Nas vésperas do grande dia, quando o Borges andava de baixo para cima, tratando de pôr em prática as ordens da mulher, deu cara a cara com o Barroso, uma noite em que entrava no Passeio Público.
Em outra ocasião, é possível que os dois companheiros de infância nem se cumprimentassem, pois nunca mais se tinham visto depois da resinga do casamento; mas encontrados assim, de supetão, ambos colhidos de surpresa, não puderam conter o clássico — Oh! — dos momentos de circunstância, e, quando deram por si, já estavam nos braços um do outro.
Ah! eles haviam sido tão camaradas, tão parecidos nos gostos e nos costumes! usando da mesma moral e dos mesmos princípios! Durante quarenta anos tinham seguido sempre a mesma linha tesa das conveniências comerciais; — O Borges, como sabemos, transviara-se com o impulso que lhe deu Filomena; mas o Barroso, não senhor! — foi cada vez mais acentuando a sua circunspecção e enrijando os seus créditos de homem sério.
De sorte que, atirados agora um defronte do outro, em flagrante contraste — o Barroso tão grave, tão ríspido, tão invulnerável dentro de seu paletó saco, fiel ao seu permanente chapéu alto de pêlo e ao seu guarda-chuva desenrolado; e o Borges tão catita, tão gamenho, tão moderno nos seus sapatões ingleses e na sua bengalinha de junco — não podiam fugir ao mais completo embaraço.
Sentaram-se ambos no primeiro banco, ao lado um do outro, sem uma palavra, mudos como dois frades de pedra.
Borges, no fim de alguns instantes de completo silêncio, caiu de novo nos braços do amigo e abriu a chorar copiosamente.
Não era o barão de Itassu quem chorava ali, era o João Touro, o primitivo, o bom João Touro doutros tempos, que agora reaparecia, como por encanto, à vista de um companheiro de seu doce passado, tão tranqüilo e singelo.
Chorou muito, muito, como se desabafasse naquele momento toda a acumulação de contrariedades, de desgosto e de fadigas, que se lhe foram amontoando no coração desde a primeira noite do casamento. Era um pranto velho, há muito tempo represado à falta de uma ocasião para rebentar.
O Barroso recebia no peito as lágrimas do antigo camarada, sem fazer um movimento, nem ter uma palavra para lhe dizer. Enquanto chorava o Borges, ele fazia por explicar a si mesmo como diabo se podia conciliar toda aquela lamúria com a jubilosa aparência do amigo.
— Não és então feliz com tua mulher?. . . perguntou-lhe afinal.
— Adoro-a! respondeu o outro, limpando os olhos.
— Então?...
— Mas é que a minha vida de casado tem sido uma tempestade constante! Ainda não o disse a ninguém, digo-to a ti, que és o único amigo em quem deposito confiança. Ah! não imaginas! não imaginas, Barroso, o que tenho experimentado! Não calculas de que força é minha mulher... bem me dizias tu...
— Mas por que não a pões a teu jeito, filho?
— Porque a adoro, como te disse. Porque só a idéia de lhe cair em desagrado me faz tremer!
— Pô-la a meu jeito — dizes tu! É que não a conheces!
É que, felizmente para ti, nunca te deixaste arrastar por uma paixão como a minha!
E, depois de uma pausa, enquanto o outro se torcia sob aquela expansão sentimental:
— Pô-la a meu jeito!... foi ela quem me pôs ao seu! Foi ela que me torceu a seu bel-prazer!
— Ora essa! E quem te mandou consentir?...
— Repito! nunca amaste, que se já o houvesses feito, não estranharias a minha fraqueza.
E, abaixando a voz, disse-lhe alguma coisa ao ouvido.
O Barroso fez um gesto de indignação.
— Desaforo! Não havia de ser comigo, juro-te!
— Ah! Só Deus sabe pelo que tenho passado!...
— Não! contradisse o Barroso... Não! Uma mulher dessa ordem, manda-a a gente plantar batatas!
— Impossível! Se te estou a dizer que a adoro!
