C’est une âme que son âme demande [...] qui s’attache à elle avec tant de force et qui souffre avec tant de bonheur son étreinte, querien ne puisse plus les
séparer... * (nota de Machado com tradução?)

JULES SIMON


Acontecimentos imprevistos obrigaram-me a deixar a província e estabelecer-me algum tempo na corte. Foi isto no ano de 185... Os acontecimentos a que me refiro eram relativos à minha família, cujo chefe já não existia. Tinha eu ordem de demorar-me um ano na corte, depois do que voltaria à província.

Devo referir uma circunstância de interesse para o caso. Um de meus tios tinha uma filha de vinte anos, talvez bonita, mas em quem eu não reparara nunca, e a quem tinha simples afeição de parente. Era do gosto do pai que nos casássemos, e não menos do gosto dela. Duas ou três vezes que me falaram nisso respondi secamente que desejava ficar solteiro; não instaram mais; mas a esperança nunca a perderam, nem o pai nem a filha.

A explicação da minha recusa e do desamor com que eu via a minha prima estava no meu gênio solitário e contemplativo. Até os quinze anos fui tido por idiota; dos quinze aos vinte chamavam-me poeta; e, se as palavras eram diferentes, o sentido que a minha família lhes dava era o mesmo. Era pouco de ser estimado um moço que não comungava nos mesmos passatempos da casa e via correr as horas na leitura e nas digressões pelo mato.

Minha mãe era a única a quem tais instintos de isolamento não davam para rir nem para desamar. Era mãe. Muitas vezes, alta noite, quando os meus olhos se cansavam de percorrer as páginas de Atalá ou Corina, abria-se a porta do gabinete e a sua figura meiga e veneranda, como a das santas, vinha distrair-me da cansada leitura. Cedia às suas instâncias e ia repousar.

Ora, é preciso dizer, para encaminhar o espírito do leitor nesta história, que dois anos antes do tempo em que começa, tinha eu tido uma fantasia amorosa. Fantasia amorosa digo eu e não minto. Não era amor; amor foi o que eu depois senti, verdadeiro, profundo, imortal.

Para mostrar a graduação dos meus sentimentos depois desse episódio, e até para melhor demonstrar a tese que serve de título a estas páginas, devo transcrever para aqui dois manuscritos velhos. Cada um tem a sua data; o primeiro é uma lamentação, o segundo é uma resignação. Há um abismo entre ambos, como há um abismo entre aquele tempo e o tempo de hoje.

Eis o que, logo após a fantasia amorosa de que falei, veio achar-me a escrever minha adorada mãe.

* * *

Estou só. Ouço bater o mar que se quebra na praia a cinqüenta passos de mim. É o único rumor que nesta hora quebra o silêncio da noite. Fora desse sinto apenas o leve ruído da pena que corre no papel. Escrevo sem assunto e em busca de assunto. Que há de ser? Sobre a mesa tenho duas pilhas de livros. De um lado a Bíblia e Pascal, do outro Alfredo de Vigny e Lamartine. É obra do acaso e não parece: tal é o estado do meu espírito. Os três primeiros livros me chamam à contemplação ascética e às reflexões morais; os três últimos despertam os sentimentos do coração e levam meu espírito às mais elevadas regiões da fantasia.

Quero entranhar-me no mundo da reflexão e do estudo, mas o meu coração, solteiro talvez, talvez viúvo, pede-me versos ou imaginações. Triste alternativa, que para nenhuma resolução me guia! Este estado, tão comum nos que realmente se dividem entre sentir e pensar, é uma dor d’alma, é uma agonia do espírito.

De onde estou vejo o mar; a noite é clara e deixa ver as ondas que se vão quebrar à areia da praia. Uma vez solto onde irás tu, meu pensamento? Nem praias, nem ondas, nem barreiras, nem nada; tudo vences, de tudo zombas, eis-te aí livre, a correr, mar em fora, em busca de uma lembrança perdida, de uma esperança desenganada. Lá chegas, lá entras, de lá voltas ermo, triste, mudo, como o túmulo do amor perdido e tão cruelmente desflorado!

Ânsia de amar, ânsia de ser feliz, que haverá no mundo que mais nos envelheça a alma e nos faça sentir as misérias da vida? Nem é outra a miséria: esta, sim; este ermo e estas aspirações; esta solidão e estas saudades; esta tão própria sede de uma água que não há tirá-la de nenhuma Noreb, eis a miséria, eis a dor, eis a tristeza, eis o aniquilamento do espírito e do coração.

Que é o presente em tais casos? O vácuo e o nada; no passado o luzir leve e indistinto quase de uma curta ventura que passou; no futuro a estrela da esperança cintilante e viva, como uma lâmpada eterna. De onde estamos, um ansiar sem tréguas, uns íntimos impulsos a ir buscar a felicidade remota e esquiva. Do passado ao futuro, do futuro ao passado, como este mar que invade estas praias agora, e amanhã irá beijar as areias opostas, tal é a vacilação do espírito, tal é a vida ilusória do meu coração.

* * *

Que me direis vós, meus livros? Queixas e consolações. Dais-me escrito o que eu tenho a falar no interior. Queixas de um sentir sem eco, consolações de uma esperança sem desfecho. Que havíeis de dizer mais? Nada é novo; o que é, já foi e há de vir a ser. Destas dores sentir-se-ão sempre e não deixarão de sentir-se. Círculo vicioso, problema sem solução!

