EX CATHEDRA


— Padrinho, vosmecê assim fica cégo.

— O que?

— Vosmecê fica cégo; lê que é um desespero. Não, senhor, dê cá o livro.

Caetaninha tirou-lhe o livro das mãos. O padrinho deu uma volta, e foi metter-se no gabinete, onde lhe não faltavam livros; fechou-se por dentro e continuou a ler. Era o seu mal; lia com excesso, lia de manhã, de tarde e de noute, ao almoço e ao jantar, antes de dormir, depois do banho, lia andando, lia parado, lia em casa e na chacara, lia antes de ler e depois de ler, lia toda a casta de livros, mas especialmente direito (em que era graduado), mathematicas e philosophia; ultimamente dava-se tambem ás sciencias naturaes.

Peior que cégo, ficou aluado. Foi pelos fins de 1873, na Tijuca, que elle começou a dar signaes de transtorno cerebral; mas, como eram leves e poucos, só em Março ou Abril de 1874 é que a afilhada lhe percebeu a alteração. Um dia, almoçando, interrompeu elle a leitura para lhe perguntar:

— Como é que eu me chamo?

— Como é que padrinho se chama? repetiu ella espantada. Chama-se Fulgencio.

— De hoje em diante, chamar-me-has Fulgencius.

E, enterrando a cara no livro, proseguiu na leitura. Caetaninha referiu o caso ás mucamas, que lhe declararam desconfiar desde algum tempo, que elle não andava bom. Imagine-se o medo da moça; mas o medo passou depressa para só deixar a piedade que lhe augmentou a affeição. Tambem a mania era restricta e mansa; não passava dos livros. Fulgencio vivia do escripto, do impresso, do doutrinal, do abstracto, dos principios e das formulas. Com o tempo chegou, não já á superstição, mas á allucinação da theoria. Uma de suas maximas era, que a liberdade não morre onde restar uma folha de papel para decretal-a; e um dia, acordando com a idea de melhorar a condição dos turcos, redigiu uma constituição, que mandou de presente ao ministro inglez, em Petrópolis. De outra occasião, metteu-se a estudar nos livros a anatomia dos olhos, para verificar se realmente elles podiam vêr, e concluiu que sim.

Digam-me, se, em taes condições, a vida de Caetaninha podia ser alegre. Não lhe faltava nada, é verdade, porque o padrinho era rico. Foi elle mesmo que a educou, desde os sete annos, quando perdeu a mulher; ensinou-lhe a ler e escrever, francez, um pouco de historia e geographia, para não dizer quasi nada, e incumbiu uma das mucamas de lhe ensinar crivo, renda e costura. Tudo isso é verdade. Mas Caetaninha fizera quatorze annos; e, se nos primeiros tempos bastavam os brinquedos e as escravas para divertil-a, era chegada a idade em que os brinquedos perdem de moda e as escravas de interesse, em que não ha leituras nem escripturas que façam de uma casa solitaria na Tijuca um paraiso. Descia algumas vezes, raras, e de corrida; não ia a theatros nem bailes; não fazia nem recebia visitas. Quando via passar na estrada uma cavalgada de homens e senhoras, punha a alma na garupa dos animaes, e deixava-a ir com elles, ficando-lhe o corpo, ao pé do padrinho, que continuava a ler.

Um dia, estando na chacara, viu parar ao portão um rapaz, montado n'uma bestinha, e ouviu que lhe perguntava se era alli a casa do doutor Fulgencio.

— Sim, senhor, é aqui mesmo.

— Podia fallar-lhe?

Caetaninha respondeu que ia ver; entrou em casa, e foi ao gabinete, onde achou o padrinho remoendo, com a mais voluptuaria e beata das expressões, um capitulo de Hegel. Mocinho? Que mocinho? Caetaninha disse-lhe que era um mocinho vestido de luto. De luto? repetiu o velho doutor fechando precipitadamente o livro; ha de ser elle. Esquecia-me dizer (mas ha tempo para tudo) que, tres mezes antes, fallecera um irmão de Fulgencio, no norte, deixando um filho natural. Como o irmão, dias antes de morrer, lhe escrevera recommendando o orphão que ia deixar, Fulgencio mandou que este viesse para o Rio de Janeiro. Ouvindo que estava alli um mocinho de luto, concluiu que era o sobrinho, e não concluiu mal. Era elle mesmo.

