Nessa estupenda trilogia de Sienckiewickz, onde o romance, o poema, o drama se equilibram na região de Shakespeare, e parecem às vezes escritos com uma pena das suas asas, há um grande sulco divino, que se gravou para sempre em nosso espírito, extasiado naquelas páginas maravilhosas. Entre Ferro e Fogo, onde se principia a desdobrar o estofo magnífico da narrativa, e Pan Michael, que a encerra, estão os dois prodigiosos volumes do Dilúvio.

É verdadeiramente o flagelo bíblico sob um aspecto ainda mais tremendo que o dos livros sagrados. O oceano das invasões, sucessivas, simultâneas, rola as suas ondas sobre a mísera Polônia submergida. À inundação moscovita e à cossaca vem sobrepor-se a inundação sueca. Assoberbada por aquelas, entrega-se a nação a esta completamente. Perdidas as suas duas capitais, o inimigo facilmente subjuga o país todo, enquanto as vagas do naufrágio pavoroso, arremessando ao estrangeiro o soberano destronado, alagam impetuosamente a república de fronteira a fronteira. Acima do pélago sem bordas se apagou o último lume da esperança, e do fundo da voragem troveja o poder da conquista, como a voz dos abismos eternos. Tempos, de que Bossuet disse mais tarde: “Carlos Gustavo apareceu à Polônia surpreendida e atraiçoada, como um leão que ferra a presa nas garras, pronto a lacerá-la. Que é dessa cavaleria, que dantes se via cair com a rapidez da águia sobre o inimigo? Onde essas almas heróicas, esses tão gabados instrumentos de guerra, esses arcos nunca entesados em vão? Nem os cavalos são ligeiros, nem os homens ágeis, senão para correr do vencedor.”

— O que aqui lograram os suecos, diz o príncipe Boguslav, em Pilvishiki, a Pan Krnita, nunca sucedeu até hoje em parte nenhuma, neste mundo. Nós, cavalheiro, podíamos em verdade entoar Te Deum laudamus. O caso é, no seu gênero, inaudito, sem parelha. Pensa bem: acomete o país um invasor, um invasor famoso pela sua rapacidade, e não só não encontra resistência, senão que, dos vivos, um por um todos vão desertando o velho rei, precipitando-se alvoroçados para o novo, magnates, nobres, tropas, castelos, cidades, tudo, tudo, sem honra, sem respeito, sem sentimento, sem vergonha. Não nos fala a história de outro exemplo desta laia. Apre! É escória o que povoa esta terra, gente sem consciência, nem ambição. E não há de perecer uma nação tal? Ainda reqüestam as nossas mercês. Nossas mercês hão de ter! Na Grande Polônia já os suecos principiam de torturar os nobres. E assim há de ser por toda a parte. Nem era possível que fosse de outro modo. Há, nesta terra, o costume, quando um homem vasqueja, nos últimos momentos, de tirarem-lhe os parentes o travesseiro, porque não pene mais tempo. Eu e o príncipe voivoda de Vilna determinamos de ter com a República este especial carinho.

Assim açoitam com a ironia e o sarcasmo os vencedores o rosto ao povo, que se abandona. E, quando se encontram, quando entre si confabulam, é para se exprimirem como o Conde Veyhard Vjeshchovich, na estalagem de Krushyn, conversando com o Barão Lisola, enviado imperial, em caminho de Brandeburgo para o acampamento de Carlos Gustavo:

— Excelência, haverá outro país, no mundo, onde se veja desconcerto semelhante? Que casta de governo é a deste? O rei não rege; porque lho não consentem. A dieta não legisla; porque os seus membros a obstruem. Não há exército; porque os polacos não pagam impostos. Obediência não há; porque com a liberdade se não concilia a obediência. Não há justiça; porque não há quem execute as sentenças, e todos os fortes as conculcam. Não há fidelidade neste povo, que todo ele desertou de seu rei. Não há amor da pátria, que entregaram aos suecos, sob a promessa de viverem ao modo antigo, na violência em que viviam. Onde se depararia coisa igual? Que povo, neste mundo, ajudaria o inimigo a conquistar o próprio solo? Que gente desertaria a seu rei, não por tirano, não por mau, senão de puro aforçurada em correr ao encontro de outro mais poderoso? Onde haverá um povo, que sirva mais ao interesse privado, e atropele mais o interesse comum? Que qualidade, excelência, que qualidade têm eles? Apontem-me uma virtude; prudência, siso, habilidade, moderação, fortaleza. De que se podem gabar? Boa cavaleria? Só isso. Nada mais. Mas os númidas foram também celebrados pela sua gente de cavalo, e os gauleses, como se pode ver na história romana, tiveram fama de soldados. Não obstante, que valiam? Pereceram, como tinham de perecer. Quem quer que almeje salvar os polacos, perde o tempo, des que eles mesmos se não salvam. Entre os habitantes destas paragens não há senão malícia, violência, loucura, venalidade.

Eis aí. A Suécia suplanta a Polônia com as forças polacas. Sua vitória não lhe custa uma batalha. As tropas escandinavas ocupam Varsóvia, sem queimar uma escorva, e chegam ilesas às portas de Cracóvia, incapaz de resistir. No campo do invasor esfervilham chusmas de voivodas, castelões, funcionários, multidões de nobres armados, esquadrões daquela incomparável cavalaria, com os olhos nos do novo senhor, pendentes do menor dos seus acenos. Agora o derradeiro exército do reino vocifera também aos seus generais pela servidão: “Vamos, inclinemo-nos à majestade de Carlos; porque nós também queremos pertencer aos suecos. Aos suecos! aos suecos!” E as espadas saltam das bainhas, retinindo, sôfregas de capitulação e cativeiro.

Há, porém, uma eminência, imersa na oração e nas virtudes celestes, que se não nivelou à abjeção geral da planura coberta pelas hostes inimigas. Além, nos confins da Silésia, onde o rei prófugo refugiou a sua coroa, nas alturas de Yasua Gora, sobranceia o mosteiro fortificado, onde tem o seu santuário, consagrado pelas tradições, a Virgem Mãe de Deus, a santa padroeira da nação. Não se contém o orgulho dos suecos. Czenstochowa há de render-se também. O presídio está desarmado. Dentro nas suas ameias não há senão hábitos religiosos. A imagem santíssima não se mexerá do seu trono. — “E se os monges se defenderem?”, pergunta o embaixador imperial. “Neste país ninguém se defenderá”, revida o capitão sueco, “e hoje ninguém o poderia. Tempo houve, em que a defesa era possível. Agora é tarde.”

Já as trombetas vitoriosas ressoam ao pé das muralhas sagradas. O rei da Suécia, o príncipe da Finlândia, da Baviera, do Palatinato intima-lhes aquela submissão, que o país inteiro já lhes prestava. Mas as portas não se abriram. Kordetski, o prior daquele claustro, não cede, porém, às ameaças de Miller, o formidável general, a cujo nome ensangüentado as populações estremecem. “Sob tua proteção nos acolhemos, Mãe Nossa, Nossa Senhora. Nossa Rainha.” É uma verdadeira transfiguração o que se opera. Improvisa-se a defesa. Embalde as tropas aliadas se arremessam de encontro à casa de Deus, convertida pela sublime loucura dos seus hóspedes na mais inexpugnável das fortalezas. Semanas e semanas dura o assédio. Todos os dias se renovam os assaltos. Mas a rocha da fé não se abala. E, enquanto um pugilo de frades, cavalheiros e rústicos, ajuntados às pressas, repele, dizima, fatiga, destrói, desmoraliza legiões formidáveis, o sentimento nacional acorda ao violento choque da profanação tentada contra os altares. Yasua Gora, o convento solitário, do cabeço dos seus alcantis, cresce, aos olhos dos crentes, até à cúpula dos céus, envolto nas névoas do inverno, doirado dos raios do sol. Vede, está-lhes a dizer, se a rudeza destes campônios, o burel destes cenobitas e a ruinaria destes muros cativam a vitória fugitiva, que não fariam os vossos solares e os vossos presídios, as vossas armas e os vossos esquadrões, a vossa cavalaria e a vossa nobreza?

