A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, era do Senhor de MDXXIII. O seu argumento é que porquanto duvidavam certos homens de bom saber se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: segundo um exemplo comum que dizem: mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa.

A figuras são as seguintes: Inês Pereira; sua Mãe; Lianor Vaz; Pêro Marques; dous Judeus (um chamado Latão, outro Vidal); um Escudeiro com um seu Moço; um Ermitão; Luzia e Fernando.


Finge-se que Inês Pereira, filha de hũa molher de baixa sorte, muito fantesiosa, está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta esta cantiga:

Canta Inês:

Quien con veros pena y muere
Que hará quando no os viere?

(Falando)

Inês

Renego deste lavrar
E do primeiro que o usou;
Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d'aturar.
Oh Jesu! que enfadamento,
E que raiva, e que tormento,
Que cegueira, e que canseira!
Eu hei-de buscar maneira
D'algum outro aviamento.
Coitada, assi hei-de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem asa,
Que sempre está num lugar?
E assi hão-de ser logrados
Dous dias amargurados,
Que eu possa durar viva?
E assim hei-de estar cativa
Em poder de desfiados?
Antes o darei ao Diabo
Que lavrar mais nem pontada.
Já tenho a vida cansada
De fazer sempre dum cabo.
Todas folgam, e eu não,
Todas vêm e todas vão
Onde querem, senão eu.
Hui! e que pecado é o meu,
Ou que dor de coração?
Esta vida he mais que morta.
Sam eu coruja ou corujo,
Ou sam algum caramujo
Que não sai senão à porta?
E quando me dão algum dia
Licença, como a bugia,
Que possa estar à janela,
É já mais que a Madanela
Quando achou a aleluía.

Vem a Mãe, e não na achando lavrando, diz:

Mãe

Logo eu adivinhei
Lá na missa onde eu estava,
Como a minha Inês lavrava
A tarefa que lhe eu dei...
Acaba esse travesseiro!
Hui! Nasceu-te algum unheiro?
Ou cuidas que é dia santo?

Inês

Praza a Deos que algum quebranto?
Me tire do cativeiro.

Mãe

Toda tu estás aquela!
Choram-te os filhos por pão?

Inês

Prouvesse a Deus! Que já é razão
De eu não estar tão singela.

Mãe

Olhade ali o mau pesar...
Como queres tu casar
Com fama de preguiçosa?

Inês

Mas eu, mãe, sam aguçosa
E vós dais-vos de vagar.

Mãe

Ora espera assi, vejamos.

Inês

Quem já visse esse prazer!

Mãe

Cal'-te, que poderá ser
Que «ame a Páscoa vêm os Ramos».
Não te apresses tu, Inês.
«Maior é o ano que o mês»:
Quando te não precatares,
Virão maridos a pares,
E filhos de três em três.

Inês

Quero-m'ora alevantar.
Folgo mais de falar nisso,
Assi me dê Deos o paraíso,
Mil vezes que não lavrar
Isto não sei que me faz

Mãe

Aqui vem Lianor Vaz.

Inês

E ela vem-se benzendo...

(Entra Lianor Vaz)

Lianor

Jesu a que me eu encomendo!
Quanta cousa que se faz!

Mãe

Lianor Vaz, que é isso?

Lianor

Venho eu, mana, amarela?

Mãe

Mais ruiva que uma panela.

Lianor

Não sei como tenho siso!
Jesu! Jesu! que farei?
Não sei se me vá a el-Rei,
Se me vá ao Cardeal.

Mãe

Como? e tamanho é o mal?

Lianor

Tamanho? eu to direi:
Vinha agora pereli
Ó redor da minha vinha,
E hum clérigo, mana minha,
Pardeos, lançou mão de mi;
Não me podia valer
Diz que havia de saber
S'era eu fêmea, se macho.

Mãe

Hui! seria algum muchacho,
Que brincava por prazer?

Lianor

Si, muchacho sobejava
Era hum zote tamanhouço!
Eu andava no retouço,
Tão rouca que não falava.
Quando o vi pegar comigo,
Que m'achei naquele p'rigo:
– Assolverei! - não assolverás!
–Tomarei! - não tomarás!
– Jesu! homem, qu'has contigo?
– Irmã, eu te assolverei
Co breviairo de Braga.
– Que breviairo, ou que praga!
Que não quero: aqui d'el-Rei! –
Quando viu revolta a voda,
Foi e esfarrapou-me toda
O cabeção da camisa.

Mãe

Assi me fez dessa guisa
Outro, no tempo da poda.
Eu cuidei que era jogo,
E ele... dai-o vós ao fogo!
Tomou-me tamanho riso,
Riso em todo meu siso,
E ele leixou-me logo.

Lianor

Si, agora, eramá,
Também eu me ria cá
Das cousas que me dizia:
Chamava-me «luz do dia».
– «Nunca teu olho verá!» –
Se estivera de maneira
Sem ser rouca, bradar'eu;
Mas logo m'o demo deu
Catarrão e peitogueira,
Cócegas e cor de rir,
E coxa pera fugir,
E fraca pera vencer:
Porém pude-me valer
Sem me ninguém acudir...
O demo (e não pode al ser)
Se chantou no corpo dele.

Mãe

Mana, conhecia-te ele?

