Seguiram para S. Paulo, quase sem recursos, levando as jóias na algibeira e, todavia, satisfeitos, cheios de esperança, orgulhosos daquela situação extraordinária, que os unia mais, que os identificava e como que os tinha abraçados e enleados pela mesma desgraça, cosidos dentro da mesma mortalha.
Hospedaram-se no Grande Hotel, fazendo uma existência difícil, vivendo de expedientes, empenhando diamantes, jogando.
Foi então que se manifestaram em Filomena os primeiros sintomas de gravidez, e este fato, que noutro tempo teria causado a felicidade do pobre Borges, agora representava nada menos que um novo obstáculo a vencer.
Ah! O bom homem fazia esforços supremos para não deixar transparecer o quanto sofria com aquele viver tão contrário ao seu gênio! Mostrava-se forte, resignado, seguro numa fé que não existia, falando a cada instante de fortunas imprevistas, sonhando acasos de grande felicidade que, de um momento para outro, lhe restituíssem a sua antiga posição.
Mas passavam-se os dias, e a fortuna sempre esquiva. Embalde furava o Borges por todos os lados, à procura de trabalho, à procura de emprego. Ninguém o queria.
Vinham-lhe então grandes desânimos, que o desgraçado já não podia esconder da mulher. Às vezes até, depois de um dia de inútil campanha em busca de serviço ou quando, em vez de ganhar, perdia tudo ao jogo, ou quando se gastava pelos cafés e pelas ruas, cansando-se na convivência dos vadios, tinha acessos de desespero. Entrava em casa brutalmente aniquilado, dando com a cabeça pelas paredes, blasfemando, pedindo em berros a morte e atirando-se tragicamente ao chão, lívido e arquejante.
Oh! mas como Filomena o amava nesses momentos! Com que transporte o recebia no colo, beijando-lhe os olhos em chama, afagando-lhe os cabelos empastados de suor, ameigando-lhe o grosso bigode conspurcado de cerveja e nicotina.
Estranha existência a dessas duas criaturas, que a natureza fez tão diversas, tão contrárias, mas que o acaso lançou no mesmo destino, abraçadas a uma só onda, sofrendo e gozando promiscuamente, sem nunca poderem determinar onde principiava a dor, onde terminava o gozo.
A mesma cousa, que a um fazia padecer, dava ao outro transportes de alegria. Daí esse equilíbrio da lágrima e do riso, que era a fonte de toda a sua coragem e de toda a sua força. Não podia sucumbir nunca, porque um deles estava sempre de pé para amparar o companheiro quando este porventura vacilasse.
E assim se passaram meses, sem que o Borges conseguisse arranjar meios seguros de vida. Entretanto, os recursos iam decrescendo; o círculo apertava-se em torno deles, à medida que se desenvolvia a gravidez de Filomena.
Tiveram que deixar o primeiro hotel por um outro mais modesto, depois este por outro, até que afinal, sempre fustigados por uma terrível adversidade, refugiaram-se numa hospedaria de terceira ordem, no largo de S. Bento.
Era uma casa térrea, mal freqüentada, abafadiça, tresandando a cocheira.
Quando o Borges se apresentou com a mulher, os quartos estavam quase todos ocupados por uma companhia de saltimbancos, que trabalhava daí a dois passos, todas as noites, em uma barraca armada no largo. Um inferno de cães e macacos sábios!
De vez em quando uma briga. Então vinha a polícia: dava-se bordoada, fazia-se muita bulha; mas tudo, no fim de contas, acabava em boa paz.
Imagine-se agora como viveria o Borges nesse meio; ao passo que Filomena, longe de acompanhar o ressentimento do marido, descobria em tudo aquilo um sedutor aspecto de aventura e de boemia, inteiramente novo para a sua fantasia. Aquela miserável espelunca, habitada por gente de circo, mascates e engraxadores, vista pelo prisma de sua loucura, tomou as dimensões românticas de um antro misterioso a Eugênio Sue.
Não obstante, o implacável círculo mais e mais se contraía em torno deles; as pequenas necessidades de todos os dias multiplicavam-se, trazendo cada uma a sua gota de fel, como uma praga de insetos venenosos. A necessidade principiava a transpirar o seu fétido horrendo, que a todos revolta e afugenta; enquanto que a inimizade, a desconsideração, a antipatia, o ódio, o desprezo, vinham-se chegando para eles, como um bando de corvos ao cheiro da carniça.