O outro sacudiu os ombros:
— Não era isso o que ele supunha! Pelo que ouvira por aí, ia jurar que o Borges era o homem mais feliz do mundo!
— É o que todos julgam... tugiu o barão com tristeza.
— Pelo menos é o que leva a acreditar esse teu modo de viver, de tempos para cá! São só pagodes e mais pagodes! Eu. . . confesso-te — sempre estranhei! ...
— Ah! gemeu o outro. Só Deus sabe quanto me custa tudo isto! Meu amigo vês-me a cara e não me vês o coração...
— Vamos tomar alguma coisa, disse o Barroso erguendo-se do banco e seguindo na direção do botequim. Creio que agora já bebes.
— Se bebo! tartamudeou o outro, acompanhando-o. Se bebo!
E foram ambos sentar-se a uma mesinha no lugar das bebidas.
— Pois muito me contas!... prosseguiu o Barroso, enchendo os copos de cerveja.
— E ainda não te disse nada!... acrescentou o Borges, a olhar muito sério para um buraco que fazia no chão com a ponta da bengala.
E depois, encarando o amigo:
— Mas, olha! Isto que não passe daqui. Imagina que papel faria eu, se viessem a saber que...
— Ó Borges! interrompeu o Barroso, ofendendo-se. Eu ainda sou o mesmo! Ainda sou aquele mesmo amigo para a vida e para a morte! Porque estás mudado e porque já não dás idéia do que foste, não se segue que os mais também se tenham transformado ! Oh!
— Bem sei, bem sei, meu bom amigo; perdoa! E olha, vai sábado lá a casa; a mulher arranjou uma festa... leva contigo quem quiseres.
— Sempre as festas! censurou o Barroso por acréscimo. Sempre as festas!...
— Que queres tu? Filomena obriga-me a essas coisas! Hoje, creio até que eu próprio já não poderia passar sem isso! Tudo vai do hábito!
— É imperdoável, mas irei, irei à tua casa...
E meneando a cabeça:
— Pobre Borges! Pobre Borges!
— Traze mais cerveja! disse este ao caixeiro, com uma voz plangente.
— Pois vais beber ainda?... observou o outro admirado.
— Quero festejar o restabelecimento de nossa amizade!
— Seja; mas eu não te posso acompanhar. Bem sabes que a minha conta é um copo...
— Sei, sei! Quantas vezes noutro tempo, assentados invariavelmente nos fundos da venda do Sampaio, não fiz caretas ao teu copinho de cerveja!
Então era eu quem se admirava de que "houvesse no mundo alguém que a bebesse por gosto"... entretanto... tu continuas a tomar a tua cervejinha todas as noites, ao passo que eu...
— Todas as noites..., confirmou o Barroso. É o meu vicio! Com a diferença de que agora, em vez de a tomar na casa do Sampaio, tomo-a quase sempre ao lado de minha mulher.
— É verdade! Não me lembrava que havias também casado. E como vais te dando com a vida?
— Bem! Não tenho razão de queixa! A Sabina, justiça se lhe faça, é uma excelente mulher! Bom gênio... acomoda-se com tudo,.. não gosta de festas! ... Às vezes até é preciso que eu a obrigue a sair de casa para distrair-se um bocado, coitada!
— Sim? hein?
— Vivemos como Deus com os anjos! ...
Houve uma pausa.
— Já temos um pequeno, sabes? ... acrescentou ele depois.
Borges continuou silencioso, a cabeça derreada numa taciturnidade invejosa. Só mudou de posição para esgotar o copo e tornar a enchê-lo.
— Ainda?! censurou o outro.
— Que queres, homem?!
E depois de alguns goles:
— Com que então, és feliz?...
E suspirou.