Jaz o país inteiro “como um navio já soçobrado, e o claustro como o tope de um mastro assomando por entre a marulhada”. Podia aquele grupo de náufragos, aferrando-se ao extremo do mastro, salvar a nave abismada? Não, segundo os cálculos humanos. Eles não contam com o elemento supremo, o princípio religioso ferido no coração. Kordetski, porém, bate a Carlos Gustavo. A estamenha vence a armadura. Os regimentos alemães e suecos retiram exaustos. No século XV a França se emancipara em Orléans. No século XVII a Polônia se emancipa em Czenstochowa.

Toda a nação está em armas. O invasor escandinavo retrograda. Arde-lhe a terra sob os pés. Toda a campanha se levanta. Das faldas da montanha santa a resistência lavra até às estremas do território nacional. “Já os vencedores tremem da própria sombra. Andam a errar como extraviados. Morreram-lhes nos lábios os recentes cantos de triunfos, e inquirem assombrados: “Será este o mesmo povo, que ontem abandonava o seu rei, e se rendia, sem travar um combate?” Realmente, senhores, fidalgos, exército (caso incomparável na história) se bandeavam para o vencedor; cidades e praças-fortes abriam as portas de par em par; todo o país estava ocupado. Nunca houve conquista, que menos esforços, menos sangue custas­se. Maravilhados da facilidade, com que haviam senhoreado a pujante república, os mesmos suecos não podiam ocultar o seu desprezo pelos conquistados, que, ao primeiro lampejar de uma espada escandinava, enjeitaram o soberano, repudiaram a pátria, contentes de viver e gozar em paz, ou enriquecer na confusão. O que o Conde Veyhard dissera ao emissário imperial, o próprio rei e todos os capitães suecos repetiam: “Não há, nesta nação, virilidade, não há estabilidade, não há ordem, não há fé, não há patriotismo!” Esqueciam que essa nação possuía ainda um sentimento, aquele especialmente cuja expressão terrena se achava em Yasua Gora. E nele estava para ela o renascimento. A atroada, pois, do canhoneio, que estruge às faldas do sagrado retiro, ecoa para logo no coração de todos os magnates, de todos os nobres, de toda a população rural e urbana. Dos Cárpatos ao Báltico reboa ao longo um conclamar de terror e um movimento instantâneo ergue do letargo o gigante. “É outro povo!” exclamam, enleados, os guerreiros suecos. Foge-lhes o chão debaixo das plantas. Em vez dos amigos de há pouco, são inimigos de todos os lados. Em vez de submissão, a hostilidade. Em vez do medo, uma intrepidez capaz de tudo. Em vez da brandura, a ferocidade. Em vez da resignação, a vingança.

Recua a conquista, varrida pelas chamas do incêndio irresistível. Cobra ânimo o exilado de Glogau. João Casimiro penetra na Galícia, e põe solenemente a Polônia sob a proteção da Mãe de Deus, que acaba de reabilitá-la. Czarneski obriga os suecos a retrocederem, e Varsóvia reabre os seus paços ao soberano desterrado pela invasão.

Havia, naquela nacionalidade, um reservatório de forças inesperado. A fé o abriu, e ao fragor das suas catadupas as armas estrangeiras debandaram espavoridas. Felizes, Senhor, os povos, a quem, no extremo desespero, não retiraste essa bênção. Esses podem renascer das suas cinzas. As maiores misérias não os aniquilam. Nas mais escuras trevas da sua desgraça a caligem, rarefazendo-se, acaba por descobrir a estrela, que conduziu ao berço do Salvador os peregrinos desta noite.