LIVRO PRIMEIRO: O DESCONHECIDO
Por ameno e formoso vale serpeia o Rio das Flores em cujas águas mira-se a próspera Valença, a mais louçã das cidades rurais da província do Rio de Janeiro.
Às margens do pitoresco rio, outrora alcatifadas com os festões das acácias e as grinaldas de sempre-vivas, cobrem-nas agora extensos cafezais e fábricas de importantes fazendas.
À borda do caminho que vai de Valença a Ipiabas, cerca de duas léguas da vila, demorava uma casinha rústica de porta e janela, inteiramente isolada.
À pequena distância, na quebrada, via-se uma venda com pousos, onde frequentemente descansavam tropas e viajantes; e além para dentro descobria-se o teto de uma choupana.
As matas adjacentes que então bordavam a estrada pertenciam à fazenda da Soledade em cujas terras achava-se encravada a pequena situação.
Em uma linda manhã de setembro, haverá trinta anos, duas pessoas seguiam pela vereda que enredava-se na mata, à esquerda da estrada.
A que ia adiante era um menino de treze anos, vivo e esperto, de agradável fisionomia, afogueada então pelo açodamento do passeio matinal, como pelo sainete de uma travessura de rapaz.
A outra pessoa era uma encantadora moça de vinte anos. Arregaçando o vestido para acompanhar de perto o guia, mostrava o mais feiticeiro pé de menina, o qual apenas tocava a relva como se a afagasse, e logo fugia no passo rápido e sutil em que se embalançava o talhe airoso, à semelhança dos junquilhos agrestes que tremiam sobre a haste ao aflar do vestido de cassa.
O semblante formoso trazia-o banhado no riso que manava-lhe dos lábios floridos e lhe aljofravam de mimos as faces aveludadas de rósea pubescência. Nos olhos de ordinário afogados de inefável ternura, cintilavam-lhe naquele momento um raio de malícia e curiosidade.
Ao cabo de algumas voltas a vereda surdia em um raleiro para logo embrenhar-se de novo na espessura. Por essa aberta avistava-se longe entre a folhagem a casinha rústica, assentada à beira da estrada.
— Olhe a casa, mana! disse o menino apontando.
— Ali? exclamou a moça. Não é a Cachoeira?
O menino afirmou com um aceno de cabeça e continuou na batida em que ia. De repente, porém estacou, e voltando-se para a irmã com o dedo atravessado na boca e um gesto brejeiro, murmurou:
— Moita!
— É ele? interrogou a moça trêmula de susto arrepiando o passo.
— Está perto.
Caminhavam agora os dois em silêncio, não mais de corrida, porém a medo, em ponta de pé, de leve, para não estalar a folharada seca, e furtando o corpo aos galhos que podiam ramalhar.
Chegou o menino a um fragueado que surgia da selva como um enorme réptil, e enfiou os olhos pela fenda estreita que havia no penhasco.
Logo que afirmou a vista, dirigiu à irmã um aceno, recomendando-lhe ao mesmo tempo com gesto expressivo cautela para evitar o rumor.
— Deixa-me ver, Carlinhos! disse a moça ansiosa e arredando o irmão.
— Lá, perto do ribeirão.
— Já vi!
Passando através da fenda do penhasco, o olhar da moça derramou-se por um prado que abria-se no seio da floresta às margens de um arroio.
Era o sítio agreste e majestoso. A penha que emergia da mata formava o soco, onde assentava a sublime arcaria da selva americana. Em face o ribeirão, despenhando-se da lapa, rolava em borbotões de espuma pela cachoeira.
Ao lado jazia o tronco derreado de um grosso jataí que abatera ao peso da copa ingente à semelhança dos reis que sucumbem ao fardo da coroa.
Ainda prostrado, porém, o monarca da floresta conservava a régia pompa. Arraigado ao solo pelos garfos de uma raiz, lançava ao ar um galho que frondava, árvore nova brotando da árvore mãe, e prometendo breve excedê-la na grandeza.
Estava recostado no tronco do jataí, como em rústico espaldar, um homem absorto na literatura do livro que tinha aberto diante do rosto e que às vezes pousava sobre os joelhos, engolfando o olhar no azul diáfano do horizonte.
No momento em que os dois irmãos chegavam à orla da mata, o desconhecido erguia-se deixando o volume aberto em cima do tronco. Deu alguns passos pelo gramado e concentrou-se. Tumultuavam-se em seu espírito ideias que perpassavam arrugando-lhe a fronte, como os lufos da brisa quando arrufam a límpida face do lago.
Nesse recolho, sua organização estava como refrangida para o íntimo. Mas, quando, logo depois, alçou o talhe, como se entrasse na possessão de si mesmo; ostentou-se a opulência de sua possante individualidade.
Foi nesse momento que o viu a moça; e que sua imagem gravou-se-lhe para sempre na alma.
Na flor da idade que expendia sua beleza varonil, tinha o mancebo a magnitude de compleição, a que se pode atingir o estalão da raça humana, sem agigantar-se.
De grande estatura e porte amplo, a robustez de seu corpo, vazada no molde escultural da forma viril, era como que cinzelada pela flexibilidade dos movimentos e elegância do gesto.
As inteligências superiores, como a daquele mancebo, debuxavam-se na estátua de argila que elas animam; e imprimem-lhes no vulto essa eloquência da forma que é a majestade do homem.
A cabeça firme e excelsa anunciava a ascensão da alma que se erige sobre a terra projetando-se à eternidade e ao infinito. Era a fronte vasta e proeminente o sólio da razão augusta.
Os olhos serenos, inalteráveis, banhados em profunda limpidez nunca torvada pela menor sombra, iluminavam-se de luz etérea. Nas faces rígidas, ovais, ligeiramente bombeadas, estampavam-se a placidez da consciência, e a vontade inflexível.
A boca de correto desenho, sacrário do verbo criador, revia a flor d’alma; porém nunca a desairava o riso animal. Ainda cerrada e muda, mostrava em seu harmonioso relevo, o molde da palavra sublime.
Sua mão nobre aliava a força à supremacia do gesto com que a razão atesta o seu império. No pé de forma pequena e delgada, estava indicando a natureza, que não dera à essa organização privilegiada, uma base para apoiar-se no solo, mas um axe sobre que se elevasse acima dos homens.
O escultor que porventura desejasse plasmar no mármore a imagem dos antigos atletas que triunfaram ao mesmo tempo nos circos e nas academias, não acharia mais perfeito ideal desse consórcio da inteligência e da força que distinguiu o maior gênio da antiguidade, o divino Platão.