O dono da casa, ao ver o Borges, fazia já uma careta de raiva; a lavadeira de Filomena escrevia-lhe bilhetes grosseiros, exigindo o pagamento de seu trabalho, e todos, todos os que os cercavam, tinham para eles palavras duras, olhares maus, gestos de desconfiança ou sorrisos de desprezo.
Então o Borges, pela primeira vez, compreendeu que a pureza de seu caráter e a bondade de seu coração não eram dotes naturais, mas uma simples resultante das circunstâncias felizes de sua vida.
Ah! dinheiro! dinheiro! pensou ele, tu és o único que nos dás o direito de sermos bons, generosos e abençoados pelos nossos semelhantes. Tu és o único que conquistas a simpatia e o respeito do mundo inteiro! Tudo me perdoavam — a estupidez, a brutalidade, a loucura, a fraqueza, até os crimes, se os cometesse; só não me perdoam já não te possuir. Ó meu chorado companheiro de tanto tempo! Que importa que do nosso dinheiro não participe ninguém? Que importa que ele só preste ao egoísta que o possui; que importa?! O dono será sempre "um homem honesto!" Terá quem o defenda, quem o elogie, quem o ame, quem o proteja, quem lhe ofereça e dê aquilo que ele não pede e do que não precisa. "Não ter onde cair morto". Isto é que ninguém perdoa! Furta, mata, prostitui-te; mas, se deres a tua mãe o dinheiro que furtaste, serás "um bom filho"; se deres a tua mulher o fruto de tua prostituição serás "um bom marido"; se o deres a tua amante, serás "um fidalgo, um excelente cavalheiro, um homem de bem". E todos te abençoarão! Terás em redor de ti o acatamento, o sorriso, a lisonja, porque és, ou porque podes ser "bom". Porque o teu dinheiro vale pelo destino que há de ter e não pela procedência que teve!
Depois de semelhantes considerações, o Borges sentiu um profundo rancor pelo gênero humano e uma pesada indiferença pelo bom cumprimento do dever.
— Ilusão! tudo ilusão! dizia ele, a sacudir a cabeça, sem se lembrar de que no meio de toda essa tempestade, o seu amor conjugal, aquilo que ele mais estimava no mundo, havia-se enfolhado e frutescido.
Mas o maldito círculo está prestes a esmagá-los.
Vendeu-se a última jóia; esgotou-se o último recurso.
Filomena, entretanto, não se mostrava aflita; não amaldiçoava o marido e, quando o via entrar da rua com a barba por fazer, a roupa esgarçada, os sapatos rotos, a camisa cheia de pó e de suor, e a cara transformada por um desespero supremo; ela, igualmente transfigurada, cheia de prenhez e mau trato, descarnada, sem cor, caía-lhe nos braços freneticamente, louca, ressuscitando-lhe, com os seus beijos de fogo, todas as fibras adormecidas do amor.
Um belo dia acordaram sem um centavo. O dono da casa negou-se logo a fornecer comida, enquanto não pagassem o que já deviam.
— Ao menos hoje! disse-lhe o Borges, tomando-o de parte. — Não quero nada para mim, é só para ela, para minha mulher! coitada! Ainda se não estivesse naquele estado..., mas, assim, a menor contrariedade pode lhe ser fatal! Tenha paciência! — O senhor receberá depois tudo o que ficarmos a dever!
— É o diabo! ... resmungou o estalajadeiro. &mdashÉ o diabo! os gêneros não me vêm de graça para casa! ...
— Mas também eu não estou lhe pedindo que nos dê de graça! Ora essa! Apenas quero que espere um instante mais pelo pagamento!
— E qual é a garantia que tenho eu disto?! interrogou o locandeiro, picado já pelo tom em que lhe falava o hóspede. — Eu não sei se o senhor pagará ou não!
— Ó homem! bradou o Borges. — Não hei de carregar minha mulher naquele estado, sem ter ainda para onde ir! Descanse, que hoje mesmo hei de dar um jeito às coisas!
— Pois dê primeiro o tal jeito, que eu cá estou para o servir do que quiser...
— Mas você não vê que ela não pode ficar sem comer até que eu volte?!
O estalajadeiro sacudiu os ombros.
— Você não vê que isto é um caso sério?! ... tornou o Borges.
— Nada tenho com isso, respondeu aquele.
— Mas você não vê que é uma questão de vida?! Você quer matá-la?!
— Que a leve o diabo!
— Maroto! exclamou o Borges, perdendo de todo a paciência e erguendo o estalajadeiro pela barguilha. Nem mais uma palavra, tratante! se não queres ficar em pedaços!
