Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro XIX
Rua, com casas de ambos os lados, entre as quais, mais perto da boca do teatro, - da direita a casa de Marta, - da esquerda a de Margarida, com duas sacadas para uma varanda, onde há vasos de flores e trepadeiras, que se arqueiam por sobre as portadas. Lá ao diante, uma frontaria de Igreja. Dá meia-noite na torre do templo.
Cena I
editarVALENTIM (só)
Dantes era regalo ir a uma súcia,
daquelas onde a gente bravateia
sem ninguém lho estranhar. Cada confrade
chamava à sua a flor das raparigas,
empinava um copázio em honra dela,
e, fincando na mesa os cotovelos,
quedava-se todo ancho. Eu, do meu canto,
ia-os mui pachorrento ouvindo, ouvindo,
a sorrir-me, e a anediar este bigode;
depois, erguendo ao alto o copo cheio,
proclamava: «Não digo menos disso;
porém que iguale à minha Margarida,
nem lhe deite água às mãos, quitam buscá-la;
sou seu irmão, e ufano-me de sê-lo.»
«Toque! Faço a razão!» vozeavam todos,
todos à uma, ao terlintim dos copos.
- «Não diz nada de mais: a Margarida
é realmente a jóia das mulheres!»
Não se ouvia outra coisa; os roncadores
nem chus nem bus...
E agora! Dão-me ganas
de arrancar estas barbas de vergonha,
e esmagar numa esquina esta cabeça!
Agora, pode já qualquer patife
mirar-me de revés, e até deitar-me
sua picuinha; e eu moita, sem ousio
para me erguer sequer, suando em bagas,
que nem ruim-paguilha, atanazado
diante do credor. Fazer em postas
um bruto desses não custava muito;
mas desmenti-lo...
(Vem do fundo do teatro acercando-se Mefistófeles e Fausto, e conversando entre si sem ser ouvidos. Valentim começa a coser-se com a casa de Marta.)
Enxergo além dois vultos.
Para cá se encaminham... Vem pisando
com passo de patrulha. Alto! observemos!
Dá-me no coração que estes figuros
hão-de ser os meus dois. Se apanho o melro,
já o não largo, senão feito em postas.
Cena II
editarMEFISTÓFELES, de guitarra às costas, e FAUSTO, descendo para a boca do teatro, observados por VALENTIM, recolhido ao portal de Marta.
FAUSTO
Arde a perene alâmpada do templo.
Repara na alta fresta!
(Apontando para uma das janelas cimeiras da Igreja)
O lume santo
circunfunde-se em luz, que a pouco e pouco
vai de círculo em círculo caindo
até penumbra, e da penumbra em trevas:
imagem deste amor na escuridade.
MEFISTÓFELES
Entendo, e até já estou com farnicoques
como os do meu Doutor. Não nos comparo
co’a lâmpada da Igreja. Só me lembra
um bichano em janeiro, quando sobe,
a arrulhar e a esfregar-se, ao paraíso
do telhado, onde a bela o está chamando.
A gente como nós ama a virtude;
mas, uma vez por outra, lá se alembra
de cobiçar o alheio, e andar à tuna.
Eu só de pôr na ideia o regabofe,
que em Valburga vou ter co’o femeaço
já depois de amanhã, não tenho fibra
que não me ande a bailar dentro no corpo.
Quem perde assim a noite é quem na ganha.
FAUSTO
Vamos nós: o tesoiro soterrado
que me fizeste ver, e que inda aos olhos
me está brilhando, entregas-mo, ou que fazes?
MEFISTÓFELES
Pode desenterrar, se o leva em gosto,
por suas próprias mãos. Que panelada
de boas peças de oiro! Eu, que lho digo,
é que já noutro dia as vi com estes,
e estive-as namorando.
FAUSTO
Não me arranjas,
ademais disso, algum condigno adorno
com que eu possa arraiar a minha amante?
MEFISTÓFELES
Ah! lembrou bem! A modo que entre as loiras
enxerguei... não sei quê... de aneis, de brincos...
Nada; um colar de pérolas.
FAUSTO
Aprovo.
Quando a vou procurar co’as mãos vazias,
vexo-me.
MEFISTÓFELES
O desfrutar gratuito às vezes
também tem seu lugar.
Noite de estrelas
como esta, meu Doutor, pede um descante.
Vamos-lho dar por baixo da janela.
FAUSTO
A do seu quarto é essa, onde estão vasos,
MEFISTÓFELES
Se ainda não dorme, escutará gostosa.
São trovas de mão cheia, e sobretudo
muito morais. Assim é que as eu logro.
(Canta, acompanhando-se com a guitarra)
Que fazes, por vida minha,
à porta do namorado,
quando inda não é sol-nado,
Catarininha?
Ai, levianita, cautela,
cautela com essa entrada!
Vais donzela; mas, coitada,
sairás donzela?
