Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro IX
Quarto pequeno e limpinho. Uma porta ao fundo, outra ao lado, e janela do oposto. Uma mesa composta, com o seu pano. Um engenho de fiar. Um armário com chave. Um leito com cortinado. Uma poltrona. Um espelho. É ao cair da tarde.
Cena I
editarMARGARIDA, acabando de arranjar as tranças
Tomara inda saber quem era o cavalheiro!
Presença mais gentil! E o rosto? verdadeiro
retrato de um fidalgo. Até no atrevimento
bem demonstrou que o era.
(Vai-se pela porta do lado, fechando-a por fora à chave)
Cena II
editarFAUSTO e MEFISTÓFELES, os quais, passado pouco tempo da saída de Margarida, entram pela porta do fundo.
MEFISTÓFELES
Está-lhe no aposento,
Doutor! Entre animoso e sem ruído.
FAUSTO (após algum silêncio)
Peço
que me deixes sozinho.
MEFISTÓFELES (pesquisando por todos os cantos)
Inda não vi, confesso,
casa de rapariga em tão completo arranjo!
(Sai)
Cena III
editarFAUSTO (só)
(Lançando os olhos à roda de si)
Clarão crepuscular, bem-vindo ao céu deste anjo! Descei-me ao coração, mágoas de amor mimosas, que a esp’rança alimentais como o rocio às rosas. Ave do paraíso, em teu cerrado ninho não vejo senão paz, contentamento, alinho. Oh! que rica pobreza, oh! que prisão risonha!
(Dá consigo para cima da poltrona de coiro, que está ao pé da cama. Fala com a poltrona.)
Permite que um estranho o peso em ti deponha da ventura que o enche e o assoberba. Amigo, que em teus braços fieis, desde o bom tempo antigo, constante hás acolhido os gostos e os pesares de cada possessor destes quietos lares; hereditário trono, enquanto aqui repousas, que de ranchos pueris, volúveis mariposas te haverão rodeado a rir de idade a idade! Aqui, a que hoje admiro esplêndida beldade, viria em pequenina, afável, jubilosa, em noite de Natal beijar a mão rugosa do avô, e agradecer-lhe os bolos de regalo com que ele a alvoroçava ao descantar do galo. Ai, virgem graciosa, aqui neste recinto como que andar-me em torno a ciciar pressinto essa alma arranjadeira, amena, dadivosa, que te inspira qual mãe, te ensina cuidadosa a pôr na limpa mesa o seu pano asseado, e a realçar com a areia o solho escasqueado. Cara mão divinal, fazes de uma choupana um Éden terreal.
(Levanta-se, e corre a cortina do leito)
E aqui! aqui! Não sei de que ávida tremura padeço e gozo o assalto. Ai, sonhos de ventura, durai-me, se podeis, por horas esquecidas. Foi aqui, puro amor, que uniste duas vidas num êxtase dos teus, e à terra a glória deste de obter, fruto de um beijo, um serafim celeste. Aqui jazeu criança, arfando o terno seio de vivaz sangue ardente e de porvir tão cheio, e aqui foi pouco a pouco enfim, toda pureza, unindo em si os dons da perenal beleza,
(Fala indignado consigo mesmo)
A que vieste aqui? Todo eu sou comoção. Que intentas? Que pesar te oprime o coração? Já não és, pobre Fausto, o mesmo que eras dantes.
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Terá magia este ar? Eu, que inda há dois instantes aos deleites carnais voava audaz, faminto, como é que num relance enternecer-me sinto? Somos acaso nós e os nossos sentimentos um vil joguete do ar, qual chama exposta aos ventos?
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Mas se ela agora entrasse! Ideia qual seria a justa punição de tanta aleivosia! Cair-lhe-ias aos pés, convulso, fulminado, bravo Dom João Tenório em Jan Ninguém tornado! </poem>
Cena IV
editarFAUSTO, e MEFISTÓFELES, que entra correndo da porta do fundo
MEFISTÓFELES (açodado)
Fuja, que já vem perto.
FAUSTO
E é de repente. Juro
nunca mais arriscar-me a semelhante apuro.
MEFISTÓFELES
Aqui lhe trago um cofre, e não é nada leve.
Pilhei-o onde eu cá sei. Meta-o no armário, e breve!
Afirmo-lhe que a moça em vendo o conteúdo,
fica fora de si. Não faço rol miúdo
por não no demorar. São certas prendasitas
que vencem geralmente a feias e a bonitas,
Sei que esta é doutra massa... Adeus! toda a criança
é criança, e um bonito é sempre uma festança.