O homenzinho, à volta do passeio aéreo que deu, estava já disposto a atender às reclamações do Borges.
— Uf! gemeu ele, quando se pilhou no chão. &mdashOlha que o senhor também é de um gênio! Safa! não se lhe pode dizer nada!... Toma logo o pião à unha! Pois eu era lá capaz de maltratar uma senhora, que se acha em um estado tão melindroso!...
— E maltrate, para ver o que lhe sucede! berrou o Borges, mostrando-lhe o pulso fechado. — Experimente que verá o bom e o bonito!
E saiu furioso, a praguejar.
— Ladrão! rosnou o outro, quando o calculou já na rua &mdash- o que tu merecias era uma facada nesse bandulho, grandíssimo sem vergonha!
E, passando enfurecido pela porta do quarto de Filomena, acrescentou de modo a ser ouvido por ela:
— Diabos dos cafres! Arranjam galinhas chocas e querem que os mais as sustentem! Vão roubar para o inferno! Súcia de vagabundos!
Filomena, que estava de cama, porque nesse dia amanhecera mais incomodada ergueu-se lívida e lançou-se instintivamente para a porta.
— É contigo mesmo, peste de uma bruxa! replicou o locandeiro, cuspindo sobre ela um olhar insolente.
— Canalha! gritou Filomena, correndo ao fundo do quarto para tomar o chicote. Mas, em meio do caminho, parou, levando com um gemido as mãos ao ventre.
Ai! gritou ela, e deixou-se cair aos pés da cama, desfeita em sangue. Tinha abortado.
Uma acrobata americana, sua vizinha, que lhe ouvira o grito, acudiu logo em seu socorro.
Por esse tempo o Borges vagava de rua em rua, inquieto, tonto, à procura de um conhecido, de alguém, de qualquer dinheiro, com que pudesse tapar a boca do maldito usurário.
Mas as horas iam-se e vinham, sem trazer em nenhum de seus sessenta minutos uma só moeda de vinte centavos. E, contudo não poderia voltar a casa com as mãos vazias. Era preciso obter dinheiro, fosse como fosse — tratava-se da segurança de Filomena!
Deram quatro horas — nada; deram cinco — nada; nada! seis — ainda a mesma coisa!
Borges deixou-se cair exausto sobre um banco do Passeio Público. Ai! Como se sentia fatigado e como lhe doía todo o corpo! Palmilhara a cidade desde pela manhã, sem comer nem descansar, alimentando-se apenas com o fel de seus desgostos.
Começava a fazer-se noite. A hora melancólica do crepúsculo ainda mais lhe ensombrava o coração.
Sentia necessidade de morrer, desertar do mundo, lançar fora aquela existência, que lhe pesava sobre os ombros.
Escondeu o rosto nas mãos, fechou os olhos, e um torpor voluptuoso o foi invadindo a pouco e pouco.
Achou-se como num sonho; a realidade esbatia-se em torno de seus sentimentos amodorrados, espalhando-se até o pleno domínio da fantasia.
E toda a sua vida principiou então a lhe deslizar pelo espírito como um interminável cordão de espectros, que se precipitavam vertiginosamente. Viu-se de todos os feitios e em todas as idades; desde antes de se conhecer, até uma época que ainda não conhecia; desde a primeira infância, até a completa decrepitude.
Viu-se em Paquetá, descalço, em mangas de camisa, a cabeça ao sol; depois, ao serviço do pai, ajudando-o no trabalho, fazendo cobranças no fim do mês, perseguindo os maus pagadores; depois, homem sério, já estabelecido, de calças brancas, paletó de alpaca, chapéu do Chile; depois, de casaca, luvas de pelica, à espera da noiva; viu-se, no dia seguinte ao casamento, enfronhado no seu rodaque de brim, ajoelhado aos pés de Filomena; viu-se fumando o seu primeiro charuto e bebendo o seu primeiro trago de vinho; viu-se de barba raspada, bigode retorcido, fraque à moda; de espanhol, a raptar a esposa; de albornoz, a percorrer o Egito; de túnica, a passear na Índia; de touriste, a bordo dos paquetes; de chicard, a dirigir o cotillon; viu-se de todos os modos; viu-se reduzido a boêmio, empenhando jóias; mendigo, a sentir fome, e afinal sonhou-se velho, arrastando-se pelas ruas, a pedir uma esmola por amor de Deus.
