Dois mezes depois D. Luzia sentia-se doente, triste.
Já havia consultado a varios médicos ; mas mesmo assim resolveu ir á cidade ouvir uma missa.
Fantina a muitos dias já andava afflicta em procura da chave, e agora que ia por de mão os preparativos da senhora, ficou aterrada. A idéa de aborrecer a nhê-nhá tão doente opprimia-lhe o coração amoroso.
Poz-se em procura da chave com sofregridão espantosa.
Muitas horas trabalhava debalde.
Rosa percebendo isto não se mostrou resentida. Quando Fantina luctava para arredar um caixão na despensa, Rosa chegou, e depois de saber a causa daquelle trabalho, disse :
—Fantina, eu supponho que a chave foi achada, e por isso é tolice você estar procurando.
Diante desta consideração desanimadora Fantina prorompeu n'um chorar hysterico, dilacerador.
—Como ha de ser então ? Nhê-nhá tão nervosa e doente sabendo disto é capaz até dar-me pancada, tia Rosa ! Ella estima muito aquelle estojo, e ainda mais a chave que foi feita com ouro tirado pelo pai della quando garimpeiro na Bagagem.
—Socega, menina ; o unico remedio possivel é mandar fazer outra.
—Não tem tempo, porque amanhão ou depois ella póde precisar das pulseiras e dos brincos. E demais, quem me havia de arranjar isso ?
E continuava soluçando.
—Pois então vá pedir a sinhô Frederico a que elle tem, que talvez sirva.
—Mas como hei de obtel-a nas mãos para experimentar ?
—Nada mais facil,—continuou Rosa,—vá onde elle está, e logo que você pedir elle dá.
—Não ! tenho muito medo delle ; aquillo que você me fallou é muito feio ! porque eu quero me casar com Daniel que me estima tanto !
E a voz lhe sumia entre o soluçar convulsivo.
Fantina era forte na musculatura, mas impressionavel como a flôr tirada da sombra e exposta aos raios lubricos do sol tropical.
—Desta maneira nada você arranja. Vá pedir, e se elle exigir alguma cousa em paga, e se você não der já, ao menos prometta ; senão elle vê que é por causa de Daniel e póde mandar leval-o para soldado.
Depois de muitos acoroçoamentos Fantina resolveu ir pedir a chave ao senhor.
D. Luzia tivera um accesso e foi deitar-se.
Frederico esteve pelo quarto, e afinal sahiu assobiando uma mashurka que aprendera com a Joaquininha.
Fantina indo ter cora sua senhora, esta mandou-lhe buscar ao jardim umas folhas de malvas para banho.
Uma fachada de luz bruxuleante partindo das senzalas é que punha um lusco-fusco triste lá pela varanda. Corria pelo ar um magnitismo dormente de envolta com as baforadas mornas do sol da tarde. Fantina vio Frederico debruçado á um canto da varanda ; quiz voltar e mandar outra apanhar as folhas. Lembrando-se, porém, da chave teve animo para lutar e chegou. Apanhou as primeiras folhas que encontrou ; approximou-se de Frederico, e narrou-lhe o occorrido.
—Dou a chave Fantina, que ha de servir, mas quero que você me dê uma cousa.
Ella quasi fugiu correndo, mas a mão possante de Frederico deteve-a. Um grito de susto escapou-lhe da garganta.
—Gosto muito de você, Fantina. Hei de um dia casar o Daniel com você.
E segredando-lhe uma palavra, ella tremeu da cabeça aos pés como se fôra batida por duas desencontradas cargas electricas. Fantina nesse momento viu o grande e phantasioso castello de seus desoitos annos sadios, edificado com risos e temores, esperanças e beijos quentes, ruir.
Frederico não podendo dominar-se, agarrou-a fortemente pelas mãos, e cingindo-a ao peito, imprimiulhe na face que abrazava, beijos absorventes, devoradores, onde derramou toda a ancia animal de sua natureza potente.
Fantina quiz gritar ; elle largou-a temendo que D. Luzia soffresse mais no seu physico arruinado.
Quando Fantina deu fé de si, sentiu na mão um objecto frio : era a chave. A lera depois de ter sentido o gosto do sangue da preza, e de apalpar-lhe as entranhas trementes, soltou-a.
Em outra occasião, porém, ella esperava embebedar-se das fragancias macias daquella rosa de Jericó, candida e avelludada como o lyrio de Geslaad.
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