Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Tristezas de um Quarto-Minguante
Tristesas de um
Quarto Minguante
Quarto-Minguante! E, embora a lua o aclare,
Este Engenho Pau d’Arco é muito triste.
Nos engenhos da varzea não existe
Talvez um outro que se lhe equipare!
Do observatorio em que eu estou situado
A lua magra, quando a noite cresce,
Vista, atravéz do vidro azul, parece
Um parallelipipedo quebrado!
O somno esmaga o encéphalo do povo.
Tenho 3OO kilos no epigastro.
Dóe-me a cabeça. Agora a cara do astro
Lembra a metade de uma casca de ovo.
Diabo! não ser mais tempo de milagre!
Para que esta oppressão desappareça
Vou amarrar um panno na cabeça,
Molhar a minha fronte com vinagre.
Augmentam-se-me então os grandes medos.
O hemispherio lunar se ergue e se abaixa
Num desenvolvimento de borracha,
Variando á acção mechanica dos dedos;
Vai-me crescendo a aberração do sonho.
Morde-me os nervos o desejo doudo
De dissolver-me, de enterrar-me todo
Naquelle semi-circulo medonho!
Mas tudo isto é illusão de minha parte!
Quem sabe se não é porque não saio
Desde que, 6ª-feira, 3 de Maio,
Eu escrevi os meus Gemidos de Arte?!
A lampada a estirar linguas vermelhas
Lambe o ar. No bruto horror que me arrebata,
Como um degenerado psychopatha
Eis-me a contar o numero das telhas!
— Uma, duas, tres, quatro. E aos tombos, tonta
Sinto a cabeça e a conta perco; e, em summa,
A conta recomeço, em ancias: — Uma.
Mas novamente eis-me a perder a conta!
Succede a uma tontura outra tontura.
— Estarei morto?! E a esta pergunta extranha
Responde a Vida — aquella grande aranha
Que anda tecendo a minha desventura! —
A luz do quarto diminuindo o brilho
Segue todas as phases de um eclypse.
Começo a ver coisas de Apocalypse
No triangulo escaleno do ladrilho!
Deito-me emfim. Ponho o chapéu num gancho.
Cinco lençóes balançam numa corda,
Mas aquillo mortalhas me recorda,
E o amontoamento dos lençòes desmancho.
Vêm-me á imaginação sonhos dementes.
Acho-me, por exemplo, numa festa.
Tomba uma torre sobre a minha testa,
Caem-me de uma só vez todos os dentes!
Então dois ossos roidos me assombraram.
— «Por ventura haverá quem queira roer-nos?!
Os vermes já não querem mais comer-nos
E os formigueiros já nos desprezaram».
Figuras espectraes de boccas tronchas
Tornam-me o pesadelo duradouro.
Chóro e quero beber a agua do chôro
Com as mãos dispostas á feição de conchas.
Tal uma planta aquatica submersa,
Ante-gozando as ultimas delicias
Mergulho as mãos — vis raizes adventicias —
No algodão quente de um tapete persa.
Por muito tempo rólo no tapete.
Subito me ergo. A lua é morta. Um frio
Cahe sobre o meu estomago vasio
Como se fosse um cópo de sorvete!
A alta frialdade me insensibilisa;
O suor me ensopa. Meu tormento é infindo...
Minha familia ainda està dormindo
E eu não posso pedir outra camisa!
Abro a janella. Elevam-se fumaças
Do engenho enorme. A luz fulge abundante
E em vez do sepulchral Quarto-Minguante
Vi que era o sol batendo nas vidraças.
Pelos respiratorios tenues tubos
Dos póros vegetaes, no acto da entréga
Do matto verde, a terra resfolèga
Estrumada, feliz, cheia de adubos.
Concavo, o ceu, radiante e estriado, observa
A universal creação. Broncos e feios,
Varios reptis cortam os campos, cheios
Dos tenros tinhorões e da humida herva.
Babujada por baixos beiços brutos,
No humus feraz, hieratica, se ostenta
A monarchia da arvore opulenta
Que dá aos homens o obolo dos fructos.
De mim diverso, rigido e de rastos
Com a solidez do tegumento sujo
Sulca, em diametro, o sólo um caramujo
Naturalmente pelos mata-pastos.
Entretanto, passei o dia inquieto,
A ouvir, nestes bucólicos retiros,
Toda a salva fatal de 21 tiros
Que festejou os funeraes de Hamleto!
Ah! Minha ruina é peor do que a de Thebas!
Quizera ser, numa ultima cobiça,
A fatia esponjosa de carniça
Que os corvos comem sobre as jurubebas!
Porque, longe do pão com que me nutres
Nesta hora, oh! Vida, em que a soffrer me exhortas
Eu estaria como as bestas mortas
Pendurado no bico dos abutres!
Pau d’Arco, Maio — 1907