Encerrou-se hontem, definitivamente, o cyclo de permanencia, na Faculdade de Direito, da celebre mumia ali existentes. Foi ella dada á sepultura por vontade da viuva do dr. Amancio de Carvalho, que ha muito insistia nesse proposito, muito embora lhe fosse ponderado ser a mumia um trabalho scientifico, de alto valor, devendo antes ser enviada a um museu.
Não ha, certamente, quem desconheça a historia da mumia. E recordal-a, é reviver mais uma das muitas aventuras dos estudantes do velho templo do Direito, quando a grande metropole de hoje, não era senão uma cidadezinha acanhada e pobre.
Foi no começo deste seculo. O saudoso mestre dr. Amancio de Carvalho, dos primeiros cultores da Medicina Legal em nosso paiz, um dia, querendo preparar uma mumia por processo de sua descoberta, procurou e obteve, na policia, um cadaver indigente. Era uma negrinha, apparentando seus vinte e poucos annos, que teria sido encontrada morta na rua, onde perambulava, sem lar e sem parentes, e, segundo outros, entre os quaes se alista o escriptor Aureliano Leite, criação de familia do dr. Amancio.
Em seu corpo foi feita a experiencia do processo do dr. Amancio de Carvalho, após o que, levaram-n’o para a sala da Faculdade, onde eram ministrados aos moços, os conhecimentos de Medicina Legal. Ahi ficou numa redoma, ao lado esquerdo da cathedra, emquanto jazia, do outro lado, esbranquiçado esqueleto.
Entretanto, a Jacyntha (e não Benedicta ou Raymunda, como pretendem alguns) desprendia insuportavel mau cheiro, a ponto dos estudantes que occupavam as primeiras cadeiras (“Banda de musica”, na giria academica), sahirem com dores de cabeça. Houve um dia em que alguem se indignou e protestou contra a insupportavel inhalação. Esse alumno foi o academico Julio Prestes…
A Jacyntha era o alvo das troças dos estudantes. Quando sumia o chapéo de alguem, era facil encontral-o enfeitando a cabeça da Jacyntha. Outras vezes apparecia com velas nas mãos. E não raro nas mais estranhas posições, que o espirito de seus algozes inventava…
Nunca ninguem soube como conseguira o dr. Amancio de Carvalho conserval-a. Era por um processo que alcançára com suas investigações. Nada se sabia. Tampouco se veiu a descobrir até hoje. Diziam outros, despeitados, sem duvida, que a mumificação fôra em virtude da constante bebedeira em que vivia a pretinha celebrizada…
Através todo o seu magisterio, o dr. Amancio de Carvalho conservou-a carinhosamente, vindo por isso mesmo a ter forte desgosto, no dia em que soube que ella havia desapparecido. Aureliano Leite, em seu recente livro “Retratos a penna”, diz que a mumia “sumira”, deixando, ao que affirmavam, tres cartas. Uma á Amancio, communicando-lhe sua intenção de suicidar-se; outra, á policia, pedindo que não responsabilizasse ninguem por seu acto de loucura; finalmente, a terceira, dirigida a hoje distinto advogado, aqui, confessando-lhe violento amor”…
Furtaram-n’a os estudantes, que desta forma se livravam do martyrio diario de sua pituitaria. Arrebataram-n’a mysteriosamente, em uma noite chuvosa, isto em 1906, indo jogal-a numa barroca, onde hoje começa a avenida Brigadeiro Luiz Antonio.
Acharam-n’a no dia seguinte, pensando todos tratar-se de um accidente e ser ella uma pessoa que, por descuido, tivesse rolado a ribanceira. Até a Assistencia compareceu…
Quando se verificou ser a Jacyntha, o continuo da Faculdade, Narciso, hoje fallecido — o mesmo que assignava o diploma de burro, mimoseando, todo começo do anno aos calouros — e que déra o alarme, envolveu-a numa capa, devolvendo-a á sua redoma. O dr. Amancio sentiu immensamente, quando o soube, admoestando sua turma, promettendo reproval-a, quando dos exames. Seu bom coração não n’o deixou dar execução aos seus projectos. Aliás, seus alumnos estavam innocentes da culpa que lhe fôra atirada. Os autores da troça não eram alumnos do dr. Amancio.
Diz-nos Aureliano Leite, em sua obra citada, que nella tomaram parte Affonso Penteado, juiz federal em Curityba; Fernando Nobre, tabellião em São Paulo e não como se suppõem Moreira Machado, director da cadeia da Luz e o senador federal Justo Chermont, mais o jornalista Manuel Lopes de Oliveira Filho, estranhos á Faculdade e seu sobrinho José Bueno de Azevedo.
Eis a historia de sua maior aventura… Até hoje, continu’a sendo motivo de brincadeiras dos moços, victima de sua irreverencia. Ligada á vida risonha dos rapazes, tornou-se mesmo parte das tradições da Faculdade. Nem só as vetustas arcadas ou as mesas recortadas, recordam um tempo em que a vida paulistana se resumia em estreitissimo circulo, do qual a Academia era o centro.
Morto o dr. Amancio de Carvalho, sua viuva achou que nenhum outro motivo restava, que justificasse a permanencia da mumia na Faculdade. Em palestra que tivemos com um seu genro e esposa, indagando das causas dessa resolução, viemos a saber que enviára, nesse sentido, um requerimento ao dr. Pinto Ferraz. E se assim procedêra, fôra porque achava ser o sepultamento um acto de caridade christã, empenhando-se nisso ha muito tempo já. A mumia, argumenta ella, foi preparada pelo dr. Amancio, no intuito unico de demonstrar a efficiencia de sua formula. Hoje, que elle é fallecido e que seu successor, um advogado, não póde ter pelo trabalho o mesmo cuidado, não ha razão para que lá continue.
Numa de suas ultimas sessões, o Centro Academico XI de Agosto, por proposta dos bacharelandos Scalamandré Sobrinho e Nicolau Giudice, resolveu cuidar do enterro.
Assim é que hontem, ás 15 horas, com a presença de regular numero de pessoas, entre alumnos e povo, destacando-se os representantes do Centro Civico Palmares, do G. D. R. Kosmos e da Associação dos Homens Pretos, deu-se inicio á cerimonia funebre. O Centro Academico XI de Agosto fez-se representar por seu vice-presidente, sr. Edgard Pereira Barreto, e o dr. Spencer Vampré, pelos srs. Elias Alasmar e Scalamandré Sobrinho.
O enterramento foi na necropole de São Paulo, em sepultura perpetua, doada ao Centro Academico pela Prefeitura. Jacyntha estava vestida dum habito talar da Ordem de São Francisco, doado pela Casa Rodovalho, assim como o caixão e o carro.
A camara ardente esteve armada na sala 7, tendo ahi, usado da palavra, no momento do fechamento do caixão, o dr. Julio de Barros. No cemiterio, após á encommendação do corpo por frei Nicoláu, da ordem franciscana, falaram os srs. Vicente Ferreira e Scalamandré Sobrinho, respectivamente pelas associações dos homens de côr e pelo Centro Academico.
Está, pois, finda a existencia aventurosa da pobre mumia, que, antes de desapparecer, teve o dissabor de ver mudado mais uma vez seu nome, pois foi encommendada como sendo Raymunda…