— Sou, graças a Deus! sou! respondeu o Barroso estirando-se na cadeira. Lá a minha Eva não é nenhuma senhora que meta vista, lá isso não é!... Ao contrário, coitada! não serve para se haver com etiquetas e cerimonias; porém, no que se diz — arranjo de casa, doçura de gênio, tratamento do filho e mimos cá com o nhô-nhô... nisso não quero que haja segunda! Meiguice ali! Ela é incapaz de uma resinga! Sempre a mesma! Sempre! Além disso muito asseada, muito amiga de arrumar e ativa, ativa que faz gosto! Ainda há pouco tempo ficamos três dias sem criada. Pois, filho! acredita que a Sabina, arregaçou as mangas, meteu-se na cozinha, agarrou-se a uma vassoura, e, tantas voltas deu, tanto virou, que a criada não fez falta! Foi preciso que eu ralhasse para a ver sossegar um instante! Não! como dona de casa não quero que haja outra!... mas também podes ver de que maneira a trato! ...
— Ai, ai! suspirou o Borges. Garçom!, mais cerveja!
— Não bebas mais!, aconselhou o Barroso.
— Deixa-me!, balbuciou o outro limpando os olhos. Deixa-me!
Quando se levantaram para sair, o marido de Filomena, muito atacado dos nervos, muito excitado pela cerveja, chorava como uma criança.
— Consola-te, homem! dizia o amigo, batendo-lhe no ombro. Consola-te! Mais tem Deus para dar que o diabo para tomar!
Porém, no dia seguinte, quem fosse à casa do Sr. barão de Itassu, das nove da noite às seis da madrugada e o visse fantasiado de chicard no meio da dança, não seria capaz de acreditar que ali estivesse o mesmo homem da véspera.
Era de um efeito cômico o Borges de cabeleira de arminho e capacete com penacho vermelho. O seu vigoroso tipo de montanhês não se acomodava bem dentro da extravagante camisola de seda cor-de-rosa, franjada de ouro, que lhe mostrava os ombros e os grossos braços nus, e parecia reagir contra as pitorescas botas de montar, que lhe iam até o joelho.
— Falta-te qualquer coisa!... dissera-lhe a mulher a considerá-lo de alto a baixo, na ocasião em que ele lhe perguntou que tal o achava. Deves dar mais elasticidade aos movimentos; não trazer esse capacete assim caído sobre a nuca, e puxar o canhão das botas mais para cima.
Ela é que apareceu encantadora numa fantasia espanhola, que lhe deixava bem patente o rijo desenho do corpo e mostrava um princípio de pernas, parte do colombiano seio, e completo aquele famoso pescoço cor de camélia, tormento de muita gente nas poucas vezes que se expunha.
Os adoradores crivavam-no à ponta de olhares gulosos, e desfaziam-se em galanteios.
A festa foi no primeiro pavimento, e toda ela de um brilho original e deslumbrante.
Plantas e flores por toda a parte, entre decorações de bandeiras e galhardetes; longos rosários de pequenas lanternas redondas, desenhando os mais graciosos arabescos em uma bela variedade de cores; palmeiras, tinhorões, grutas artificiais, repuxos, sátiros e faunos, engendravam grupos artisticamente distribuídos.
A música, que não se sabia donde vinha, chegava às salas tépida, abafada e voluptuosa, como gemidos, beijos e soluços errantes pelo ar. A luz, à feição da música, era também distribuída suavemente, em tons opalinos e duvidosos.
Tudo era morno e misterioso: os tapetes de seda fina, imitando relva, bebiam o som dos passos; os coxins de damasco da Ásia, os divãs bojudos e rasteiros, como bonzos deitados de bruços no chão, tinham a maciez fofa e mole de carnes gordas; enquanto que dos maciços de verdura se desprendia, numa sutil pulverização, um delicioso chuvisco de perfumes, que adoçava e refrescava o ambiente e punha nos sentidos um vago entorpecimento de volúpia.
Como para contrastar com toda essa suavidade de tons e sons, havia no fundo do salão principal um enorme tímpano de metal polido, em forma de quadrante de relógio, que servia para marcar as várias peças da dança. Era bastante que o regente da orquestra tocasse, lá do seu esconderijo, num botãozinho elétrico, que tinha ao lado, para que o grande tímpano, nem só com um ponteiro, mas em badaladas sonoras, anunciasse por toda a casa a quadrilha ou a valsa que se ia dançar.
