Era de tarde.
Negros carregando latas de roupa de convidados e de muzicos chegavam. D. Luzia com um riso cheio de bonhomia acommodava uns e outros, fazia offerecimentos e mandava preparar a sala grande com placas pelos portaes, para uma vespera. Frederico era em todos os pontos de conversação alvo de cortezias e attenções Até as duas horas da manhã ouviram-se os sons abafados das rabecas e das clarinettes, que morriam em somnolenta walsa. Moças de vestidos brancos engommados, faziam rou-rou barato quando voluteavam abrindo a bocca com olhos de somno, quebradas. A's onze horas da manhã, em larga meza, muito cheia, via-se a figura do Zé de Deus que chegara cêdo. Pelo vermelho do seu rosto inferia-se que as libações eram copiosas. De repente elle levantou-se e limpando a garganta ia fallar. Bateu com um copo n'outro, e logo que os ouvintes olharam, deixou cahir o seguinte dos lábios até então silentes: « Senhores amigos da—Fazenda do Ingazeiro, hoje é um dia de contentamento (e suspirava limpando o suor) porque a comadre vai tomar estado. Eu sou incompetente para fallar de suas qualidades ; (ouviram-se uns não apoiados á esquerda) mas sem ser uma intelligencia como Camillo Castello Branco, irei com tudo dizer alguma cousa. Eu sempre fui amigo da comadre e si não tornei-me parente della... (e deixou correr duas lagrimas) a culpa foi da má sina que me persegue. Si dessem à mim um throno, eu punha a comadre em cima delle ; mas a minha saude precoce não me permitte ir adiante.»
Deixou cahir na cadeira o pesado corpo, e a cabeça pendeu-lhe para um lado como um òdre colossal. Duas horas depois elle dormia um somno apopletico. Já haviam celebrado o casamento quando elle melhorou, graças ás cápsulas do ether.
Reinou todo esse dia uma alegria ingenua, cheia dessas manifestações francas e leaes, que caracterisam o rir jovial dos homens rusticos. A' tardinha, pelo pomar, pelas proximidades do rio, diversos grupos se refocilavam. Quando o sol muito esfalfado, com fulgores cadavericos mergulhava-se atraz dos montes, as sombras invadiam os valles. Era a hora da lucta epica entre a luz e as trévas, e estas varrendo aquella, davam a imagem do berço e do tumulo. Uns sons muito quentes da muzica em distancia vieram interromper o colloquio entre Daniel e Fantina, os quaes retirados do borborinho abafado que havia pela casa fallavam dos tropeços do presente e das peripecias do futuro.Quando D. Luzia estava rodeada de velhas e moças frescalhonas, que saracoteavam em requebros de quadris, Fantina fallava á Daniel sobre o medo que tinha de perdel-o.
Muito unidinhos no tendal, com as mãos enlaçadas, olhos embebidos uns nos outros, chorando de quando em quando os dois amantes consultavam um plano de salvação. D. Luzia não consentia que ella se cazasse captiva, e também não a libertava sem os dois contos. Daniel já estava resolvido a furtal-a e pedir aos bosques, aos céos, ou aos mares um canto para si.
Fantina muito afflicta, apertando-lhes as mãos, como querendo invocar toda a actividade delle disse :
—Como ha de ser, Daniel, si elle me começar attentar ?
—Não faças caso ; e chega-te bem a D. Luzia.
Daniel contou-lhe que sahia por aquelles quatro dias com o Manuel do Rosário, e que se demoraria um mez fóra.
Fantina sahiu chorando.
Muito abstracto Daniel alli ficou. Parecia-lhe ter acordado de um sonho perseguido por pesadellos lividos, em que animaes titanicos lhe mordiam a cabeça ; e correntes mugidoras cahiam por algares medonhos soluçando um dobre de finados. Elle procurava combinar as idéas, ir collocando uma atraz de outra e depois examinar o quadro ; mas corriam desordenadas, fugindo para longe, muito longe, cheias de terror : deixavam-n'o com o craneo ermo como a sala donde se tirou um esquife mortuario.
—Que máo estar este meu, disse Daniel sahindo.
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