Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/Prólogo no Céu
Sua antiga harmonia o sol unindo
D'irmans espheras ás rivaes canções,
A carreira prescripta vai seguindo
Com sonoro estampido de trovões.
Aos anjos fortalece o seu aspecto,
Embora concebel-o ninguem possa;
Como é grande, Senhor, inexcrutavel
Qual no dia primeiro a obra vossa!
E rapida, e tão rapida que espanta
Em toda a sua pompa gira a terra;
Do paraiso a luz alterna santa,
Com densa noite que de escura atterra ;
Rebenta o mar em vagas espumantes
Ao pé das rochas com bramir profundo,
E rochedos e mar são arrastados
Na carreira veloz que arrasta o mundo.
E tempestades voam furiosas
Do mar ás terras e da terra aos mares,
Uma corrente formam poderosas
Que té o fundo penetra o solo e os ares;
Pelo trilho do raio chammejante,
A lavareda brilha assoladora,
Mas teus servos, Senhor, fieis adoram
De tua luz a marcha creadora.
Aos anjos fortalece o vasto aspecto,
Embora conceber-vos ninguem possa,
Como é grande, Senhor, inexcrutavel.
Qual no dia primeiro a obra vossa.
Pois que, Senhor, de novo te approximas
E como vão no mundo me perguntas
As cousas, tu que sempre com agrado
Me recebeste; aqui me tens agora
No meio de teus famulos. Perdoa,
Não sei usar de phrase altisonante,
Embora-de mim zombe est'assembléa.
Minha emphase ao riso te movera
Se do riso não foras desaffeito.
Do sol fallar não sei nem das espheras
Vejo só como os homens se affadigam.
O Deusinho do mundo é sempre o mesmo
E tão extravagante como era
Em seu primeiro dia. Mais ditoso
Vivera, se da luz celeste um raio
Lhe não houvesses dado. Denomina-o
Razão e só lhe serve de tornar-se
Mais que os brutos brutal. Acho que imita,
Dê-me licença vossa senhoria,
As inquietas, garrulas cigarras
Que saltam, pulam, esvoaçam, correm
E de novo repetem lá na relva
Seu antigo gritar. Se nella ao menos
Socegado ficasse! Não ha lixo
Em que o nariz não metta.
Que contar-me
Outra lôa não tens? Sempre queixumes !
Nunca ha de na terra existir cousa
Que contentar-te possa ?
Senhor, nunca.
Máo deveras é tudo como sempre;
Em seus dias de dor causam-me os homens
Tal pena que nem posso atormental-os.
Fausto conheces ?
O Doutor?
Meu servo.
Maneira singular tem de servir-vos,
Por minha fé. Não é terreno o pasto
Desse insensato; impelle-o á immensidade
Agitação secreta, e consciencia
Tem de sua loucura. Aos ceus inveja
As mais bellas estrellas, e da terra
Os gosos summos alcançar cubiça,
E quanto perto tem, quanto affastado,
O inquieto peito não lhe acalma.
Se no erro involvido inda me serve,
Hei de prestes guial-o á claridade.
Quando ao nascer a arvore verdeja,
Conhece o hortelão que flor e fructo
Em seus annos futuros ha de dar-lhe.
E quanto apostais vós qu'inda se perde,
Se licença me derdes de leval-o
Suavemente pelo meu caminho?
Em quanto elle viver vida terrena
Não te é prohibido exp'rimental-o.
Está sujeito a errar emquanto lucta
O homem.
Agradeço-vos, pois nunca
Soube haver-me com mortos. O meu gosto
São rubicundas e sadias faces,
Cadaveres não quero; faço o mesmo
Que o gato com o rato.
Eu t'o entrego!
Esse espirito arreda da primeira
Origem sua e se vencel-o podes,
A tua-senda tortuosa o guia;
Mas de pejo te cobre se te é força
Confessar que lidando em treva escura,
Sente o homem honrado o bom caminho.
Ora bem! Muito tempo não preciso,
Desta aposta que fiz nada receio.
Se meu intento logro, tu permitte
Que cante em altas vozes o triumpho.
Qual a famosa serpe, minha tia,
Ha de comer com gosto o pó da terra.
Poderás nisso andar a teu talante;
Nunca a teus similhantes odio tive.
De todos os espiritos que negam
O velhaco me é menos pesado.
Afírouxa o homem prompto a actividade
E em molle indolencia se deleita,
Porisso companheiro dar-lhe folgo
Que o excite e punja, e tome parte
Da creação na obra, como démo..
Mas vós de Deus a verdadeira prole
Da belleza gosae fecunda e viva!
D'amor nos doces laços vos involva
A substancia que eterna vive e obra,
Fixae com pensamentos perduraveis
O que fluctua em vagas apparencias.
Lá de tempos a tempos me divirto
Com visitar o velho e tomo tento
Em não romper com elle. É mui bonito
Da parte de senhor tão poderoso
C'o diabo fallar humanamente.