Um terraço, iluminado à luz elétrica, estabelecia comunicação entre as salas e a chácara, onde pequenos quiosques transparentes, como gigantescas lanternas de papel pousadas sobre a grama, ofereciam aos convidados a mais completa variedade de vinhos e refrescos.
— Com efeito! disse o Barroso, olhando com um ar de censura para tudo aquilo. Com efeito! É até onde pode chegar a maluquice de um homem! ...
E não conseguiu reprimir a sua indignação ao ver o Borges aproximar-se dele aos saltos, agitando o irrequieto e escandaloso penacho do seu ofuscante capacete cor de prata:
— Que diabo é isso?!... exclamou, deste para maluco?! Pois não vês, homem, que já não te ficam bem essas coisas?!... Queres acabar num hospício?!... Ora, o que parece um marmanjão da tua idade a pular no meio da casa, vestido de princês?!...
— Que queres, meu amigo?... o amor! o amor! disse o Borges, procurando ser grave e conseguindo apenas ficar mais cômico debaixo da sua cabeleira a Luís XV.
— Qual o amor, nem qual carapuça! retrucou o outros ralhando. Eu amo muito minha mulher., e ai dela se me viesse para cá com pantomimices dessa ordem!
— É por que não estás nas minhas condições! Fosses tu casado com Filomena e dir-me-ias depois!
— Qual o quê!, contradisse o Barroso. Tu o que precisavas era de um cáustico na nuca!
— Mas, com a breca! querias então que eu contrariasse minha mulher?! ... repontou o Borges, perdendo a paciência. Que diabo! eu desejava estar casado de outro modo!... juro-te que preferia uma esposa como dizes ser a tua!... Mas a sorte não quis assim; que lhe hei de eu fazer?... Agora é levar a cruz ao Calvário! Se eu não a estimasse, bem! mas eu adoro-a, como já te confessei um milhão de vezes; e ela, meu amigo, formosa, querida, desejada como é, vendo-se contrariada, seria, em represália, muito capaz de fugir dos meus braços para os de outro qualquer!
— Pois que fugisse! É boa!
— Que fugisse, não! bradou o Borges encolerizando-se. Vai para o diabo com o teu agouro! Prefiro tudo a ver-me privado da sua companhia! Serei um louco, um libertino, um criminoso, se preciso for, contanto que a tenha sempre ao meu lado, que a veja, que a sinta, que a ame, que a possua! Deixá-la ir! E nesse caso de que me serviria a vida?... Sem ela de que me serviria a posição social, a estima pública e todas as grandezas da terra?!
— Não era dessa forma que me falavas há poucos dias... observou o Barroso, deveras surpreso com a transformação rápida que se acabava de operar no amigo.
— É que então não me aconselhavas que a deixasse fugir de meus braços! ... respondeu o marido de Filomena.
— O que te afianço, acrescentou o outro, é que, se desconfiasse que havias de mudar tão depressa, não teria vindo à tua casa...
— Estás arrependido?...
— Não, filho! não estou arrependido... mas é que ainda há tão poucos dias tu te queixavas daquela forma de tua mulher, e hoje saltas-me com três pedras na mão, só porque eu...
— Ah! tornou o Borges, passando o braço na cintura do amigo e procurando falar-lhe em segredo. Ah!... é que nesse momento eu estava longe de Filomena, fora do alcance de sua fascinação, do perfume de seus cabelos, do eco de sua voz, da reflexão de seus olhos?
O Barroso fitou-o assombrado, e fez um gesto para fugir-lhe do braço. Que diabo de palavrório era aquele?! ...
O outro não fez caso e segurou-o melhor.
