Galeria dos Brasileiros Ilustres/João Crisóstomo Calado

Desde alguns anos que a morte impiedosa tem feito gemer o Exército brasileiro pela sucessiva perda de nobres veteranos da pátria, velhos guerreiros, generais experimentados que deixaram o seu nome escrito honrosamente nas páginas da História.

O valente soldado, mancebo ainda, que, sonhando com a vitória e com retumbantes façanhas, desperta ao clangor das trombetas que o chamam à peleja, e denodado corre ao assalto mortífero da praça, levando no coração o amor e nos lábios o nome da pátria, e que, ou no fervor da batalha ou na hora do triunfo, cai ferido por golpe mortal e expira, deixando o mundo com um herói de menos, é uma vítima que nunca se lamenta bastante; porque o futuro preparava ao jovem guerreiro troféus de vitória e os galardões da bravura.

Mas na sepultura do velho general caem lágrimas ainda mais dolorosas. O velho general é o orgulho dos veteranos que ele guiou às batalhas do tempo passado; é o pai desses mesmos e dos novos soldados com quem por vezes partilhara perigos, infortúnios, proezas e triunfos; o velho general é a crônica viva e respeitável desses mil episódios tremendos, brilhantes, calamitosos, entusiásticos da história variada e eletrizadora da guerra; o velho general é o exemplo da disciplina, é o símbolo da fidelidade, é a confiança da pátria, o baluarte da nação, o guia da vitória: a sua experiência é um grande livro, onde os novos guerreiros aprendem segredos que as mais sábias teorias não descortinam: a sua espada é um monumento que recorda gloriosos acontecimentos.

O Exército é uma família imensa: todos os soldados são irmãos, e os velhos generais são como os venerandos patriarcas desses milhares de homens, que têm todos a mesma bandeira, que prestaram todos o mesmo juramento, que obedecem todos ao mesmo dever: são as legendas vivas de um passado que pertence a eles todos.

E quando morre um desses capitães, que, tendo já a nobre cabeça coroada pela neve dos anos, tem ainda o braço de ferro para defender o país, o Exército chora um chefe, os soldados um pai, a Pátria um benemérito.

Esse velho corpo que desce à sepultura é como uma fortaleza que desaba: contam-se no cadáver as cicatrizes das feridas feitas pelas balas e pelas baionetas do inimigo; calcula-se quanto sangue correu delas, vê-se nas rugas da fronte pálida ainda planos de batalhas; vê-se na imobilidade das feições marmóreas o frio valor do bravo que nem se sorria, nem tremia em frente da morte, e que impávido bradava — marcha! — sem indagar se adiante estava o perigo, bastando-lhe a certeza de que adiante estava o dever.

Oh! Curvemo-nos ante as sepulturas daqueles que por longos anos pagaram ao Estado o tributo do sangue: honremos os guerreiros que morrem, porque os guerreiros são os baluartes da honra nacional, suas espadas as muralhas do Império.

Entre esses beneméritos veteranos, que desceram à sepultura, um dos primeiros, cujo nome encontramos riscado da lista dos vivos, é o marechal João Crisóstomo Calado.

Em setenta e sete anos de vida, sessenta e dois de serviços relevantes prestados ao país; em sessenta e dois anos de serviço militar, exemplo constante de disciplina, de denodo, de dedicação, de perícia, de honestidade e de honra; em sua vida particular e em todo o tempo, notável como cidadão prestimoso e probo, como esposo devotado, como pai extremoso e como amigo fiel, eis em resumo a história do marechal Calado.

Cumprindo, porém, acompanhar este ilustre finado desde o berço até à campa para pagar-lhe assim o tributo devido ao seu merecimento, o biógrafo descansa a pena, e deixa falar por si a relação de fatos

sempre honrosos que documentos oficiais atestam; pede simplesmente à memória que trace em alguns minutos essa carreira brilhante e trabalhosa de sessenta e dois anos de serviços, e entrega à posteridade o cuidado de fazer justiça e de honrar o nome do benemérito general perdido pela pátria.

Os beneméritos falam por si mesmos na recordação de suas grandes e nobres ações: o elogio delas transpira naturalmente, como o perfume se exala do seio das flores.

