Fernando Gomes falecera durante a noite, mas seguramente depois das nove horas. As oito, ao toque de silêncio, a que se apagam todas as luzes e todos os rumores se extinguem nos cubículos, ele passeava e fumava, taciturno, agitado, silencioso, respondendo apenas por monossílabos ao que lhe perguntavam, e até às nove horas ouviram-no alguns companheiros mexer-se na cama, tossir, suspirar.

O Maricas pretendia ter-lhe ouvido o estertor da morte: um ruído de respiração difícil, aflitíssima, terminando em um suspiro profundo e longo; mas todos atribuam isso à prosa do rapaz.

A esse respeito quem mais importantes revelações fornecia era o Meireles, chaveiro. Eis o que ele contava:

Naquele dia, às três e meia horas da tarde apresentara-se na Casa um senhor ainda moço, bem trajado o qual pediu ao administrador licença para visitar o preso abastado de nome Fernando Gomes. Trazendo-lhe um guarda a ordem do administrador, Meireles entregara-lhe o preso requisitado.

Essa visita durou seguramente uma hora. Quando dela voltou trazia o Comendador na mão uma carta bastante volumosa e, tendo recusado o jantar que habitualmente recebia de uma casa de pasto da vizinhança, pediu-lhe licença para ir tomar ar no jardim. Uma vez ali, abriu com impaciência o invólucro da carta e entrou a ler as numerosas folhas de papel que a formavam.

Quando Meireles, dali a uma hora, veio chamá-lo para recolher-se à prisão, encontrou-o sentado com a cabeça escondida nas mãos e soluçando convulsivamente. Interrogado pelo chaveiro sobre o que tinha, se se sentia doente, respondeu que não, que fora uma notícia má que recebeu que o incomodara, mas que estava acabado, nada mais tinha, sentia-se aliviado. Porém, apesar dessa afirmação, a sua fisionomia estava completamente alterada, coberta de uma lividez cadavérica e levava de quando em quando as mãos ao peito, como se sentisse ali uma grande opressão:

"Aquela visita, aquela carta... dali é que veio todo o mal. Foi aquilo que o matou. Não sei para que diabo é que se mandam más noticias aos outros. As boas ninguém tem pressa de dar;" concluía filosoficamente o claviculário, com uma expressão de profunda mágoa pela miséria humana.

E acertava sem o saber. Fora aquela visita, fora aquela carta que matara Fernando.

Quando ele entrou na triste e mal arranjada sala que serve de locutório da Detenção, no pátio interior, à direita da porta de entrada, para o fim de falar com a pessoa que por ele procurava, encontrou um cavalheiro vestido de preto, barba escura, mesclada de fios brancos, calva incipiente, óculos de ouro, tendo no dedo anular da mão esquerda um anel de médico. Vendo entrar Fernando acompanhado por um guarda, o desconhecido ergueu-se e, dirigindo-se cortesmente para ele, perguntou-lhe:

— O sr. Fernando Gomes?

— Um seu criado. Queira sentar-se e dizer-me a que devo a honra da sua visita.

O desconhecido sentou-se em uma das extremidades do velho sofá de mogno de palhinha encardida e rota em alguns pontos. Na outra extremidade um advogado, muito conhecido pela sua especialidade de defensor de gatunos e desordeiros, interrogava em segredo um deles sentado em uma cadeira próxima, alisando nas mãos com fingida humildade o boné muito sovado.

— Chamo-me João Itaparica, sou médico e clinico na cidade da Bahia, da qual cheguei ontem com o fim expresso e único de desempenhar-me junto de V.Sa. de uma missão reservada e delicadíssima - e, dizendo isto, tirou do bolso uma sobrecarta quadrada e volumosa, que conservou nas mãos, como se quisesse adiar o momento de entregá-la.

Fernando fitou sobre o médico com algum espanto os seus grandes olhos, em cujas pupilas claras parecia ver-se-lhe a lealdade da alma. E à interrogação muda mas instante desse olhar, o seu interlocutor respondeu:

— Sim, uma missão que considero sagrada e da qual somente hoje me posso desempenhar. Esta carta, que lhe vou entregar dentro de alguns instantes, foi-me remetida para este fim, há quase cinco anos pelo... - e a sua voz tremia um pouco - pelo meu saudoso colega e amigo dr. Paulino de Castro.

A fisionomia do preso demudou-se subitamente; as faces tornaram-se lívidas, os lábios tiveram um rápido tremor e um véu de lágrimas cobriu-lhe os olhos. A comoção era tal que não podia articular uma palavra.

— Sente-se mal?

— Não, obrigado. Isto passa já. Compreende... O dr. Paulino foi o meu maior, o meu melhor amigo. Considerava-o como meu filho. Nunca tive outro senão ele...

— Bem o sei. Mas julguei que o tempo houvesse cicatrizado completamente essa terrível ferida.

