Fausto (traduzido por António Feliciano de Castilho)/Quadro XVII
Um chafariz
Cena I
editarMARGARIDA e LUISINHA, com os seus cântaros
LUISINHA
E a Bárbara? que tal! sabes?
MARGARIDA
Eu não: a gente
vive tão retirada!
LUISINHA
A Beatriz não mente;
foi ela que mo disse. A sonsa, a delambida,
tão cheia de fidúcia, aí ’stá também caída!
MARGARIDA
A Bárbara! ó mulher, explica-te! A pequena
que é que fez?
LUISINHA
Mete nojo. Era tão açucena,
e agora...
MARGARIDA
Agora o quê, Luisinha?
LUISINHA
Agora come
e bebe para dois, senão morria à fome.
MARGARIDA
Credo!
LUISINHA
Foi um castigo. Aquilo tinha jeito?
Sempre como carraça agarrada ao sujeito
em passeios ao campo, em dançarás, tratada
com bom doce e bom vinho, e toda empantufada
nem que fora fidalga. E então de boniteza
presunção até ali! Pois, com ser tão princesa,
chegou c’oa desvergonha até a aceitar mimos!
Tais princípios, tais fins; nós sempre o presumimos.
Do obséquio ao galanteio, um passo; do namoro,
outro ao atrevimento; e meio ao desaforo.
Assim é que a florinha, em breves audiências,
fez víspere; entendeste? Aí tens as consequências.
MARGARIDA
Coitadinha!
LUISINHA
Ah! tens dó? e eu não. A gente à roca
empregada a engordar a sua maçaroca
num quartinho fechado, e a mãe por sentinela;
e ela... imagina bem como era o serão dela!
No corredor escuro, ali ao pé da entrada,
co’o chichisbéu no banco em paz repetenada
horas e horas; que admira? o relógio aos amantes
faz de um dia uma hora, e de uma hora instantes.
Agora há-de pagar (e tenha paciência);
há-de à porta da Igreja ir fazer penitência,
beijar aquele chão, de vaso e dó trajada,
e servir de desprezo à gente recatada.
MARGARIDA
Ele há-de-a receber de certo por mulher.
LUISINHA
Espera lá por isso! ele é parvo? ele quer
levar fruta do chão, um rapaz como um maço?
Para se divertir acha-as a cada passo.
De mais a mais, que é dele? onde estará já agora,
se bem andar?
MARGARIDA
Fugiu?!
LUISINHA
Logrou-a, e foi-se embora.
MARGARIDA
Jesus, que acção tão feia!
LUISINHA
Inda que ele tornasse
e a recebesse a ela, os gostos desse enlace,
Deus me livre de os ter: vinha a rapaziada
arrancar da cabeça a c’roa à desposada,
e nós à porta dela havíamos de ir todas
lançar palha picada. Olha que lindas bodas!
(Põe o cântaro à cabeça e parte.)
Cena II
editarMARGARIDA, (só)
(Tomando também da fonte o seu cântaro, e partindo-se com ele para casa, em direcção diversa da de Luisinha)
Também eu no meu tempo, em vendo moça errada,
logo a punha por monstro: a língua era uma espada,
e feita eu própria ré de atroz descaridade
benzia-me, e ficava impando de vaidade!...
E hoje... incursa no mesmo!!
(Após alguns momentos)
Oh! Deus! mas quem podia livrar-se de um prazer, que as pedras fundiria?