(Abre-o e mostra-o de relance a Fausto, sem que os espectadores vejam o conteúdo)
FAUSTO
Não sei se devo ousar...
MEFISTÓFELES
E inda o pergunta?... salvo
se prefere deixar a rapariga em alvo,
e fugir co’o presente; e acho que assim faria
muito melhor negócio: o tempo que perdia,
gasta-o a passear; e eu cá lucro igualmente
em não aturar mais um amo impertinente.
Dou que isso no Doutor não vem de ser avaro.
À fé de diabo amigo, eu já não sei, meu caro,
o que lhe hei-de fazer, por mais que esfregue a testa.
(Põe o cofre no armário e dá volta à chave)
Abalar! abalar! Agora o que nos resta
é deixar livre o campo, e tempo à jovem fada
para se lhe mudar de esquiva em namorada.
(Fausto tem-se ido fazendo sorumbático)
Que é isso, meu Doutor? Porque se pôs mazombo?
que chega a atarantar-me? É tal e qual, não zombo,
a carranca de um lente, indo tomar assento
no claustro pleno, e ao dar co’os olhos no espavento
do corpo catedral, que é ter diante a Física
toda como um fantasma, e toda a Metafísica.
Ponhamo-nos ao fresco. Aí vem a nossa bela
já perto desta porta.
(Apontando para a porta do fundo)
Aquela! por aquela!
(Vão-se precipitadamente, enquanto Margarida abre da parte de fora, a porta do lado, e entra.)
Cena V
editarMARGARIDA, (trazendo na mão uma lanterna, que põe em cima da mesa)
Ai que ar abafadiço o deste quarto agora!
(Abre a janela)
Mas corre bem fresquinha a noite lá por fora.
Sinto-me não sei como; estou co’uns arrepios!...
Tomara eu já que a mãe... (Credo! olha o mocho aos pios)
tornasse para casa. É celebre! Esta noite
chego a não me entender; preciso quem me afoite.
(Começa a despir-se cantando)
Reinava em Tule algum dia
um bom Rei tão fino amante,
que até morrer foi constante
à dama com quem vivia.
À hora do passamento
deixou-lhe ela um vaso d’oiro,
que foi do Real tesoiro
o mais falado ornamento.
Punham-lho sempre na mesa;
só por aquele bebia;
e o choro que então vertia
causava a todo tristeza.
Vendo o seu termo chegado,
repartiu pelos herdeiros
os bens, té aos derradeiros,
excepto o vaso adorado.
Foi isto em jantar de mágoas
que El-Rei deu à fidalguia,
em torre herdada que havia
ao rés das marinhas águas.
Como El-Rei houve bebido
o seu último conforto,
co’o braço já quase morto
levanta o vaso querido,
e por não deixá-lo ao mundo,
da janela ao mar o atira.
Ondeia o vaso, revira,
enche-se, e desce ao profundo.
No mesmo triste momento
em que o vaso se abismava,
o Rei seus olhos cerrava,
soltando o último alento.
(Abre o armário para arrumar os vestidos, e dá com os olhos no cofre)
Quem poria isto aqui! Meu Deus, eu sei de certo
que não deixei ficar o guarda-fato aberto.
Parece até milagre. É lindo o cofrezinho.
Que haverá dentro nele?... Ah!... cuido que adivinho;
é coisa de penhor que algum necessitado
traria a minha mãe. Tem um fitilho atado,
e presa uma chavinha... Abro ou não abro?... Adeus!
O ver não é furtar. Que escrúpulos os meus!
(Traz o cofre para cima da mesa e abre-o)
Que é isto, Pai do céu! Nunca em dias de vida
vi jamais coisa assim, tão linda, tão luzida.
E adereço completo! A mais rica senhora
com isto num domingo, em festa grande, fora
levar atrás de si o olhar de toda a gente.
Que bem que este colar aqui
(indicando a garganta)
tão refulgente
me havia de ficar! A quem pertenceria
tão vistoso tesoiro!
(Enfeita-se com as jóias, e mira-se ao espelho)
Eu nada mais queria
que estes brincos. A gente, assim paramentada,
té nem parece a mesma. A moça e linda agrada,
é bem certo; contudo os próprios que a elogiam
não se matam por ela: apenas principiam
a lembrar-se que é pobre, os gabos da lindeza
já vão juntos co’o dó. Coitada da pobreza!!