Lianor

Mas queria-me conhecer!

Mãe

Vistes vós tamanho mal?

Lianor

Eu m'irei ao Cardeal,
E far-lhe-ei assi mesura,
E contar lhe-ei a aventura
Que achei no meu olival.

Mãe

Não estás tu arranhada,
De te carpir, nas queixadas?

Lianor

Eu tenho as unhas cortadas,
E mais estou tosquiada:
E mais pera que era isso?
E mais pera que é o siso?
E mais no meio da requesta
Veio hum homem de hũa besta,
Que em vê-lo vi o p'raíso,
E soltou-me, porque vinha
Bem contra sua vontade.
Porém, a falar a verdade,
Já eu andava cansadinha:
Não me valia rogar
Nem me valia chamar:
– «Aque de Vasco de Fois,
Acudi-me, como sois!»
E ele... senão pegar:
– Mais mansa, Lianor Vaz,
Assi Deus te faça santa.
– Trama te dê na garganta!
Como! isto assi se faz?
– Isto não revela nada...
– Tu não vês que são casada?

Mãe

Deras-lhe, má hora, boa,
E mordera-lo na coroa.

Lianor

Assi! fora excomungada.
Não lhe dera um empuxão,
Porque sou tão maviosa,
Que é cousa maravilhosa.
E esta é a concrusão.
Leixemos isto. Eu venho
Com grande amor que vos tenho,
Porque diz o exemplo antigo
Que a amiga e bom amigo
Mais aquenta que o bom lenho.
Inês está concertada
Pera casar com alguém?

Mãe

Até `gora com ninguém
Não é ela embaraçada.

Lianor

Eu vos trago um casamento
Em nome do anjo bento.
Filha, não sei se vos praz.

Inês

E quando, Lianor Vaz?

Lianor

Eu vos trago aviamento.

Inês

Porém, não hei-de casar
Senão com homem avisado
Ainda que pobre e pelado,
Seja discreto em falar

Lianor

Eu vos trago um bom marido,
Rico, honrado, conhecido.
Diz que em camisa vos quer

Inês

Primeiro eu hei-de saber
Se é parvo, se sabido.

Lianor

Nesta carta que aqui vem
Pera vós, filha, d'amores,
Veredes vós, minhas flores,
A discrição que ele tem.

Inês

Mostrai-ma cá, quero ver

Lianor

Tomai. E sabedes vós ler?

Mãe

Hui! e ela sabe latim
E gramática e alfaqui
E tudo quanto ela quer!

Lê Inês Pereira a carta, qual diz assi:

«Senhora amiga Inês Pereira,
Pêro Marquez, vosso amigo,
Que ora estou na nossa aldea,
Mesmo na vossa mercea
M'encomendo. E mais digo,
Digo que benza-vos Deos,
Que vos fez de tão bom jeito.
Bom prazer e bom proveito
Veja vossa mãe de vós.
Ainda que eu vos vi
Est'outro dia folgar
E não quisestes bailar,
Nem cantar presente mi...»

Inês

Na voda de seu avô,
Ou onde me viu ora ele?
Lianor Vaz, este é ele?

Lianor

Lede a carta sem dó,
Que inda eu são contente dele.

Prossegue Inês Pereira a carta:

«Nem cantar presente mi.
Pois Deos sabe a rebentinha
Que me fizestes então.
Ora, Inês, que hajais bênção
De vosso pai e a minha,
Que venha isto a concrusão.
E rogo-vos como amiga,
Que samicas vós sereis,
Que de parte me faleis
Antes que outrem vo-lo diga.
E, se não fiais de mi,
Esteja vossa mãe aí,
E Lianor Vaz de presente.
Veremos se sois contente
Que casemos na boa hora.»

Inês

Des que nasci até agora
Não vi tal vilão com'este,
Nem tanto fora de mão!

Lianor

Não queirais ser tão senhora.
Casa, filha, que te preste,
Não percas a ocasião.
Queres casar a prazer
No tempo d'agora, Inês?
Antes casa, em que te pês,
Que não é tempo d'escolher.
Sempre eu ouvi dizer:
«Ou seja sapo ou sapinho,
Ou marido ou maridinho,
Tenha o que houver mister.»
Este é o certo caminho.

Mãe

Pardeus, amiga, essa é ela!
«Mata o cavalo de sela
E bom é o asno que me leva».
Filha, «no Chão de Couce
Quem não puder andar choute.»
E: «mais quero eu quem m'adore
Que quem faça com que chore».
Chamá-lo-ei, Inês?

Inês

Si.
Venha e veja-me a mi.
Quero ver quando me vir
Se perderá o presumir
Logo em chegando aqui,
Pera me fartar de rir.

Mãe

Touca-te, se cá vier
Pois que pera casar anda.

Inês

Essa é boa demanda!
Cerimónias há mister
Homem que tal carta manda?
Eu o estou cá pintando:
Sabeis, mãe, que eu adivinho?
Deve ser um vilãozinho
Ei-lo, se vem penteando:
Será com algum ancinho?

