Filha minha Isabel, alma ditosa

1Filha minha Isabel, alma ditosa,
Que do corpo as prisões desemparaste,
E qual cândida flor, ou fresca rosa
De teus anos a flor em flor cortaste:
De minha dor a mágoa saudosa,
Que por herança d’alma me deixaste,
Deves crer, que até agora não durara,
Se a dar-te vida a minha dor bastara.

2Não durara até agora a minha mágoa,
Se fora ela bastante a dar-te vida,
Porque, vivendo tu, dos olhos a água
Se enxugara em dous rostos reprimida:
E sendo o peito humano a própria frágua,
Onde a dor em licores derretida
Corre a desafogar: se não correra,
Filha Isabel, de minha dor morrera.

3Morrera, Filha minha, e acabara
De um doce mal, formosa enfermidade:
Todo o poder do mundo me invejara,
Pois falta a seu poder esta verdade:
Com minha morte a vida se trocara,
Da maior, e mais alta majestade
Enjeitara tudo, porque nada era,
E porque a minha dor tudo excedera.

4Ficara tão ufano de seguir-te,
Vivo por te chorar, morto por ver-te,
Que se pudera crer, que por senir-te
A ocasião estimara de perder-te:
E se nesta estranheza de sentir-te
Não chegara um aplauso a merecer-te,
De uma a outra estranheza me passara,
Gêneros novos de sentir buscara.

5Sangue ondeara a margem deste rio,
A rosa adoecera em suas cores,
Da Aurora carmesirn fora o rocio,
Não recendera o ambar entre as flores:
Fora da natureza um desvario
A ordem natural de seus primores:
Mas nada a minha dor necessitara,
Se uma vida se dera, ou se emprestara.

6Se pudera emprestar-te a minha vida,
Se escusara então meu sentimento:
Mas ai! que nem o dá-la por perdida
Remédio pode ser do meu tormento:
E já, que não é cousa permitida
Celebrar um contrato tão violento,
E dar a vida enfim se não tolera,
A metade da minha te ofrecera.

7E pois a natureza é tão escassa,
Que na esfera da sua potestade
Não cabe por indulto, nem por graça
Uma vida partir pela metade:
E inda que o vença amor, indústria, ou traça,
Me resta outra maior dificuldade,
De que se hão de invejar, metade dera,
Ou toda, porque inveja não tivera.

8Se a metade da vida, que te ofreço,
Inveja há de causar, à com que fico,
E sobre dar-lhe inveja à que despeço,
Que saudades lhe dê me certifico:
Para livrar-me de um, e outro tropeço,
Com que nesta partida me complico,
Sobre a tua metade te largara
A outra metade, que órfã me ficara.

9Dera-te enfim a minha vida toda,
Que o mais fora desdouro da firmeza,
Que sempre, quem bem ama, se acomoda
Fazer a vida altar de uma fineza:
Dar tudo nunca a amor desacomoda,
Dera-te a vida, e alma nesta empresa,
Se a minha vida a morte te alivia,
E se a minha alma enfim tua agonia.

10Ásia filha maior do mar profundo,
A África do mar soberania,
Europa exemplar luz de todo o mundo
E a América do ouro monarquia,
veriam, com quão ledo, e quão jucundo
Rosto por ti minha alma despedia,
Se o calor da minha alma à vida tua
Substituir pudera com a sua.

11O Rouxinol, que canta docemente
À vista da consorte, que o namora,
A Rola triste, que ao esposo ausente
De dia busca, se de noite o chora:
No ar sutil, na fonte transparente,
Vendo o fino de uma alma, que te adora,
Pasmariam de ver, como supria
Tua vida, animando a cinza fria.

12A inveja, que do ódio se alimenta,
A detração, que como espada corta,
A calúnia, que a todos ensangüenta,
E a aversão, que os áspides aborta:
Todos a iníquia mão, língua cruenta
Mostrariam pasmada, obtusa, absorta;
Eu só perdera a vida pela tua,
Inda que a arrojo o mundo o atribua.

13Pasme de assombro, ou da fineza a terra,
Trema do caso, ou da estranheza o monte,
De invejosas as aves se dêem guerra
De corrido se mude o Horizonte:
Co'as nuvens indignadas choque a serra,
Brame o mar, soe o Céu, murmure a fonte,
Que eu firme nesta minha fantesia
Não só a vida, a alma te daria.

14Dá-la-ia não só por imitar-te,
Se cabe em minha dor tão alta sorte,
Senão por despojar-me, e despojar-te
A mim do sentimento, a ti da morte:
Não só daria a alma por mostrar-te,
Que não tenho outro alívio em mal tão forte:
Senão (pois perde tanto em ser tão sua)
Por melhorá-la com fazê-la tua.