João Crisóstomo Calado nasceu em 24 de março de 1780, na cidade de Elvas, reino de Portugal, de seus legítimos pais, o coronel Manuel Joaquim Calado e D. Maria Joaquina Nobre. Assentou praça em 26 de março de 1795, no Regimento de Infantaria nº 20, e foi reconhecido cadete.

Na guerra de 1801 combateu contra os espanhóis; e finda essa campanha, cursou as aulas de matemática, abandonando o serviço militar durante o domínio francês na Península Ibérica. Em 1808, com seus companheiros de estudos, passou à Espanha, onde se reuniam forças para expelir os franceses, e foi pelo tenente-general Francisco de Paula Leite nomeado ajudante-de-ordens do general espanhol D. Antonio de Arcé, com a patente de tenente, à qual tinha sido elevado por decreto de 5 de fevereiro de 1805. Sob o comando deste general, e pertencendo a uma divisão inglesa, fez toda a campanha até 1814 e entrou em Portugal; ascendeu gradualmente os postos, tendo sido graduado major em recompensa de sua conduta na ação de 5 de março de 1811, junto a Chia-lona, e elevado à efetividade do mesmo posto na batalha de S. Munhoz, pelo zelo, valor e acerto com que defendera uma posição contra o exército de Soult; sendo ao demais louvados em ordem do dia seus serviços durante a expedição de Cádiz a Sevilha, em agosto de 1812, pelo bom desempenho dos cargos de chefe da correspondência oficial e parlamentar para o resgate de prisioneiros. Feita a paz, e restaurado o governo português, foram a João Crisóstomo Calado oferecidos postos militares no exército de Espanha; mas, preferindo continuar no serviço de sua pátria, recusou-os, e mereceu especial recomendação do general d'Arcé ao governo; seus serviços até então foram pela Coroa remunerados com a Cruz de S. Bento de Aviz e a tença correspondente.

Organizado de novo o Exército em 1815, querendo o príncipe regente D. João VI mandar uma divisão para o Brasil, foi o tenente-coronel João Crisóstomo Calado encarregado de organizar e disciplinar o 4º Batalhão de Caçadores; e apresentando-o na melhor ordem ao tenente-general Lecor, chefe da expedição, partiu para o Brasil investido do comando desse corpo. Marchou a divisão, denominada de voluntários reais de el-rei, para a campanha da Banda Oriental do Uruguai; o coronel João Crisóstomo Calado dela fez parte na qualidade de comandante do 2º Regimento de Infantaria; posteriormente comandou a 1ª e 2ª brigadas, e obteve em prêmio a condecoração da Torre e Espada.

Uma nova época vai começar para o ilustre guerreiro; uma nova pátria lhe abre o seio; o valente soldado vai adotar a bandeira gloriosa de um novo império, e cumprirá até à morte o juramento de fidelidade que lhe vai prestar.

Não é um desertor que abandona as suas pelas contrárias falanges: não; é um exército que se divide, é a antiga pátria que se separa em duas nações distintas; e ele é o homem devotado, o soldado leal que aceita e adota a nova pátria pelo coração.

Começava-se a elaborar a idéia de independência do Brasil: a João Crisóstomo Calado, chefe da 2ª Brigada de Voluntários Reais, se perguntou se prestaria sua coadjuvação para ser aclamado imperador o príncipe D. Pedro e se o sustentaria; protestou que se podia contar com ele e com as forças sob seu comando; e aderindo decididamente à Independência acompanhou o general Lecor, então visconde da Laguna, em sua retirada da Praça de Montevidéu; reuniu-se às forças que a favoreciam, e debelou as contrárias, comandadas por d. Álvaro da Costa. Sofreu em conseqüência seqüestro nos bens que possuía dentro da praça.

Proclamada a independência e o Império, tendo embarcado as forças de D. Álvaro da Costa, foi João Crisóstomo Calado comissionado à corte para dar parte do ocorrido ao Imperador, o qual lhe ordenou continuasse no serviço do novo Império, promoveu-o por merecimento ao posto de brigadeiro graduado, e nesta categoria o fez regressar à Província Cisplatina.