Aqui vem Pêro Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gabão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante, e vem dizendo:

Pêro Marques

Homem que vai aonde eu vou
Não se deve de correr
Ria embora quem quiser
Que eu em meu siso estou.
Não sei onde mora aqui...
Olhai que m'esquece a mi!
Eu creo que nesta rua...
E esta parreira é sua.
Já conheço que é aqui.
Chega Pêro Marques aonde elas estão, e diz:
Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir cá...
Eu vos escrevi de lá
Ũa cartinha, senhora...
E assi que de maneira...

Mãe

Tomai aquela cadeira.

Pêro Marques

E que val aqui uma destas?

Inês (à parte)

Ó Jesu! que João das bestas!
Olhai aquela canseira!

Assentou-se com as costas pera elas, e diz:

Pêro Marques

Eu cuido que não estou bem...

Mãe

Como vos chamais, amigo?

Pêro Marques

Eu Pêro Marques me digo,
Como meu pai que Deos tem.
Faleceu, perdoe-lhe Deos,
Que fora bem escusado,
E ficamos dous eréos.
Porém meu é o mor gado.

Mãe

De morgado é vosso estado?
Isso viria dos céus.

Pêro Marques

Mais gado tenho eu já quanto,
E o mor de todo o gado,
Digo maior algum tanto.
E desejo ser casado,
Prouguesse ao Espírito Santo,
Com Inês, que eu me espanto
Quem me fez seu namorado.
Parece moça de bem,
E eu de bem, er também.
Ora vós er ide vendo
Se lhe vem milhor ninguém,
A segundo o que eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui
Pêras da minha pereira...
Hão-de estar na derradeira.
Tende ora, Inês, per i.

Inês

E isso hei-de ter na mão?

Pêro Marques

Deitae as peas no chão.

Inês

As perlas pera enfiar..
Três chocalhos e um novelo...
E as peias no capelo...
E as pêras? Onde estão?

Pêro Marques

Nunca tal me aconteceu!
Algum rapaz m'as comeu...
Que as meti no capelo,
E ficou aqui o novelo,
E o pente não se perdeu.
Pois trazia-as de boa mente...

Inês

Fresco vinha aí o presente
Com folhinhas borrifadas!

Pêro Marques

Não, que elas vinham chentadas
Cá em fundo no mais quente.
Vossa mãe foi-se? Ora bem...
Sós nos leixou ela assi?...
Cant'eu quero-me ir daqui,
Não diga algum demo alguém...

Inês

Vós que me havíeis de fazer?
Nem ninguém que há-de dizer?

(à parte)

O galante despejado!.

Pêro Marques

Se eu fora já casado,
D'outra arte havia de ser
Como homem de bom recado.

Inês (à parte)

Quão desviado este está!
Todos andam por caçar
Suas damas sem casar
E este... tomade-o lá!.

Pêro Marques

Vossa mãe é lá no muro?

Inês

Minha mãe eu vos seguro
Que ela venha cá dormir

Pêro Marques

Pois, senhora, eu quero-me ir
Antes que venha o escuro.

Inês

E não cureis mais de vir.

Pêro Marques

Virá cá Lianor Vaz,
Veremos que lhe dizeis...

Inês

Homem, não aporfieis,
Que não quero, nem me apraz.
Ide casar a Cascais.

Pêro Marques

Não vos anojarei mais,
Ainda que saiba estalar;
E prometo não casar
Até que vós não queirais.

Pêro vai-se, resmungando, à parte:

Estas vos são elas a vós:
Anda homem a gastar calçado,
E quando cuida que é aviado,
Escarnefucham de vós!
Creo que lá fica a pea...
Pardeus! Bô ia eu à aldeia!

Volta, dirigindo-se a Inês:

Senhora, cá fica o fato?

Inês

Olhai se o levou o gato...

Pêro Marques

Inda não tendes candea?
Ponho per cajo que alguém
Vem como eu vim agora,
E vos acha só a tal hora:
Parece-vos que será bem?
Ficai-vos ora com Deos:
Çarrai a porta sobre vós
Com vossa candeazinha.
E sicais sereis vós minha,
Entonces veremos nós...

(Vai-se Pêro Marques e diz Inês Pereira:)

Inês

Pessoa conheço eu
Que levara outro caminho...
Casai lá com um vilãozinho,
Mais covarde que um judeu!
Se fora outro homem agora,
E me topara a tal hora,
Estando assi às escuras,
Dissera-me mil doçuras,
Ainda que mais não fora...

(Vem a Mãe e diz:)

Mãe

Pêro Marques foi-se já?

Inês

E pera que era ele aqui?

Mãe

E não t'agrada ele a ti?

Inês

Vá-se muitieramá!
Que sempre disse e direi:
Mãe, eu me não casarei
Senão com homem discreto,
E assi vo-lo prometo
Ou antes o leixarei.
Que seja homem mal feito,
Feio, pobre, sem feição,
Como tiver discrição,
Não lhe quero mais proveito.
E saiba tanger viola,
E coma eu pão e cebola.
Siquer uma cantiguinha!
Discreto, feito em farinha,
Porque isto me degola.

Mãe

Sempre tu hás-de bailar
E sempre ele há-de tanger?
Se não tiveres que comer
O tanger te há-de fartar?

Inês

Cada louco com sua teima.
Com uma borda de boleima
E uma vez d'água fria,
Não quero mais cada dia.