Parece que até aqui nada ha que destoe de uma historia ingenuamente romanesca: temos um velho lunatico, uma mocinha solitaria e suspirosa, e vemos despontar inopinadamente um sobrinho. Para não descer da região poetica em que nos achamos, deixo de dizer que a mula em que o Raymundo veiu montado, foi reconduzida por um preto ao alugador; passo tambem por alto as circumstancias da accommodação do rapaz, limitando-me a dizer que, como o tio, á força de viver lendo, esquecera inteiramente que o mandára buscar, nada havia em casa preparado para recebel-o. Mas a casa era grande e abastada; uma hora depois, estava o rapaz aposentado n'um lindo quarto, d'onde podia ver a chacara, a cisterna antiga, o lavadouro, basta folha verde e vasto céu azul.

Creio que ainda não disse a idade do hospede; tem quinze annos e um ameaço de buço; é quasi uma criança. Logo, se a nossa Caetaninha ficou alvoroçada, e as mucamas andam de um lado para outro espiando e fallando do «sobrinho de sinhô velho que chegou de fóra», é porque a vida alli não tem outros episodios, não porque elle seja homem feito. Essa foi tambem a impressão do dono da casa; mas, aqui vae a differença. A afilhada não advertia que o officio do buço é virar bigode, ou, se pensou n'isso, fel-o tão vagamente, que não vale a pena de o pôr aqui. Não assim o velho Fulgencio. Comprehendeu este que havia alli a massa de um marido, e resolveu casal-os; mas viu tambem que, a menos de lhes pegar nas mãos e mandar que se amassem, o acaso podia guiar as cousas por modo differente.

Uma idéia traz outra. A idéia de os casar pegou por um lado com uma de suas opiniões recentes. Era esta que as calamidades ou os simples dissabores nas relações do coração provinham de que o amor era praticado de um modo empyrico; faltava-lhe a base scientifica. Um homem e uma mulher, desde que conhecessem as razões physicas e metaphysicas d'esse sentimento, estariam mais aptos a recebel-o e nutril-o com efficacia, do que outro homem e outra mulher que nada soubessem do phenomeno.

— Os meus pequenos estão verdes, dizia elle comsigo: tenho tres a quatro annos diante da mim, e posso começar desde já a preparal-os. Vamos com logica; primeiro os alicerces, depois as paredes, depois o tecto..., em vez de começar pelo tecto... Dia virá em que se aprenda a amar como se aprende a ler... Nesse dia...

Estava atordoado, deslumbrado, delirante. Foi ás estantes, desceu alguns tomos, astronomia, geologia, physiologia, anatomia, jurisprudencia, politica, linguistica, abriu-os, folheou-os, comparou-os, extractou d'aqui e d'ali, até formular um programma de ensino. Compunha-se este de vinte capitulos, nos quaes entravam as noções geraes do universo, uma definição da vida, demonstração da existencia do homem e da mulher, organisação das sociedades, definição e analyse das paixões, definição e analyse do amor, suas causas, necessidades e effeitos. Em verdade, as materias eram crespas; elle entendeu tornal-as doceis, tratando-as em phrase corriqueira e chã, dando-lhes um tom puramente familiar, como a astronomia de Fontenelle. E dizia com emphasis que o essencial da fructa era o miolo, não a casca.

Tudo isso era engenhoso; mas aqui vai o mais engenhoso. Não os convidou a aprender. Uma noite, olhando para o céo, disse que as estrellas estavam brilhando muito; e o que eram as estrellas? acaso sabiam elles o que eram as estrellas?

— Não senhor.

D'aqui a iniciar uma descripção do universo era um passo. Fulgencio deu o passo, com tal presteza e naturalidade, que os deixou encantados e elles pediram a viagem toda.

— Não, disse o velho; não esgotemos tudo hoje, nem isto se entende bem se não de vagar; amanhã ou depois...

Foi assim, sorrateiramente, que elle começou a executar o plano. Os dois alumnos, assombrados com o mundo astronomico, pediam-lhe todos os dias que continuasse, e, posto que no fim dessa primeira parte Caetaninha ficasse um tanto confusa, ainda assim quiz ouvir as outras cousas que o padrinho lhe prometteu.

Não digo nada da familiaridade entre os dois alumnos, por ser cousa obvia. Entre quatorze e quinze annos a differença é tão pequena, que os portadores das duas edades, não tinha mais que dar a mão um ao outro. Foi o que aconteceu.

