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos mattos,
Magro, roendo a substancia córnea da unha.

Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentio Parphéno
Quando arrancou os olhos de Dyonisos!

Em gyro e em redemoinho em mim caminham
Rispidas maguas estranguladoras,
Taes quaes, nos fortes fulcros, as tesouras
Bronzeas, tambem gyram e redemoinham.

Os pães — filhos legitimos dos trigos —
Nutrem a geração do Odio e da Guerra...
Os cachorros anonymos da terra
São talvez os meus unicos amigos!

Ah! Porque desgraçada contingencia
Á hispida aresta saxea aspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adhesão, não prendi minha existencia?!

Porque Jehovah, maior do que Laplace
Não fez cahir o tumulo de Plinio
Por sobre todo o meu raciocinio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!

Pois minha Mãe tão cheia assim daquelles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Porque me deu consciencia dos meus actos
Para eu me arrepender de todos elles?!

Quizera antes, mordendo glabros talos,
Nabuchodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada agua do charco,
Dormir na mangedoura com os cavallos!

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! escapar de ser abôrto!
Sahir de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pae que é morto!

E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martyrios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarías!

Barulho de mandibulas e abdomens!
E vem-me com um despreso por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Christo
Para sacrificar-me pelos homens!

Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa lingua alguma
O oleo rançoso da saliva humana!

Uma região sem nodoas e sem lixos,
Subtrahida á hediondez de infimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!

Outras constellações e outros espaços
Em que, no agúdo gráu da ultima crise,
O braço do ladrão se paralyse
E a mão da meretriz caia aos pedaços!

 

II

 

O sol agora é de um fulgor compacto,
E eu vou andando, cheio de chamusco,
Com a flexibilidade de um mollusco,
Humido, pegajoso e unctuoso ao tacto!

Reunam-se em rebellião ardente e accesa
Todas as minhas forças emotivas
E armem ciladas como cobras vivas
Para despedaçar minha tristeza!

O sol de cima espiando a flora moça
Arda, fustigue, queime, corte, morda!
Deleito a vista na verdura gorda
Que nas hastes delgadas se balouça!

Avisto o vulto das sombrias granjas
Perdidas no alto... Nos terrenos baixos,
Das laranjeiras eu admiro os cachos
E a ampla circumferencia das laranjas.

Ladra furiosa a tribu dos podengos.
Olhando para as pútridas charnécas
Grita o exercito avulso das marrécas
Na humida cópa dos bambús verdoengos.

Um passaro alvo artifice da teia
De um ninho, salta, no árdego trabalho,
De arvore em arvore e de galho em galho,
Com a rapidez duma semi-colcheia.

Em grandes semi-circulos aduncos,
Entrançados, pelo ar, largando pellos,
Vôam á similhança de cabellos
Os chicotes finissimos dos juncos.

Os ventos vagabundos batem, bolem
Nas arvores. O ar cheira. A terra cheira
E a alma dos vegetaes rebenta inteira
De todos os corpusculos do pollen.

A camara nupcial de cada ovario
Se abre. No chão collêa a lagartixa.
Por toda a parte a seiva bruta esguicha
Num extravasamento involuntario,

Eu, depois de morrer, depois de tanta
Tristeza, quero, em vez do nome — Augusto,
Possuir ahi o nome dum arbusto
Qualquer ou de qualquer obscura planta!

 

III

 

Pelo accidentadissimo caminho
Faisca o sol. Nédios, batendo a cauda,
Urram os bois. O céo lembra uma lauda
Do mais incorruptivel pergaminho.

Uma atmosphera má de incommoda hulha
Abafa o ambiente. O aziago ar morto a morte
Féde. O ardente calor da areia forte
Racha-me os pés como se fosse agulha.

Não sei que subterranea e atra voz rouca,
Por saibros e por cem concavos valles,
Como pela avenida das Mappales,
Me arrasta á casa do finado Tôca!

Todas as tardes a esta casa venho.
Aqui, outr’ora, sem conchego nobre,
Viveu, sentiu e amou este homem pobre
Que carregava cannas para o engenho!

Nos outros tempos e nas outras eras,
Quantas flôres! Agora, em vez de flôres,
Os musgos, como exoticos pintores,
Pintam caretas verdes nas tapéras.

Na bruta dispersão de vitreos cacos,
A dura luz do sol resplandecente,
Tropega e antiga, uma parede doente
Mostra a cara medonha dos buracos.

O cupim negro bróca o ámago fino
Do tecto. E traça trombas de elephantes
Com as circumvoluções extravagantes
Do seu complicadissimo intestino.

O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amortoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas dos esconderijos
Estão olhando aquellas coisas mortas!

Fico a pensar no Espirito disperso
Que unindo a pedra ao gneiss e a arvore á creança,
Como um annel enorme de alliança,
Une todas as coisas do Universo!

E assim pensando, com a cabeça em brazas
Ante a fatalidade que me opprime,
Julgo ver este Espirito sublime,
Chamando-me do sol com as suas azas!

Gosto do sol ignivomo e iracundo
Como o reptil gosta quando se molha
E na atra escuridão do ares, olha
Melancolicamente para o mundo!

Essa alegria immaterialisada,
Que por vezes me absorve, é o obolo obscuro,
É o pedaço já pôdre de pão duro
Que o miseravel recebeu na estrada!

Não são os cinco mil milhões de francos
Que a Allemanha pediu a Jules Favre.
É o dinheiro coberto de azinhavre
Que o escravo ganha, trabalhando aos brancos!

Seja este sol meu ultimo consolo;
E o espirito infeliz que em mim se encarna
Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,
Só, com a misericordia de um tijolo!...

Tudo emfim a mesma órbita percorre
E as boccas vão beber o mesmo leite
A lamparina quando falta o azeite
Morre, da mesma fórma que o homem morre.

Subito, arrebentando a horrenda calma,
Grito, e se grito é para que meu grito
Seja a revelação deste Infinito
Que eu trago encarcerado na minh’alma!

Sol brazileiro! Queima-me os destroços!
Quero assistir, aqui, sem pae que me ame,
De pé, á luz da consciencia infame,
A carbonisação dos proprios ossos!

 
Pau d’Arco,—4-5-1907.