Mãe

Como às vezes isso queima!
E que é desses escudeiros?

Inês

Eu falei ontem ali
Que passaram por aqui
Os judeos casamenteiros
E hão-de vir agora aqui.

Aqui entram os Judeus casamenteiros, um, Latão, e outro, Vidal e diz Latão:

Latão

Ou de cá!

Inês

Quem está lá?

Vidal

Nome del Deu, aqui somos!

Latão

Não sabeis quão longe fomos!

Vidal

Corremos a iramá.
Este e eu.

Latão

Eu, e este...

Vidal

Pola lama e polo pó,
Que era pera haver dó,
Com chuva, sol e Nordeste.
Foi a coisa de maneira,
Tal friúra e tal canseira,
Que trago as tripas maçadas.
Assi me fadem boas fadas
Que me saltou caganeira!
Pera vossa mercê ver
O que nos encomendou.

Latão

O que nos encomendou
Será o que hoiver de ser
Todo este mundo é fadiga
Vós dixestes, fiiha amiga,
Que vos buscássemos logo...

Vidal

E logo pujemos fogo...

Latão

Cala-te!

Vidal

Não queres que diga?
Não fui eu também contigo?
Tu e eu não somos eu?
Tu judeu e eu judeu,
Não somos massa dum trigo?

Latão

Leixa-me falar.

Vidal

Já calo.
Senhora, fomos... agora falo,
Ou falas tu?

Latão

Dize, que dizias?
Que foste, que fomos, que ias
Buscá-lo, esgravatá-lo...

Vidal

Vós, amor, quereis marido
Mui discreto, e de viola?

Latão

Esta moça não é tola,
Que quer casar per sentido...

Vidal

Judeu, queres-me leixar?

Latão

Leixo, não quero falar

Vidal

Buscámo-lo...

Latão

Demo foi logo!
Crede que o vosso rogo
Vencerá o Tejo e o mar
Eu cuido que falo e calo...
Calo eu agora ou não?
Ou falo se vem à mão?
Não digas que não te falo.

Inês

Jesu! Guarde-me ora Deus!
Não falará um de vós?
Já queria saber isso...

Mãe

Que siso, Inês, que siso
Tens debaixo desses véus...

Inês

Diz o exemplo da velha:
«O que não haveis de comer
Leixai-o a outrem mexer».

Mãe

Eu não sei quem t'aconselha...

Inês

Enfim, que novas trazeis?

Vidal

O marido que quereis,
De viola e dessa sorte,
Não no há senão na corte
Que cá não no achareis.
Falámos a Badajoz,
Músico, discreto, solteiro.
Este fora o verdadeiro,
Mas soltou-se-nos da noz.
Fomos a Vilhacastim
E falou-nos em latim:
– «Vinde cá daqui a uma hora,
E trazei-me essa senhora».

Inês

Assi que é tudo nada enfim!

Vidal

Esperai, aguardai ora!
Soubemos dum escudeiro
De feição d'atafoneiro
Que virá logo essora,
Que fala... e com' ora fala!
Estrugirá esta sala.
E tange... e com' ora tange!
E alcança quanto abrange,
E se preza bem da gala.

Vem o Escudeiro, com seu Moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando só:

Escudeiro

Se esta senhora é tal
Como os Judeus ma gabaram,
Certo os anjos a pintaram,
E não pode ser i al.
Diz que os olhos com que via
Foram de Santa Luzia,
Cabelos, da Madanela...
Se fosse moça tão bela,
Como donzela seria?
Moça de vila será ela
Com sinalzinho postiço,
E sarnosa no toutiço,
Como burra de Castela.
Eu, assi como chegar
Cumpre-me bem atentar
Se é garrida, se honesta,
Porque o milhor da festa
É achar siso e calar.


Mãe (Falando para Inês)

Se este escudeiro há-de vir
E é homem de discrição,
Hás-te de pôr em feição,
De falar pouco e não rir
E mais, Inês, não muito olhar
E muito chão o menear
Por que te julguem por muda,
Porque a moça sesuda
É uma perla pera amar.

Escudeiro (Falando para o criado)

Olha cá, Fernando, eu vou
Ver a com que hei-de casar.
Avisa-te, que hás-de estar
Sem barrete onde eu estou.

Moço (à parte)

Como a rei! Corpo de mi!
Mui bem vai isso assi...

Escudeiro

E, se cuspir, pola ventura,
Põe-lhe o pé e faz mesura.

Moço (à parte)

Ainda eu isso não vi!

Escudeiro

E se me vires mentir
Gabando-me de privado,
Está tu dissimulado,
Ou sai-te pera fora a rir
Isto te aviso daqui,
Faze-o por amor de mi.

Moço

Porém, senhor digo eu
Que mau calçado é o meu
Pera estas vistas assi.

Escudeiro

Que farei, que o sapateiro
Não tem solas nem tem pele?

Moço

Sapatos me daria ele,
Se me vós désseis dinheiro...

Escudeiro

Eu o haverei agora.
E mais calças te prometo.

Moço (à parte)

Homem que não tem nem preto,
Casa muito na má hora.