Pretendeu pouco depois esta província reconquistar sua independência e proclamar-se república; abriu-se por isso nova campanha em maio de 1825. O brigadeiro Calado seguiu firme em seus sentimentos a favor do Império; combateu a rebelião, sofrendo novo seqüestro dirigido então a seus bens rurais que perdeu. Por ordem do visconde da Laguna tomou o comando da guarnição e departamento de Maldonado; posteriormente o barão de Vila Bela, nomeado presidente e governador das armas da província rebelada, o incumbiu de, com os destroços do exército, organizar e disciplinar uma divisão e assumir o comando da linha em frente da praça: honrado com a cruz de ouro da campanha Cis-platina e com o hábito do Cruzeiro, o brigadeiro Calado permaneceu neste serviço ativo até que, mudada a guerra para a província do Rio Grande do Sul, pela intervenção das tropas argentinas, o marquês de Barbacena, chefe do exército brasileiro, o chamou e incumbiu de comandar a 2ª divisão desse exército, à testa da qual assistiu à batalha de 20 de fevereiro de 1827 nos campos de Ituzaingó: pela maneira distinta por que se portou então mereceu ser elogiado em ordem do dia, feita publicar pelo mesmo marquês. (Claramente se acham descritos esses seus serviços, e comprovados por documentos oficiais na segunda parte do opúsculo publicado em 1852, sob o título Memórias do grande exército aliado libertador do Sul da América.) Coube-lhe a promoção a marechal-de-campo graduado, e voltou a Montevidéu, onde assumiu o comando-em-chefe das forças ali estacionadas; comandou-as até que o tratado de 27 de agosto de 1828 as fez retirar. No ano seguinte, achando-se reunida em Santa Catarina grande parte do exército, foi João Crisóstomo Calado nomeado comandante das armas da província.

As idéias de proteção ao absolutismo que professavam as autoridades civis encontraram nele opositor; foi por conseguinte delatado e submetido a conselho de guerra, o qual unanimemente o absolveu, declarando-o, em sentença de 14 de novembro, sem culpa, e a sua conduta irrepreensível durante o comando das armas; sentença confirmada pelo Conselho Supremo Militar quatro dias depois, declarando-se sua conduta não só irrepreensível, mas digna de louvor pelo zelo com que se prestara no desempenho de seus deveres. (Ordem do dia do quartel-general de 2 de outubro de 1829.) S. M. o Imperador fez-lhe mercê do título da comenda da Ordem de S. Bento de Aviz, em 18 de outubro desse ano; e o Poder Executivo deu complemento a essa pública satisfação, nomeando-o de novo comandante das armas da mesma província, por decreto de 30 de janeiro de 1830. Mas o marechal, compreendendo que sua pre-

sença em Santa Catarina ocasionaria discórdia de autoridade, pediu dispensa, e se lhe concedeu com transferência para o comando das armas da Bahia, onde tinha sido assassinado seu antecessor. No exercício desse cargo foi agraciado com a comenda da Ordem da Rosa.

A nomeação do marechal Calado para o comando das armas da província da Bahia em tão espinhosas circunstâncias, e no estado de excitação política em que então se achava aquela província, assinala a alta confiança que no ilustre militar depositava o governo de S. M. o Senhor D. Pedro I.

Mas o gérmens de uma revolução já estavam espalhados em todo o Brasil: causas acumuladas, os acontecimentos da França em 1830, os erros do governo e a exaltação dos partidos preparavam um cataclismo tremendo, que somente pôde ser removido pelo patriotismo do Senhor D. Pedro I, que resolveu abdicar.

O movimento de 7 de abril de 1831 foi precedido na Bahia pelo de 5 do mesmo mês e do mesmo ano. O comandante das armas da Bahia julgou de seu dever opor-se à revolução: recebendo, porém, ordem do presidente da província, Luís Paulo de Araújo Bastos, de deixar o posto, embarcou para a corte; à sua chegada teve notícia da abdicação de D. Pedro I, e foi recolhido às prisões da fortaleza de Villegaignon. Cônscio de ter procedido no restrito cumprimento de seus deveres, pediu se lhe nomeasse conselho de guerra, sem mesmo esperar que os espíritos serenassem. Em 28 de julho de 1831 foi absolvido em 1ª instância, por julgá-lo o conselho sem criminalidade; e na confirmação da sentença declara o Conselho Supremo Militar que o fazia, não só por lhe não provar criminalidade, mas até por serem muito louváveis todos os seus procedimentos.