E toda essa variada coleção de tipos, todos esses Borges, giravam e rodopiavam, de mãos dadas uns aos outros, saltando, esperneando, fazendo caretas, em torno de uma mulher esplêndida, coberta de diamantes, que se torcia de riso com uma taça na mão, a transbordar de champanha, e olhava para todos eles, atirando a cada um, simultaneamente, frases de amor e de ironia, beijos e muxoxos, suspiros e reviretes.
Foi surpreendido nesse ponto da vertigem por dois grossos pulsos que lhe batiam no ombro. Borges acordou sobressaltado; porém, mal voltou a si, um grito de prazer escapou-lhe dos lábios.
Defronte dele estava o Urso, a fitá-lo, de orelha em pé, a sacudir a cauda.
— Meu amigo! meu verdadeiro amigo! exclamou o pobre homem abraçando-se ao cão, enquanto lhe corriam dos olhos as mais verdadeiras lágrimas de ternura.
Urso respondia a lamber-lhe as mãos, a farejá-lo todo, a grunhir.
— Bom e fiel amigo, acrescentou o Borges, sem se fartar de contemplá-lo. Bem se vê que não és um homem! Injusto fui eu em não contar contigo na miséria, apesar de te haver abandonado no tempo da minha ventura! Mas que te hei de dar agora, fiel camarada; eu, que nada tenho para mim?!... Em todo o caso, sinto-me mais forte! Vamos lá — havemos de viver!
E, dizendo isto, levantou-se, passou ainda uma vez a mão na cabeça do Urso e seguiu na direção do hotel. Talvez tenha fome!... pensava ele. Mas é impossível que eu não descubra alguma coisa para lhe dar.
À porta da estalagem, quando o Borges se aproximou com o Urso, estava o empresário da companhia de saltimbancos, de pernas cruzadas, a fumar cachimbo.
Era um italiano calvo, muito magro, alto, de grandes barbas negras; chamava-se Bela.
— Bom animal para um circo! pensou ele, atentando no Urso; se o tivessem ensinado valeria quanto pesa!
E os olhos do funâmbulo cresceram sobre o cão.
— Quer dez cruzeiros pelo bicho? perguntou, tocando no ombro do Borges.
Este fitou o italiano, sem responder.
— Dou-lhe quinze.
— Não, respondeu e outro secamente, penetrando já na estalagem.
— Vinte.
— Não! não! disse o Borges, fugindo a uma idéia que lhe acabava de atravessar o pensamento. — Não! seria infame!
— Pois se quiser vinte, é meu; mais não dou! gritou ainda da porta o empresário.
Borges já não o podia ouvir, porque a acrobata americana vinha de lhe comunicar o estado de Filomena.
Correu ao quarto da mulher. Encontrou-a estendida no leito, a gemer, a voltar-se incessantemente de um lado para outro.
— Que é isto?! perguntou ele, desvairado. E, mal disseram a causa do acidente, precipitou-se, como louco, para a sala de jantar. O estalajadeiro, assim que o viu, calculou o risco que corria, e tratou de fugir; mas só teve tempo de se esconder dentro de um armário despratelado, que jazia a um canto da sala.
Este jogo de cena fez alguma bulha e atraiu todos os de casa. Quiseram logo impedir que o Borges se aproximasse do armário.
Vão esforço. João Touro, com o primeiro arranco, lançou por terra os que o tentavam segurar e atirou-se contra o armário
Não se deu ao trabalho de abri-lo, abarcou-o sobre o peito, ergueu-o, e, depois de sacudi-lo duas ou três vezes, arremessou-o pela sala, varando tudo que estava no caminho.
Um clamor estrepitoso rebentou em volta dele, No meio do barulho, ouviam-se os gritos do estalajadeiro, o ladrar medonho do Urso, que acompanhava aos saltos os movimentos do amo e, de todos os lados, um coro terrível de exclamações cheias de assombro, de raiva e de terror.
Mas os que ficaram machucados logo ao primeiro encontro, acudiam já contra o Borges, armados de cadeira; a companhia em peso, tomando as dores pelo dono da casa, não tardou igualmente a lançar-se sobre ele, e, em menos de dois segundos, travou-se o mais formidável sarilho.
Foi uma coisa horrorosa!
O Borges, fora de si, ia agarrando o que lhe caía nas mãos e arremessando para frente. Voaram mesas, cadeiras, estantes, aparadores, garrafas, tudo!
A sala, em breve, ficou completamente vazia, e ele, só ele, passeava de um para outro lado, rugindo e fungando como um verdadeiro touro.