— Vê! ... disse-lhe entusiasmado apontando para a mulher, que atravessava a sala próxima. Olha! Vê como vai formosa! Contempla aquela garganta de mármore, aquele porte de rainha egípcia; aqueles olhos mais formosos que as estrelas! Contempla-a toda, e dir-me-ás depois, desgraçado! se há no mundo coisa alguma que valha a posse de todo aquele tesouro vivo e palpitante!... se há coisa alguma, seja ela a doçura do lar, as glórias do talento, a consolação do trabalho, as honrarias sociais, o respeito, o acatamento de seus semelhantes, o amor de uma geração inteira — se há alguma coisa que possa corresponder à suprema ventura de ser seu escravo!
— Tu bebeste demais! exclamou o Barroso, conseguindo afinal arrancar-se-lhe dos braços.
— Ainda não bebi demais! respondeu o barão, fazendo um gesto dramático.
— Mas lembraste a propósito: champanha! exclamou para um criado. Champanha! Depressa!
E depois, erguendo a taça, que se lhe entornava sobre os dedos: — Ao amor, Barroso! Ao sempre belo! ao sempre novo! ao nunca vencido! ao amor!
— Estás insuportável! resmungou o amigo, pensando já em escamugir-se na primeira ocasião.
E mal pilhou uma escapula, foi-se.
Em casa, a mulher, que ainda estava de pé, admirou-se de o ver entrar tão cedo.
— Pois eu estou lá disposto a aturar bebedeiras de quem quer que seja?! ... exclamou ele, desabridamente, a desenfiar a sobrecasaca. O Borges está insuportável! Está um libertino! A mulher faz dele o que quer. Eu, se adivinhasse semelhante coisa, até nem lhe tinha falado quando o vi! Um pancada!
— Mas que fez ele?... perguntou D. Sabina, emperrando com as palavras do marido.
— Ora! Faz todas as loucuras que vêm à cabeça da mulher! Não imaginas!... É bastante que ela mostre desejo de uma coisa, seja qual for, a mais extravagante, a mais irrealizável, aí está o homem tratando de pô-la em prática! Deus te livre!
— Então faz-lhe todas as vontades?...
— Pois se ele está apaixonado loucamente pela mulher! se está mesmo pelo beiço!
E o Barroso passou a contar tudo o que presenciara a respeito do Borges.
— Sim senhor! disse D. Sabina, quando ele terminou. Sim, senhor! É um marido às direitas! Assim é que eu os entendo — ou bem que um casal se ama ou bem que se não ama!
— Que é lá isso?... perguntou Barroso espantado. — Pois achas que aquele idiota procede bem, fazendo todas as vontades à mulher?!
— De certo! acudiu Sabina — de certo. E há de ser muito amado e muito respeitado pela esposa. Eu, no caso dele, faria o mesmo. Pois se a mulher é todo o seu encanto, todo o seu feitiço, nada mais natural que o homem lhe faça as vontades para vê-la feliz e satisfeita. Não tem que saber — gosto do Borges! É um marido que me enche as medidas!
— Ora! ora! ora! fez o Barroso, sacudindo a cabeça — ora esta!
Sabina prosseguiu:
— De uma mulherzinha como a dele é que você precisava para o ensinar, seu unha de fome! Não devia ser uma toleirona, como eu, que levo aqui a matar-me, às vezes até fazendo o despejo! E quando quero ir a qualquer divertimento, quando apeteço um teatro, um passeio, uma visita, ou quando preciso de um vestidinho mais assim ou de um chapéu mais assado, você nunca está pela coisa!
— Porque não sou doido! respondeu o Barroso com mau modo. — Estaria bem servido se fosse a fazer-te todas as vontades! — a estas horas não teria onde cair morto!
— Ora, não me venha contar histórias, seu Barroso! Não haviam de ser essas misérias que o poriam mais pobre! Hoje, por exemplo... por que não me levou à casa de seu amigo?... Eu tinha tanta vontade de lá ir!... Dizem que estava tudo preparado com tanto luxo, tão bonito!... E você, só para não me fazer a vontade, deixou-me ficar em casa!
— Pergunta antes se tinha dinheiro para te levar!