Chega o Escudeiro onde está Inês Pereira, e levantam-se todos, e fazem suas mesuras, e diz o Escudeiro:

Escudeiro

Antes que mais diga agora,
Deus vos salve, fresca rosa,
E vos dê por minha esposa,
Por mulher e por senhora;
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzela,
Que vós sois, minha alma, aquela
Que eu busco e que desejo.
Obrou bem a Natureza
Em vos dar tal condição
Que amais a discrição
Muito mais que a riqueza.
Bem parece
Que a discrição merece
Gozar vossa fermosura,
Que é tal que, de ventura,
Outra tal não se acontece.
Senhora, eu me contento
Receber vos como estais:
Se vós vos não contentais,
O vosso contentamento
Pode falecer no mais.

Latão (a Vidal)

Como fala!

Vidal

E ela como se cala!
Tem atento o ouvido...
Este há-de ser seu marido,
Segundo a coisa s'abala.

Escudeiro

Eu não tenho mais de meu,
Somente ser comprador
Do Marichal meu senhor
E são escudeiro seu.
Sei bem ler
E muito bem escrever
E bom jogador de bola,
E quanto a tanger viola,
Logo me vereis tanger
Moço, que estais lá olhando?

Moço

Que manda Vossa Mercê?

Escudeiro

Que venhais cá.

Moço

Pera quê?

Escudeiro

Por que faças o que eu mando!

Moço

Logo vou.

(à parte)

O Diabo me tomou:
Sair me de João Montês
Por servir um tavanês
Mor doudo que Deus criou!

Escudeiro

Fui despedir um rapaz
Que valia Perpinhão,
Por tomar este ladrão.
Moço!

Moço

Que vos praz?

Escudeiro

A viola.

Moço (à parte)

Oh! como ficará tola
Se não fosse casar ante
Co mais sáfio bargante
Que coma pão e cebola!).

(ao Escudeiro)

Ei-la aqui bem temperada,
Não tendes que temperar

Escudeiro

Faria bem de ta quebrar
Na cabeça bem migada!

Moço

E se ela é emprestada,
Quem na havia de pagar?
Meu amo, eu quero m'ir.

Escudeiro

E quando queres partir?
Moço
Ante que venha o Inverno,
Porque vós não dais governo
Pera vos ninguém servir

Escudeiro

Não dormes tu que te farte?

Moço

No chão, e o telhado por manta...
E çarra-se m'a garganta
Com fome.

Escudeiro

Isso tem arte...

Moço

Vós sempre zombais assi.

Escudeiro Oh que boas vozes tem

Esta viola aqui!
Leixa-me casar a mi,
Depois eu te farei bem.

Mãe

Agora vos digo eu
Que Inês está no Paraíso!

Inês

Que tendes de ver co isso?
Todo o mal há-de ser meu.

Mãe

Quanta doudice!

Inês

Oh! como é seca a velhice!
Leixai-me ouvir e folgar,
Que não me hei-de contentar
De casar com parvoíce.
Pode ser maior riqueza
Que um homem avisado?

Mãe

Muitas vezes, mal pecado,
é milhor boa simpreza.

Latão

Ora oivi, e oivireis.
Escudeiro, cantareis
Alguma boa cantadela.
Namorai esta donzela
E esta cantiga direis:

Canta o Judeu

«Canas do amor, canas,
canas do amor
Polo longo dum rio
Canaval vi florido,
Canas do amo.»

Canta o Escudeiro o romance «Mal me quieren en Castilla» e diz Vidal:

Vidal

Latão, já o sono é comigo
Como oivo cantar guaiado,
Que não vai esfandegado...

Latão

Esse é o Demo que eu digo!
Viste cantar Dona Sol:
Pelo mar voy a vela,
Vela vay pelo mar?

Vidal

Filha Inês, assi vivais
Que tomeis esse senhor
Escudeiro cantador
E caçador de pardais,
Sabedor revolvedor
Falador gracejador
Afoitado pela mão,
E sabe de gavião...
Tomai-o por meu amor.
Podeis topar um rabugento,
Desmazelado, baboso,
Descancarado, brigoso,
Medroso, carapatento.
Este escudeiro, aosadas,
Onde se derem pancadas,
Ele as há-de levar
Boas, senão apanhar..
Nele tendes boas fadas.

Mãe

Quero rir com toda a mágoa
Destes teus casamenteiros!
Nunca vi Judeus ferreiros
Aturar tão bem a frágoa.
Não te é milhor mal por mal,
Inês, um bom oficial,
Que te ganhe nessa praça,
Que é um escravo de graça,
E mais casas com teu igual?

Latão

Senhora, perdei cuidado:
O que há-de ser há-de ser;
E ninguém pode tolher
O que está determinado.

Vidal

Assi diz Rabi Zarão.

Mãe

Inês, guar'-te de rascão!
Escudeiro queres tu?

Inês

Jesu, nome de Jesu!
Quão fora sois de feição!
Já minha mãe adivinha...
Folgastes vós na verdade
Casar à vossa vontade?
Eu quero casar à minha.

Mãe

Casa, filha, muit'embora.

Escudeiro

Dai-me essa mão, senhora.

Inês

Senhor de mui boa mente.

Escudeiro

Per palavras de presente
Vos recebo desd'agora.
Nome de Deus, assi seja!
Eu, Brás da Mata, Escudeiro,
Recebo a vós, Inês Pereira
Por mulher e por parceira
Como manda a Santa Igreja.