Lembrei o Eclesiastes. Que me dirá esse tesouro de sabedoria?

— Todas as coisas têm seu tempo, e todas elas passam debaixo do céu segundo o termo que a cada uma foi prescrito.

Há tempo de nascer e de morrer.
Há tempo de plantar e tempo de colher.
Há tempo de enfermar e tempo de sarar.
Há tempo de chorar e tempo de rir.
Há tempo de destruir e tempo de edificar.
Há tempo de afligir e tempo de se alegrar.
Há tempo de espalhar pedras e tempo de as ajuntar.
Há tempo de guerra e tempo de paz.

Assim fala o Eclesiastes. A cada coisa um tempo: eis tudo. Qual será o tempo desta coisa? Qual será o tempo daquela? Tal é a dúvida, tal é a incerteza.

Destruo agora; quando edificarei? Aflijo-me; quando me hei de alegrar? Semeio; quando hei de colher? Virá o tempo para isso... Quando? Não sei! A certeza é uma: a certeza do presente; a da destruição, a da aflição, a da plantação. O resto — mistério e abismo.

Não! Entre tantas incertezas, entre tantas ilusões, uma certeza há; há um tempo que há de vir, fatalmente, imperiosamente: o tempo de morrer. Nasci, morrerei. Oh, ciência humana! Entre a destruição e a edificação, entre a tristeza e a alegria, entre o semear e o colher, há o tempo que não é de uma nem de outra coisa, o tempo absoluto, o tempo que marca a todas as horas uma vida e uma morte, um vagido e uma agonia; o tempo do fim, infalível, fatal.

* * *

Do semear depende a colheita. Mas que terra é esta que tanto gasta em restituir o que se lhe confiou? Semeei. Dividi minha alma, esmigalhei a minha vida, e às mãos-cheias lancei os melhores fragmentos a esmo, na terra úbera e no chão pedregoso. Foi preciso cantar, cantei: era dócil a imaginação e eu deixei-a correr à solta; foi preciso chorar, chorei; as lágrimas podiam comprar a ventura; foi preciso confiar, confiei; a confiança prepara o coração e legitima os desejos. Mas ela, a planta desejada, por que se deteve no seio da terra?

* * *

Pareceu-me um dia vir surgindo verde, viçosa, como as esperanças de que eu então enchia a minha alma. Foi ilusão? Sonhava apenas? Foi realidade? Ela a sair e eu a fechar os olhos para a não ver logo, gozá-la toda, não vexá-la, não emurchecê-la com o meu hálito ou amofiná-la com o meu olhar sequioso. Quando os abri não a vi mais. Quebrou-a o vento. Foi simples ilusão de meu desejo? Não sei; sei que desaparecera.

* * *

Há tempo de guerra e de paz, diz o Eclesiastes.

E no meio da guerra é que melhor se apreciam os benefícios da paz.

Em peleja ando, incessante e ardente. Tréguas tenho tido; a paz não passou ainda de um sonho.

Os inimigos são aos centos. Luto pela dignidade, pela tranqüilidade, pela felicidade. Luto por essa paz benéfica, cujo tempo há de vir no tempo em que vier. O sangue esvai-se, a confiança esmorece, o valor fraqueia; mas a luta é necessária até o tempo da paz. Quando? Nada sei...

As páginas que deixo transcritas mostram bem o estado do meu espírito. Misturava-se à dor do afeto perdido uma certa ânsia de felicidade e de paz que aceitaria logo, ainda mesmo pelas mãos de outrem que não as da mulher sonhada.

O tempo trouxe a sua ação benéfica ao meu coração. Pouco depois, em uma noite de conforto, lançava eu ao papel as seguintes linhas:

Volta-se de um amor, escreve um humorista, como de um fogo de artifício: triste e aborrecido. Tal é em resumo a minha situação. E feliz o homem que, após um sonho de longos dias, não traz no coração a mínima gota de fel. Pode olhar sobranceiro para as contingências da vida e não apreender-se de vãos terrores ou vergonhosas pusilanimidades.
 
É certo que as naturezas capazes de resistir ao choque das paixões humanas são inteiramente raras. O mundo regurgita de almas melindrosas, que, como a sensitiva dos campos, se contraem e murcham ao menor contato. Sair salvo e rijo dos combates da vida é caso de rara superioridade. Esta glória, esta felicidade, ou esta honra, tive-a eu, que, nas mãos da mais vesga fatalidade, nada deixei do que recebi de puro e verdadeiramente perdurável.
 
A vida é um livro, no dizer de todos os poetas. Negro para uns, dourado para outros. Não o tenho negro; mas o parênteses que se me abriu no meio das melhores páginas, esse foi angustioso e sombrio.
 
Nunca entendi o livro de Jó, como então. Só então calculei que a miséria depois da opulência era um mal maior do que a miséria desde o berço.
 
As lamentações do filho de Hus, não só as entendi como me serviram de exemplo. Vi-o maldizer a hora do nascimento e assisti à resignação com que se lhe iluminou a alma e com que ele aceitou experiências do céu. Como ele amaldiçoei, e como ele me resignei. Aquelas páginas respiram consolações, aspirei nelas a tranqüilidade presente...