— Feridas há que nem o próprio tempo consegue cicatrizar. A que me abriu no coração a perda daquele amigo é desse número. E depois, daquela forma, suicidando-se, cortando a carótida com um golpe de bisturi! Moço, belo, ilustrado, com um futuro extra ordinário, estimado por quantos o conheciam! Oh! Foi para mim uma catástrofe. Se ele vivesse, a minha desgraça atual não me pesaria tanto. Que me importava ter matado um homem, perdido a mulher, o lar, a felicidade doméstica, se o tinha a ele, o meu Paulino, o meu amigo, o meu filho querido? Se fosse absolvido, partiria com ele para a Europa, viajaríamos o mundo inteiro e eu esqueceria, finalmente, o meu infortúnio. Mas sem ele que será de mim? Que farei da vida? É provável que o júri me absolva; matei o amante de minha mulher, tendo-os surpreendido em flagrante. Lavei com sangue a minha honra. Mas que encantos tem agora a vida para mim? Viver aqui para encontrá-la a cada passo, risonha, frívola, formosa, triunfante? Amei-a, amo-a, amo-a ainda, senhor doutor, amo-a ainda muito para poder vê-la outra vez. Viajar? Mas sozinho, sem um amigo intimo que me distraia, que compreenda o estado do meu espírito e procure curá-lo... fora inútil. A vida pesa-me. Não me suicidarei, porém. Devia tê-lo feito naquele dia fatal; não o fiz: agora é tarde. Procurarei longe daqui alguma coisa a que dedique este resto curto de vida miserável sendo útil aos meus semelhantes.

E, tendo por alguns momentos fechado o rosto nas mãos trêmulas, volveu com voz firme:

— Agora estou calmo. Pode falar.

— O que tenho a dizer é bem pouco. Há cinco anos, pouco mais ou menos, recebi na Bahia uma carta escrita pelo dr. Paulino de Castro na véspera do dia em que se suicidou em São Paulo, carta que acompanhava esta, fechada e lacrada como agora está. Pedia-me o meu amigo, o nosso amigo, que guardasse esta carta em meu poder para só entregá-la ao seu destinatário se se desse uma circunstância especial, realmente estranha...

— E qual?

— Essa circunstância era... - O médico hesitava; por fim, com um esforço visível - era ter V. Sa. algum dia provas inconcussas de que sua esposa o traía.

Fernando empalideceu tanto e seu corpo teve um sobressalto tão forte que o médico ergueu-se para ampará-lo.

Ele afastou-o brandamente, murmurando muito baixo, com a voz velada e sombria de um hipnotizado:

— É singular, é singular...

E de repente:

— Dê-me essa carta... Dê-ma!

O médico, sem se apressar a entregar-lha, observou-lhe muito calmo:

— Ignoro o conteúdo desta carta, nem o dr. Paulino me revelou qual fosse. Apenas me ordenou que só a entregasse naquela determinada circunstância e que o fizesse em pessoa, recomendando-me mais que tomasse as providências necessárias para o caso de eu falecer antes de tal circunstância realizar-se, de modo que a sua última vontade fosse cumprida. Obedeci com religioso escrúpulo às ordens do meu pobre amigo e...

— Mas por que não me fez entrega mais cedo desse documento? Há três meses que se realizou a condição tão singularmente prevista por ele e, entretanto, só hoje é que V. Sa. me honra com a sua visita.

— Estive doente, absolutamente impossibilitado de fazer esta viagem. Ora, como era indispensável que eu fizesse pessoalmente a entrega, tive de esperar o meu restabelecimento. Aqui tem a carta. Faço votos para que a sua leitura lhe traga um bálsamo às dores morais que o afligem e que o resultado do seu próximo julgamento seja, como é de justiça, a restituição à nossa sociedade de um dos seus mais belos ornamentos - concluiu o dr. Itaparica, com um ar prudhommesco, erguendo-se.

Apertou gravemente a mão de Fernando - estava fria e viscosa como a de um desmaiado.

O preso guardou a carta no bolso interno do paletó e, acompanhado novamente pelo guarda, pediu e obteve licença para ir passear no jardim da prisão.

A vegetação mesquinha e raquítica tinha um ar de cansaço e tristeza; as copas dos arvoredos estavam cobertas de poeira; o terreno estava seco, em torrões negros. Nenhuma viração agitava as folhas; nenhuma flor alegrava a vista. A atmosfera pesava e cheirava mal.

Mas o pobre detento não tinha a impressão consciente daquele meio desagradável e opressor, que, entretanto, devia acabrunhar-lhe o espírito, mau grado seu. Três ou quatro homens passeavam, fumando e conversando. Umas crianças riam e corriam descuidosamente, tentando empinar um papagaio, empresa que a falta de vento tornava impossível.

Fernando procurou um recanto isolado; aí sentou-se e abriu com as mãos trêmulas o sobrescrito misterioso, tirou de dentro algumas folhas de papel, e leu sofregamente o que nelas escrevera cinco anos antes o dr. Paulino de Castro.