No fim de tres semanas pareciam ter sido criados juntos. Só isto bastava a mudar a vida de Caetaninha; mas Raymundo trouxe-lhe mais. Não ha dez minutos, vimol-a olhar com saudade as cavalgadas de homens e damas que passavam na estrada. Raymundo matou-lhe a saudade, ensinando-lhe a montaria, apezar da relutancia do velho, que temia algum desastre; mas este cedeu e alugou dois cavallos. Caetaninha mandou fazer uma linda amazona, Raymundo veiu á cidade comprar-lhe as luvas e um chicotinho, com o dinheiro do tio— já se sabe— que tambem lhe deu as botas e o demais apparelho masculino. D'ahi a pouco era um gosto vel-os ambos, galhardos e intrepidos, abaixo e acima da montanha.

Em casa, brincavam á larga, jogavam damas e cartas, cuidavam de aves e plantas. Brigavam muita vez; mas, segundo as mucamas, eram brigas de mentira, só para fazerem as pazes depois. Era o pico do arrufo. Raymundo vinha ás vezes á cidade, a mandado do tio. Caetaninha ia esperal-o ao portão, espiando anciosa. Quando elle chegava, brigavam, porque ella queria tirar-lhe os maiores embrulhos, a pretexto de que elle vinha cançado, e elle queria dar-lhe os mais leves, allegando que ella era fraquinha.

No fim de quatro mezes, a vida era totalmente outra. Póde-se até dizer que só então é que Caetaninha começou a usar rosas no cabello. Antes d'isso vinha muita vez despenteada para a mesa do almoço. Agora, não só se penteava logo cedo, mas até, como digo, trazia rosas, uma ou duas; estas eram, ou colhidas na vespera, por ella mesma, e guardadas em agua, ou na propria manhã, por elle, que ia levar-lh'as á janella. A janella era alta, mas Raymundo, pondo-se na ponta dos pés, e levantando o braço, conseguia dar-lhe as rosas em mão. Foi por esse tempo que elle adquiriu o séstro de mortificar o buço, puchando-o muito de um e outro lado. Caetaninha chegava a bater-lhe nos dedos, para lhe tirar tão máo costume.

Entretanto, as licções continuavam regularmente. Já tinham uma idéa geral do universo, e uma definição da vida, que nenhum d'elles entendeu. Assim chegaram ao quinto mez. No sexto, começou a demonstração da existencia do homem. Caetaninha não pôde suster o riso, quando o padrinho, expondo a materia, perguntou-lhes se elles sabiam que existiam e porque; mas ficou logo séria, e respondeu que não.

— Nem você?

— Nem eu, não, senhor, concordou o sobrinho,

Fulgencio iniciou uma demonstração em regra, profundamente cartesiana. A seguinte licção foi na chacara. Chovera muito nos dias anteriores; mas o sol agora alagava tudo de luz, e a chacara parecia uma linda viuva, que troca o véo do luto pelo do noivado. Raymundo, como se quizesse copiar o sol, (copiam-se naturalmente os grandes) despedia das pupillas um olhar vasto e longo, que Caetaninha recebia, palpitando, como a chacara. Fusão, transfusão, diffusão, confusão e profusão de seres e de cousas.

Emquanto o velho fallava, recto, logico, vagaroso, curtido de formulas, com os olhos fixos em parte nenhuma, os dous alumnos faziam trinta mil esforços para escutal-o, mas vinham trinta mil incidentes distrahil-os. Foi a principio um casal de borboletas que brincavam no ar. Façam-me o favor de dizer o que é que póde haver extraordinario n'um casal de borboletas? Concordo que eram amarellas, mas esta circumstancia não basta a explicar a distracção. O facto de voarem uma atraz da outra, ora á direita, ora á esquerda, ora abaixo, ora acima, tambem não dá a razão do desvio, visto que nunca as borboletas voaram, em linha recta, como simples militares.

— O entendimento, dizia o velho, o entendimento, segundo eu já expliquei...

Raymundo olhou para Caetaninha, e achou-a olhando para elle. Um e outro pareciam confusos e acanhados. Ella foi a primeira que baixou os olhos ao regaço. Depois, levantou-os, afim de os levar a outra parte, mais remota, o muro da chacara; na passagem como os de Raymundo ali estivessem, ella encarou-os o mais rapidamente que pôde. Felizmente, o muro apresentava um expectaculo que a encheu de admiração: um casal de andorinhas (era o dia dos casaes) saltitava n'elle, com a graça peculiar ás pessoas aladas. Saltitavam piando, dizendo cousas uma á outra, o que quer que fosse, talvez isto— que era bem bom não haver philosophia nos muros das chacaras. Se não quando, uma d'ellas voou, provavelmente a dama, e a outra, naturalmente o garção, não se deixou ficar atraz: esticou as azas e seguiu o mesmo caminho. Caetaninha desceu os olhos á gramma do chão.

