"Sublimado ao grau de presbítero... quan­ta brandura, qual caridade fosse a sua o amor de todos lho demonstrava."

Álvaro de Córdova, Vida de Santo Eló­gio, c. 1.


No recôncavo da baía que se encurva ao oeste do Calpe, Cartéia, a filha dos fenícios, mira ao longe as correntes rápidas do estreito que divide a Europa da África. Opulenta outrora, os seus estaleiros tinham sido famosos antes da conquista romana, mas apenas restam vestígios deles; as suas muralhas haviam sido extensas e sólidas, mas jazem desmoronadas; os seus edifícios foram cheios de magnificência, mas caíram em ruínas; a sua povoação era nume­rosa e ativa, mas rareou e tornou‑se indolente. Passaram por lá as revoluções, as conquistas, todas as vicissitudes da Ibéria durante doze séculos, e cada vicissitude dessas deixou aí uma pegada de decadência. Os curtos anos de esplendor da monarquia visigótica tinham sido para ela como um dia formoso de inverno, em que os raios do sol resvalam pela face da terra sem a aquecerem, para de­pois vir a noite, úmida e fria como as que a precederam. Debaixo do governo de Vítiza e de Roderico a antiga Cartéia é uma povoação decrépita e mesquinha, à roda da qual estão espalhados os fragmen­tos da passada opulência e que, talvez, na sua miséria, apenas nas recordações que lhe sugerem esses farrapos de louçainhas juvenis acha algum refrigério às amarguras da malfadada velhice.

Não! ‑ Resta‑lhe ainda outro: a religião do Cristo.

O presbitério, situado no meio da povoação, era um edifício humilde, como todos os que ainda subsistem alevantados pelos godos sobre o solo da Espanha. Cantos enormes sem cimento alteíam‑lhe os muros; cobre‑lhe o âmbito um teto achatado, tecido de grossas traves de carvalho subpostas ao tênue colmo: o seu portal profundo e estreito pressagia de certo modo a misteriosa portada da catedral da Idade Média: as suas janelas, por onde a claridade, passando para o interior, se transforma em tristonho crepúsculo, são como um tipo indeciso e rude das frestas que, depois, alumiaram os templos edificados no décimo quarto século, através das quais, coada por vidros de mil cores, a luz ia bater melancólica nos alvos panos dos muros gigantes e estampar neles as sombras das colunas e arcos enredados das naves. Mas, se o presbitério visigótico, no escasso da claridade, se aproxima do tipo cristão de arquitetura, no resto revela que ainda as idéias grosseiras do culto de Odin não se tem apagado de todo nos filhos e netos dos bárbaros, convertidos há três ou quatro séculos à crença do Crucificado.

O presbítero Eurico era o pastor da pobre paróquia de Cartéia. Descendente de uma antiga família bárbara, gardingo na corte de Vítiza, depois de ter sido tiufado ou milenário do exército visigótico vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos deleites da opulenta Toletum. Rico, poderoso, gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado de Hermengarda, filha de Favila, duque de Cantábria, e irmã do valoroso e depois tão célebre Pelágio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso Favila não consentira que o menos nobre gardingo pusesse tão alto a mira dos seus desejos. Depois de mil provas de um afeto imenso, de uma paixão ardente, o moço guerreiro vira submergir todas as suas esperanças. Eurico era uma destas almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu o nome de imaginações desregradas, porque não é para o mundo entendê‑las. Desventurado, o seu coração de fogo queimou‑lhe o viço da existência ao despertar dos sonhos do amor que o tinham emba­lado. A ingratidão de Hermengarda, que parecera ceder sem resis­tência à vontade de seu pai, e o orgulho insultuoso do velho prócer deram em terra com aquele ânimo, que o aspecto da morte não seria capaz de abater. A melancolia que o devorava, consumindo‑lhe as forças, fê‑lo cair em longa e perigosa enfermidade, e, quando a energia de uma constituição vigorosa o arrancou das bordas do tú­mulo, semelhante ao anjo rebelde, os toques belos e puros do seu gesto formoso e varonil transpareciam‑lhe a custo através do véu de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O cedro pendia fulminado pelo fogo do céu.

Uma destas revoluções morais que as grandes crises produzem no espírito humano se operou então no moço Eurico. Educado na crença viva daqueles tempos; naturalmente religioso porque poeta, foi procurar abrigo e consolações aos pés d'Aquele cujos braços estão sempre abertos para receber o desgraçado que neles vai buscar o derradeiro refúgio. Ao cabo das grandezas cortesãs o pobre gardingo encontrara a morte do espírito, o desengano do mundo. A cabo da estreita senda da cruz acharia ele, porventura, a vida e o repouso íntimos? Era este problema, no qual se resumia todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor do pobre presbitério da velha cidade do Calpe.

Depois de passar pelos diferentes graus do sacerdócio, Eurico recebera ainda de Siseberto, o predecessor de Opas na sé de Híspalis, o encargo de pastorear esse diminuto rebanho da povoação fenícia. O moço presbítero, legando à catedral uma porção dos senhorios que herdara juntamente com a espada conquistadora de seus avós, havia reservado apenas uma parte das próprias riquezas. Era esta a heran­ça dos miseráveis, que ele sabia não escassearem na quase solitária e meia arruinada Cartéia.

A nova existência de Eurico tinha modificado, porém não des­truído o seu brilhante caráter. A maior das humanas desventuras, a viuvez do espírito, abrandara, pela melancolia, as impetuosas pai­xões do mancebo e apagara nos seus lábios o riso do contentamento, mas não pudera desvanecer no coração do sacerdote os generosos afetos do guerreiro, nem as inspirações do poeta. O tempo havia santificado aqueles, moldando‑os pelo evangelho, e tornado estas mais solenes, alimentando‑as com as imagens e sentimentos sublimes estampados nas páginas sacrossantas da Bíblia. O entusiasmo e o amor tinham ressurgido naquele coração que parecera morto, mas transformados; o entusiasmo em entusiasmo pela virtude; o amor em amor dos homens. E a esperança? Oh, a esperança, essa é que não renascera!