Eu (Augusto dos Anjos, 1912)/Uma Noite no Cairo

Uma Noite no Cairo


Noite no Egypto. O ceu claro e profundo
Fulgúra. A rua é triste. A Lua Cheia
Está sinistra, e sobre a paz do mundo
A alma dos Pharaós anda e vagueia.

Os mastins negros vão ladrando á lua...
O Cairo é de uma formosura archaica.
No angulo mais recondito da rua
Passa cantando uma mulher hebraica.

O Egypto é sempre assim quando anoitece!
Ás vezes, das pyramides o quêdo
E atro perfil, exposto ao luar, parece
Uma sombria interjeição de medo!

Como um contraste áquelles miseréres,
Num kiosque em festa a alegre turba grita,
E dentro dançam homens e mulheres
Numa agglomeracão cosmopolita,

Tonto do vinho, um saltimbanco da Asia,
Convulso e rôto, no apogêu da furia,
Executando evoluções de razzia
Solta um brado epileptico de injuria!

Em derredor duma ampla mesa preta
— Ultima nota do connubio infando —
Veem-se dez jogadores de roleta
Fumando, discutindo, conversando.

Resplandece a celeste superficie.
Dorme soturna a natureza sabia...
Em baixo, na mais proxima planicie,
Pasta um cavallo esplendido da Arabia.

Vaga no espaço um sylpho solitario.
Trôam kinnors! Depois tudo é tranquillo...
Apenas, como um velho stradivario,
Soluça toda a noite a agua do Nilo!