— Lá vem a tal história do "pergunta se eu tenho dinheiro!" O mesmo não diz você aos procuradores dessas sociedades, que não lhe largam a porta! Principalmente a tal Maçonaria! Meu Deus, é um cesto roto para comer dinheiro! Entretanto, o mais insignificante objeto de que eu precise...
— Olha! queres saber de uma coisa?! exclamou o Barroso, interrompendo-a. — Não estou disposto a ouvir essa lengalenga! Por hoje já basta de maluquices! Se te não levei à casa do Borges foi porque não quis, entendes tu! Porque não quis! e não tenho que te dar satisfações! Ora, vamos a ver se temos aqui a Filomena Borges!
— Ah! fale assim! retrucou a mulher enraivecendo-se. — Fale desse modo e não venha para cá com fingimentos! Você não me levou à casa do barão, porque teve pena de comprar um vestido! porque não teve coragem para alugar um carro! Sumítico!
— Ó mulher! berrou o marido. — Já te disse que não estou disposto a essa siringação!
— Pois que não esteja! Eu também não estou disposta a muita coisa e vou agüentando! Só não pilho o que desejo! — Há mais de uma semana pedi-lhe que comprasse um tapete, ali para o pé da cama, que, sempre que me levanto, é uma constipação certa — e, que é dele?!
Aí temos outra!
— Pois se é assim mesmo! Eu nada lhe peço que você faça!...
— Não tenho onde cavar dinheiro! Arre!
— Mas tem por fora onde enterrá-lo! Quem sabe se o Borges é mais rico do que você?!
— Mulher! mulher! mulher! Estás a fazer chegar-me a mostarda ao nariz!
— Diabo do sovina!
— Cala esta boca, demônio! trovejou o Barroso, ameaçando a mulher com o punho fechado.
— Bate, malvado! guinchou ela, empertigando-se com as mãos nas cadeiras, lívida, defronte do marido. Bate! Também é só para que serves. Ordinário!
E, voltando-se com desprezo. — Um pulha desta ordem a querer falar dos outros! — Por isso é que se vê tanta coisa por aí!
— Hein?! berrou o marido, saltando para junto da mulher. Que é que se vê por aí?! Hás de dizer o que se vê por aí!
— Hás de dizer! hás de dizer!
E cego de cólera, a sacudir um braço de Sabina:
— Solte-me o braço, seu bruto!
— Atrevida! Quero só que vejam a intenção perversa daquela ameaça!
E empurrando-a: — Vai-te peste! Vocês são todas a mesma súcia! E ainda há quem dê os homens como culpados das patifarias das mulheres! ...
— E são! respondeu Sabina. E são! E fazem elas muito bem! Era do que você precisava para não ser bruto!
O Barroso, que se havia afastado, volta rapidamente ao ouvir a nova ameaça, e com tal força arremessou um pé contra a mulher, que a fez ir aos trambolhões de encontro à mesa de jantar.
— Bate, danado! bate! que não me hás de tapar a boca!
O pequeno, no quarto, acabava de despertar com o barulho e pôs-se a fazer berreiro.
A mulher correu logo para junto dele e foi lhe assistindo palmadas nas perninhas tenras, a exclamar:
— Tu também, pestezinha? tu também queres entrar no sarilho?! Pois toma! Toma!
E o pequeno redobrava a gritaria na proporção das palmadas.
— Não mates a criança! rugiu o Barroso, puxando a mulher pelo braço e fazendo-a cair por terra. Ela não tem culpa que a acordasses tu com os teus berros!
— Dou! posso dar! retorquiu Sabina, esganiçando-se. É meu filho! não é seu!
— Não é meu, cachorra?!
E a pancadaria recomeçou.
Mas afinal, a desgraçada foi deitar-se, a chorar, a maldizer-se, e o marido daí a pouco fez o mesmo, ao lado dela, resmungando.
Algumas horas depois dormiam profundamente nos braços um do outro.
— Vivemos como Deus com os anjos!... balbuciava ele, sonhando, a conversa que tivera com o Borges no Passeio Público. — Meiguice ali!... Mas também podes ver de que maneira a trato!
Ah! hipócritas! hipócritas!