Inês

Eu, aqui diante Deus,
Inês Pereira, recebo a vós,
Brás da Mata, sem demanda,
Como a Santa Igreja manda.

Latão

Juro al Deu! Aí somos nós!

Os Judeus ambos

Alça manim, ó dona, ha!
Arreia espeçulá.
Bento o Deu de Jacob,
Bento o Deu que a Faraó

Mãe

Espantou e espantará.
Bento o Deu de Abraão,
Benta a terra de Canão.
Para bem sejais casados!
Dai-nos cá senhos ducados.

Mãe

Amenhã vo-los darão.
Pois assi é, bem será
Que não passe isto assi.
Eu quero chegar ali
Chamar meus amigos cá,
E cantarão de terreiro.

Escudeiro

Oh! quem me fora solteiro!

Inês

Já vós vos arrependeis?

Escudeiro

Ó esposa, não faleis,
Que casar é cativeiro.

Aqui vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem a festa, e diz uma delas, per nome Luzia:

Luzia

Inês, por teu bem te seja!
Oh! que esposo e que alegria!

Inês

Venhas embora, Luzia,
E cedo t'eu assi veja.

Mãe

Ora vae tu ali, Inês,
E bailareis três por três.

Fernando

Tu connosco, Luzia, aqui,
E a desposada ali,
Ora vede qual direis.

Cantam todos a cantiga que se segue:

«Mal herida va la garça
Enamorada,
Sola va y gritos dava.
A las orillas de um rio
La garça tenia el nido;
Ballestero la ha herido
En el alma;
Sola va y gritos dava.»

E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:

Fernando

Ora, senhores honrados,
Ficai com vossa mercê,
E nosso Senhor vos dê
Com que vivais descansados.
Isto foi assi agora,
Mas melhor será outr'hora.
Perdoai pelo presente:
Foi pouco e de boa mente.
Com vossa mercê, Senhora...

Luzia

Ficai com Deus, desposados,
Com prazer e com saúde,
E sempre Ele vos ajude
Com que sejais bem logrados.

Mãe

Ficai com Deus, filha minha,
Não virei cá tão asinha.
A minha bênção hajais.
Esta casa em que ficais
Vos dou, e vou-me à casinha.
Senhor filho e senhor meu,
Pois que já Inês é vossa,
Vossa mulher e esposa,
Encomendo-vo-la eu.
E, pois que des que naceu
A outrem não conheceu,
Senão a vós, por senhor
Que lhe tenhais muito amor
Que amado sejais no céu.

Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:

Inês

Si no os huviera mirado
No penara,
Pero tampoco os mirara.

O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui agastado lhe diz:

Escudeiro

Vós cantais, Inês Pereira?
Em vodas m'andáveis vós?
Juro ao corpo de Deus
Que esta seja a derradeira!
Se vos eu vejo cantar
Eu vos farei assoviar..

Inês

Bofé, senhor meu marido,
Se vós disso sois servido,
Bem o posso eu escusar.

Escudeiro

Mas é bem que o escuseis,
E outras cousas que não digo!

Inês

Porque bradais vós comigo?

Escudeiro

Será bem que vos caleis.
E mais, sereis avisada
Que não me respondais nada,
Em que ponha fogo a tudo,
Porque o homem sesudo
Traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar
Com homem nem mulher que seja;
Nem somente ir à igreja
Não vos quero eu leixar
Já vos preguei as janelas,
Por que não vos ponhais nelas.
Estareis aqui encerrada
Nesta casa, tão fechada
Como freira d'Oudivelas.

Inês

Que pecado foi o meu?
Porque me dais tal prisão?

Escudeiro

Vós buscastes discrição,
Que culpa vos tenho eu?
Pode ser maior aviso,
Maior discrição e siso
Que guardar o meu tisouro?
Não sois vós, mulher meu ouro?
Que mal faço em guardar isso?
Vós não haveis de mandar
Em casa somente um pêlo.
Se eu disser: – isto é novelo –
Havei-lo de confirmar
E mais quando eu vier
De fora, haveis de tremer;
E cousa que vós digais
Não vos há-de valer mais
Que aquilo que eu quiser.

(para o criado)

Moço, às Partes d'Além
Me vou fazer cavaleiro.

Moço (à parte)

Se vós tivésseis dinheiro
Não seria senão bem...

Escudeiro

Tu hás-de ficar aqui.
Olha, por amor de mi,
O que faz tua senhora:
Fechá-la-ás sempre de fora.

(para Inês)

Vós lavrai, ficai per i.

Moço

Co dinheiro que leixais
Não comerei eu galinhas...

Escudeiro

Vae-te tu por essas vinhas,
Que diabo queres mais?

Moço

Olhai, olhai, como rima!
E depois de ida a vindima?

Escudeiro

Apanha desse rabisco.

Moço

Pesar ora de São Pisco!
Convidarei minha prima...
E o rabisco acabado,
Ir me-ei espojar às eiras?

Escudeiro

Vai-te per essas figueiras,
E farta-te, desmazelado!

Moço

Assi?

Escudeiro

Pois que cuidavas?
E depois virão as favas.
Conheces túbaras da terra?