Apesar, porém, destas sentenças, que punham a coberto seus brios de soldado e o honravam como cidadão, compreendeu o marechal Calado que sua estrela achara névoas no zênite, e era de mister esperar que se dissipassem para prestar algum fulgor ainda no ocaso; retirou-se por dois anos para as margens do rio da Prata, deu nova têmpera à sua coragem na sede de suas glórias.

De volta ao Rio de Janeiro, foi elevado à efetividade do posto de marechal-de-campo; e a regência, julgando-o capaz de sufocar a rebelião que rebentara na província da Bahia, em 7 de novembro de 1837, e a assolava ameaçando todo o norte do Império, o nomeou comandante das armas dessa província, com autoridade de formar um exército para submeter os revoltosos. Cumpriu o seu dever, batalhou durante três dias consecutivos, obrigou a render-se à discrição desde o chefe até o súdito da rebelião, e a 16 de março de 1838 cravou na Praça da Piedade o estandarte imperial.

Os habitantes da Bahia demonstraram sua gratidão ao benemérito general comandante do exército restaurador da ordem e da legalidade por intermédio de uma deputação, composta de alguns de seus mais distintos concidadãos, que lhe dirigiu um voto de reconhecimento. Uma particular manifestação partiu ainda de muitos proprietários e negociantes, que além disso assinaram avultadas quantias em uma subscrição destinada a oferecer uma prenda valiosa ao ilustre marechal. Este, porém, esquivou-se nobremente a receber o último favor, e o cedeu em benefício das viúvas e órfãos dos bravos mortos em defesa da legalidade. A gratidão pública brilha aqui a par do desinteresse. Entretanto, a digna esposa do general vencedor não pôde deixar de aceitar uma oferenda duplamente preciosa, porque, ao mesmo tempo que lhe recordava um dos belos feitos do esposo, representava a efígie de S. M. I. o Senhor D. Pedro II com a inscrição "Os baianos agradecidos ao marechal Calado, 1837".

Por tão relevantes serviços o governo imperial elevou o ilustre militar ao posto de tenente-general, e nomeado ainda vogal do Conselho Supremo Militar.

Nos tumultuosos dias de julho de 1840, foi João Crisóstomo Calado o oficial-general que de moto próprio, compareceu no paço da Boavista, e por odem de S. M. I. o Senhor D. Pedro II, e de seu tutor o excelentíssimo senhor marquês de Itanhaém, encarregou-se da guarda do palácio, ponderou que a presença de baionetas no pátio do palácio era um inútil, triste e talvez prejudicial degrau para a ascensão de S. M. ao poder, e conseguintemente fez retirar os corpos armados, acompanhou o Imperador até o paço do Senado, e só o deixou quando o reconheceu empossado da suprema administração em plena paz e regozijo.

Em 1841 o tenente-general teve a nomeação de conselheiro de guerra, e com cinqüenta e quatro anos de serviço ativo pediu sua re-

forma em marechal do Exército, e obteve com a cláusula de continuar no exercício de conselheiro de guerra.

Esta longa e não interrompida série de serviços terminou enfim de uma vez para sempre no dia 1º de abril de 1857 pelo falecimento do varão distinto e preclaro que os prestara.

Sobre a sepultura do marechal João Crisóstomo Calado a Pátria, a esposa, os filhos e numerosos amigos derramaram lágrimas de amor e de saudade.

Não faltaram honras nem distinções ao benemérito: João Crisóstomo Calado era fidalgo cavaleiro da casa imperial, comendador das ordens de Aviz e da imperial da Rosa, oficial da imperial ordem do Cruzeiro, cavaleiro da Torre e Espada, e condecorado com a cruz da campanha peninsular na Europa, e com a estrela de ouro da do rio da Prata; conselheiro de guerra e marechal do Exército do Brasil.

Subiu a tão subido posto, conquistando todos os graus na escala de hierarquia militar por serviços relevantes prestados nos campos de batalha ou em importantes comissões administrativas.

As honras lhe foram devidas, como de direito lhe cabe um renome glorioso e a memória dos justos eternizada à história da pátria.