Quando a licção acabou, d'ahi a alguns minutos, ella pediu ao padrinho que continuasse, e, recusando este, tomou-lhe o braço e convidou-o a dar um giro na chacara.

— Está muito sol, contestou o velho.

— Vamos pela sombra.

— Faz muito calor.

Caetaninha propoz irem continuar na varanda; mas o padrinho disse-lhe mysteriosamente que Roma não se fez n'um dia, e acabou declarando que só dois dias depois continuaria a licção. Caetaninha recolheu-se ao quarto, esteve ali tres quartos de hora fechada, sentada, á janella, de um lado para outro, procurando as cousas que tinha na mão, e chegando ao cumulo de ver-se a si mesma, cavalgando, estrada acima, ao lado de Raymundo. De uma vez aconteceu-lhe ver o rapaz no muro da chacara; mas attentou bem, reconheceu que era um par de bezouros que zumbiam no ar. E dizia um d'elles ao outro:

— Tu és a flor da nossa raça, a flor do ar, a flor das flôres, o sol e a lua da minha vida.

Ao que respondia o outro:

— Ninguem te vence na belleza e na graça; o teu zumbir é um éco das fallas divinas; mas, deixa-me... deixa-me...

— Porque deixar-te, alma d'estes bosques?

— Já te disse, rei dos ares puros, deixa-me.

— Não me falles assim, feitiço e gala das mattas. Tudo por cima e em volta de nós está dizendo que me deves fallar de outra maneira. Conheces a cantiga dos mysterios azues?

— Vamos ouvil-a nas folhas verdes da larangeira.

— As da mangueira são mais bonitas.

— Tu és mais linda que umas e outras.

— E tu, sol da minha vida?

— Lua do meu ser, eu sou o que tu quizeres...

Era assim que os dous bezouros fallavam. Ella ouviu-os scismando. Como elles desapparecessem, ella entrou, viu as horas e saiu do quarto. Raymundo estava fóra; ella foi esperal-o ao portão, dez, vinte, trinta, quarenta, cincoenta minutos. Na volta disseram pouco; uniram-se e separaram-se duas ou tres vezes. Da ultima vez foi ella que o trouxe á varanda, para mostrar-lhe um enfeite que julgava perdido e acabava de achar. Façam-lhe a justiça de crer que era pura mentira. Entretanto, Fulgencio antecipou a licção; deu-a no dia seguinte, entre o almoço e o jantar. Nunca a palavra lhe saiu tão limpida e singella. E assim devia ser; tratava-se da existencia do homem, capitulo profundamente methaphysico, em que era preciso considerar tudo e por todos os lados.

— Estão entendendo? perguntava elle.

— Perfeitamente.

E a licção seguia até o fim. No fim, deu-se a mesma cousa da vespera; Caetaninha, como se tivesse medo de ficar só, pediu-lhe para continuar ou passear; elle recusou uma e outra cousa, bateu-lhe paternalmente na cara, e foi encerrar-se no gabinete.

— Para a semana, pensava o velho doutor, dando volta á chave, para a semana entro na organisação das sociedades; todo o mez que vem e o outro é para a definição e classificação das paixões; em maio, passaremos ao amor... já será tempo...

Emquanto elle dizia isto, e fechava a porta, alguma cousa resoava do lado da varanda— um trovão de beijos, segundo disseram as lagartas da chacara; mas, para as lagartas qualquer pequeno rumor vale um trovão. Quanto aos auctores do ruido nada positivo se sabe. Parece que um maribondo, vendo Caetaninha e Raymundo unidos n'essa occasião, concluiu da coincidencia para a consequencia, e entendeu que eram elles; mas um velho gafanhoto demonstrou a inanidade do fundamento, allegando que ouvira muitos beijos, outr'ora, em logares onde nem Raymundo nem Caetaninha puzera os pés. Convenhamos que este outro argumento não prestava para nada; mas, tal é o prestigio de um bom caracter, que o gafanhoto foi acclamado como tendo ainda uma vez defendido a verdade e a razão. E d'ahi pode ser que fosse assim mesmo. Mas um trovão de beijos? Supponhamos dous; supponhamos tres ou quatro.


FIM DA EX CATHEDRA.