Moço

I-vos vós, embora, à guerra,
Que eu vos guardarei oitavas...

Ido o Escudeiro, diz o Moço:

Senhora, o que ele mandou
Não posso menos fazer.

Inês

Pois que te dá de comer
Faze o que t'encomendou.

Moço

Vós fartai-vos de lavrar
Eu me vou desenfadar
Com essas moças lá fora:
Vós perdoai-me, senhora,
Porque vos hei-de fechar.

Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga:

Inês

«Quem bem tem e mal escolhe
Por mal que lhe venha não s'anoje.»
Renego da discrição
Comendo ò demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso
Estava a boa condição.
Cuidei que fossem cavaleiros
Fidalgos e escudeiros,
Não cheios de desvarios,
E em suas casas macios,
E na guerra lastimeiros.
Vede que cavalarias,
Vede que já mouros mata
Quem sua mulher maltrata
Sem lhe dar de paz um dia!
Sempre eu ouvi dizer
Que o homem que isto fizer
Nunca mata drago em vale
Nem mouro que chamem Ale:
E assi deve de ser.
Juro em todo meu sentido
Que se solteira me vejo,
Assi como eu desejo,
Que eu saiba escolher marido,
À boa fé, sem mau engano,
Pacífico todo o ano,
E que ande a meu mandar
Havia m'eu de vingar
Deste mal e deste dano!

Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz:

Moço

Esta carta vem d’Além
Creio que é de meu senhor.

Inês

Mostrai cá, meu guarda-mor
E veremos o que i vem.
Lê o sobrescrito.
«À mui prezada senhora
Inês Pereira da Grã,
À senhora minha irmã.»
De meu irmão...Venha embora!

Moço

Vosso irmão está em Arzila?
Eu apostarei que i vem
Nova de meu senhor também.

Inês

Já ele partiu de Tavila?

Moço

Há três meses que é passado.

Inês

Aqui virá logo recado
Se lhe vai bem, ou que faz.

Moço

Bem pequena é a carta assaz!

Inês

Carta de homem avisado.

Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:

«Muito honrada irmã,
Esforçai o coração
E tomai por devação
De querer o que Deus quiser.»
E isto que quer dizer?
«E não vos maravilheis
De cousa que o mundo faça,
Que sempre nos embaraça
Com cousas. Sabei que indo
Vosso marido fugindo
Da batalha pera a vila,
A meia légua de Arzila,
O matou um mouro pastor.»

Moço

Ó meu amo e meu senhor!

Inês

Dai-me vós cá essa chave
E i buscar vossa vida.

Moço

Oh que triste despedida!

Inês

Mas que nova tão suave!
Desatado é o nó.
Se eu por ele ponho dó,
O Diabo me arrebente!
Pera mim era valente,
E matou-o um mouro só!
Guardar de cavaleirão,
Barbudo, repetenado,
Que em figura de avisado
É malino e sotrancão.
Agora quero tomar
Pera boa vida gozar,
Um muito manso marido.
Não no quero já sabido,
Pois tão caro há de custar.

Aqui vem Lianor Vaz, e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz:

Lianor

Como estais, Inês Pereira?

Inês

Muito triste, Lianor Vaz.

Lianor

Que fareis ao que Deus faz?

Inês

Casei por minha canseira.

Lianor

Se ficaste prenhe basta.

Inês

Bem quisera eu dele casta,
Mas não quis minha ventura.

Lianor

Filha, não tomeis tristura,
Que a morte a todos gasta.
O que havedes de fazer?
Casade-vos, filha minha.

Inês

Jesu! Jesu! Tão asinha!
Isso me haveis de dizer?
Quem perdeu um tal marido,
Tão discreto e tão sabido,
E tão amigo de minha vida?

Lianor

Dai isso por esquecido,
E buscai outra guarida.
Pêro Marques tem, que herdou,
Fazenda de mil cruzados.
Mas vós quereis avisados...

Inês

Não! já esse tempo passou.
Sobre quantos mestres são
Experiência dá lição.

Lianor

Pois tendes esse saber
Querei ora a quem vos quer
Dai ò demo a opinião.

Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo:

Inês

Andar! Pêro Marques seja.
Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
E não cavalo folão.
Antes lebre que leão,
Antes lavrador que Nero.

Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor Vaz:

Lianor

Nô mais cerimónias agora;
Abraçai Inês Pereira
Por mulher e por parceira.

Pêro Marques

Há homem empacho, má-hora,
Cant'a dizer abraçar..
Depois que a eu usar
Entonces poderá ser:

Inês (à parte)

Não lhe quero mais saber
Já me quero contentar...

Lianor

Ora dai-me essa mão cá.
Sabeis as palavras, si?

Pêro Marques

Ensinaram-mas a mi,
Porém esquecem-me já...

Lianor

Ora dizei como digo.

Pêro Marques

E tendes vós aqui trigo
Pera nos jeitar por riba?

Lianor

Inda é cedo... Como rima!

Pêro Marques

Soma, vós casais comigo,
E eu com vosco, pardelhas!
Não cumpre aqui mais falar
E quando vos eu negar
Que me cortem as orelhas.

Lianor

Vou-me, ficai-vos embora.

Inês

Marido, sairei eu agora,
Que há muito que não saí?