Florinha, esquiva-te à aragem,
por mais que amor te prometa
que, em fugindo a borboleta,
boa viagem!
Com ave que não tem medo
bem vai ao passarinheiro.
Catarininha! primeiro,
o anel no dedo!
VALENTIM (adiantando-se furioso)
A quem vai o descante, alma danada?
Leva-te a breca a banza, e a ti com ela.
(Arranca-lhe o instrumento e quebra-o.)
MEFISTÓFELES
Escangalhou-ma, que não tem concerto.
VALENTIM (desembainhando a espada e arremetendo com Fausto)
E agora essa caveira!
MEFISTÓFELES (à parte para Fausto, e dirigindo-lhe o braço)
Alma! Não ceda,
Senhor Doutor! Cosa-se bem comigo,
que eu lhe tenteio o jogo. Ande com ele
Esgrima-me o chanfalho! Afronte os botes,
que eu lhos aparo.
VALENTIM
Apara-me este.
MEFISTÓFELES
E aparo.
VALENTIM
Mais este.
MEFISTÓFELES
Pronto.
VALENTIM
Brigo co’o diabo.
Deu-me estupor no pulso.
MEFISTÓFELES
Ande-me, acabe-o!
VALENTIM (que, varado de uma estocada de Fausto, vai estrebuchando até cair sentado no degrau da porta de Margarida, e encostado à ombreira.)
Ai!
MEFISTÓFELES
Já está manso o bruto. Agora ao fresco!
(Ouve-se vozear e abrir janelas, em várias casas da rua; depois principiam a sair das portas os moradores com luzes)
Já anda alvoratada a vizinhança.
Fugir, que vem gentio. Eu da polícia
sei muito bem safar-me; agora em coisa
de foro crime, até o demo esbarra.
(Vão-se.)
Cena III
editarVALENTIM, MARTA e MARGARIDA, primeiro, nas suas janelas e depois na rua, HOMENS e MULHERES
MARTA (com luz à janela)
Acudam!
MARGARIDA (com luz à janela)
Tragam luz!
MARTA (mais alto)
É gente aos gritos:
brigam na rua; ouvi tinir espadas.
(Os populares vêm das casas a correr com luzes.)
HOMEM DO POVO
Homem morto!
MARTA (correndo)
Onde estão os matadores?
MARGARIDA (ainda na janela)
Quem jaz aí?
HOMEM DO POVO
Jaz teu irmão.
MARGARIDA (da janela)
Socorro!
Grande Deus!
(Margarida desce à cena. Todas as mulheres estão chorando, e lamentando o caso umas com as outras.)
VALENTIM
Morro. Curto é o dito; e o feito
muito mais curto. Porque está chorando
todo esse mulherio? Aqui!... Mais perto...
Escutem-me!
(Acercam-se-lhe as mulheres)
Tu, mana Margarida,
inda estás verde em anos e em juízo;
não sabes arranjar-te. Um bom conselho,
aqui muito entre nós. De prostituta
já tu tens praça; então, marchar em frente!
a valer! a valer!
MARGARIDA
Que estás dizendo,
irmão? Meu Deus!
VALENTIM
A que vem Deus chamado
para estas coisas? Por desgraça, o feito
já ninguém to desfaz; e a ruins entranças
mais ruins saídas.
Principiaste, a ocultas,
com um; provado o bolo, acodem outros;
em se chegando à dúzia, é porta aberta.
Vem fraquinha, a princípio, a desvergonha.
Teme ser vista, embuça-se co’as trevas.
Não custava a matá-la. Como a deixam,
medra, até sair nua; e como cuida
que a desnudez a alinda, embora a afeie,
despida, ao sol, na praça, se apavona.
Dentro em bem pouco toda a gente honrada
há-de fugir de ti, rameira indigna,
como se foge de um cadáver podre.
Se alguém te encarar fito, há-de transir-te.
Não pões mais oiros. Já não vais na Igreja
para a capela mor: nem com romeiras
de rendas finas florear nas danças.
Hás-de-te encafuar numa possilga,
refúgio de pedintes e aleijados.
Talvez que Deus ao cabo te perdoe,
mas o mundo é que nunca.
MARTA
Recomende
sua alma a Deus; não ’steja a encarregá-la
com mais ódios e injúrias!
VALENTIM (para Marta)
Quem me dera
poder-te lançar mão desse arcaboiço,
alcaiota maldita! Ai! que indulgência
que indulgência plenária a que eu ganhava!
MARGARIDA
Valentim! meu irmão! ai! que suplício!
VALENTIM
Sabes que mais? Deixemos choradeiras.
Quando tu deste mate ao teu decoro,
correste-me no peito uma estocada
que me acabou.
Já a morte me adormenta.
Vou-me acordar em Deus. Fui bom soldado
e homem de bem; feneço descansado.