Pêro Marques

Si, mulher saí-vos i,
Qu'eu me irei pera fora.

Inês

Marido, não digo isso.

Pêro Marques

Pois que dizeis vós, mulher?

Inês

Ir folgar onde eu quiser

Pêro Marques

I onde quiserdes ir,
Vinde quando quiserdes vir
Estai onde quiserdes estar.
Com que podeis vós folgar
Qu'eu não deva consentir?

Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz:

Señores, por caridad
Dad limosna al dolorido
Ermitaño de Cupido
Para siempre en soledad.
Pues su siervo soy nacido.
Por ejemplo,
Me meti en su santo templo
Ermitaño en pobre ermita,
Fabricada de infinita
Tristeza en que contemplo,
Adonde rezo mis horas
Y mis dias y mis años,
Mis servicios y mis daños,
Donde tu, mi alma, Iloras
El fin de tantos engaños.
Y acabando
Las horas, todas llorando,
Tomo las cuentas una y una,
Con que tomo a la fortuna
Cuenta del mal en que ando,
Sin esperar paga alguna.
Y ansi sin esperanza
De cobrar lo merecido,
Sirvo alli mis dias Cupido
Con tanto amor sin mudanza,
Que soy su santo escogido.
Ó señores,
Los que bien os va d'amores,
Dad limosna al sin holgura,
Que habita en sierra oscura,
Uno de los amadores
Que tuvo menos ventura.
Y rogaré al Dios de mi,
En quien mis sentìdos traigo,
Que recibais mejor pago
De lo que yo recebi
En esta vida que hago.
Y rezaré
Com gran devocion y fé,
Que Dios os libre d’engaño,
Que esso me hizo ermitaño,
Y pera siempre seré,
Pues pera siempre es mi daño.

Inês

Olhai cá, marido amigo,
Eu tenho por devação
Dar esmola a um ermitão.
E não vades vós comigo

Pêro Marques

I-vos embora, mulher
Não tenho lá que fazer

(Inês fala a sós com o Ermitão):

Tomai a esmola, padre, lá,
Pois que Deus vos trouxe aqui.

Ermitão

Sea por amor de mi
Vuesa buena caridad.
Deo gratias, mi señora!
La limosna mata el pecado,
Pero vos teneis cuidado
De matar-me cada hora.
Deveis saber
Para merced me hacer
Que por vos soy ermitaño.
Y aun más os desengaño:
Que esperanças de os ver
Me hizieron vestir tal paño.

Inês

Jesu, Jesu! manas minhas!
Sois vós aquele que um dia
Em casa de minha tia
Me mandastes camarinhas,
E quando aprendia a lavrar
Mandáveis-me tanta cousinha?
Eu era ainda Inesinha,
Não vos queria falar.

Ermitão

Señora, tengo-os servido
Y vos a mi despreciado;
Haced que el tiempo pasado
No se cuente por perdido.

Inês

Padre, mui bem vos entendo
Ó demo vos encomendo,
Que bem sabeis vós pedir!
Eu determino lá d'ir
À ermida, Deus querendo.

Ermitão

E quando?

Inês

I-vos, meu santo,
Que eu irei um dia destes
Muito cedo, muito prestes.

Ermitão

Señora, yo me voy en tanto.

(Inês torna para Pêro Marques):

Inês

Em tudo é boa a concrusão.
Marido, aquele ermitão
É um anjinho de Deus...

Pêro Marques

Corregê vós esses véus
E ponde-vos em feição.

Inês

Sabeis vós o que eu queria?

Pêro Marques

Que quereis, minha mulher?

Inês

Que houvésseis por prazer
De irmos lá em romaria.

Pêro Marques

Seja logo, sem deter

Inês

Este caminho é comprido...
Contai uma história, marido.

Pêro Marques

Bofá que me praz, mulher

Inês

Passemos primeiro o rio.
Descalçai-vos.

Pêro Marques

E pois como?

Inês

E levar me-eis no ombro,
Não me corte a madre o frio.

Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:

Inês

Marido, assi me levade.

Pêro Marques

Ides à vossa vontade?

Inês

Como estar no Paraíso!

Pêro Marques

Muito folgo eu com isso.

Inês

Esperade ora, esperade!
Olhai que lousas aquelas,
Pera poer as talhas nelas!

Pêro Marques

Quereis que as leve?

Inês

Si.
Uma aqui e outra aqui.
Oh como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?

Pêro Marques

Eu não saberei entoar..

Inês

Pois eu hei só de cantar
E vós me respondereis
Cada vez que eu acabar:
«Pois assi se fazem as cousas».
Canta Inês Pereira:

Inês

«Marido cuco me levades
E mais duas lousas.»

Pêro Marques

«Pois assi se fazem as cousas.»

Inês

«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos amo.
Sempre fostes percebido
Pera gamo.
Carregado ides, noss'amo,
Com duas lousas.»

Pêro Marques

«Pois assi se fazem as cousas»

Inês

«Bem sabedes vós, marido,
Quanto vos quero.
Sempre fostes percebido
Pera cervo.
Agora vos tomou o demo
Com duas lousas.»

Pêro Marques

«Pois assi se fazem as cousas.»

E assi se vão, e se acaba o dito Auto.