Galeria dos Brasileiros Ilustres/João da Silva Carrão

A prova mais eloqüente que os brasileiros têm para demonstrarem a sua liberdade política é a de contarem na galeria de seus bustos históricos homens que fizeram as suas reputações a troco de sacrifícios próprios, independente do prestígio da família, ou da riqueza. Embora o patronato alguma vez se acenda de pretensões audaciosas para sucumbir o merecimento, que arrebenta valente do seio da mais modesta, quiçá empobrecida família; embora o talento desminta em público a mediocridade ornada de ouropel, e vexe solenemente os patronos, quando de tal tarefa se não encarregam inocentemente os afilhados da fortuna.

É um erro grave do poder acercar-se da ignorância protegida, deixando em desamparo a inteligência enrobustecida pelo trabalho, e resignada pela consciência do que vale, o que é mais uma bela esperança, pois que essa mesma consciência se torna afinal a sagração de um direito. Resistir à inteligência é multiplicar-lhe os triunfos, dando-lhe ao mesmo tempo nova têmpera e renascido vigor.

A única escola da glória é o trabalho; a única aristocracia que a sã filosofia reconhece é a do talento e da virtude, e a única força que jamais abandona o homem é aquela que se conquista pela vigília, e não a que se recebe em doação.

Ter a coragem de esperar o bem do futuro, dobrando-se sem humilhação ao presente que esmaga e aflige, é talvez a mais distinta virtude para um espírito que se dedica às pelejas políticas.

Conquistar uma posição, sustentá-la enquanto passa o tufão da adversidade sem perder a postura, e engrandecê-la sem exageração nos dias da ventura, é um grande testemunho de razão pura e de serenidade da alma.

Longe de nós, que escrevemos estas linhas com a mão na consciência, a intenção de negar ao talento seus ímpetos, seus desdéns, quem sabe mesmo se suas vinganças. Muitas vezes o esforço da calma quebra o vaso de argila, a paixão justa arrebenta a válvula da razão.

Pois bem: o Dr. João da Silva Carrão é um belo modelo moral da grande virtude da moderação. Escrevo simplesmente a história da sua vida, para que fique bem certo que é ele dotado de um talento que se não excede, de uma alma que se não turba, porque lá impera sempre a razão, e de uma modéstia que só pode ter como correlativo uma grande inteligência e copioso merecimento.

Devo-lhe a verdade, por isso a escreverei inteira; falte embora a biografia, porém fique mais ou menos fiel a efígie de tão avultado caráter.

Nascido a 14 de maio de 1814, na cidade de Curitiba, hoje capital da província do Paraná, e naqueles tempos cabeça da comarca do mesmo nome, pertencente à província de São Paulo, seu primeiro vagido perdeu-se na atmosfera pesada do regime colonial. A independência da Pátria mal se desenha em sua alma como fugitiva lembrança dos dias belos e risonhos da terna adolescência. É a esta geração que pertence o presente do país; que o encham de gigantescos fenômenos políticos, ou de maravilhosos artefatos industriais, a glória será somente sua, bem como a maldição da posteridade lhe pesará violenta sobre sua memória, se ao patriotismo deixarem substituir a indiferença, e o que é ainda mais terrível, consentirem que o egoísmo mate em flor a dedicação.

O caráter cavalheiroso e escancarado dos homens de Curitiba, se não é seu distintivo, é pelo menos um de seus principais atributos.

Filho legítimo do finado capitão Antônio José da Silva Carrão, que por largos anos exerceu o importante emprego de tesoureiro-geral da comarca, até que foi extinto, recebeu de seu pai as primeiras lições de firmeza e dignidade.

A Curitiba era então uma povoação ainda em aurora, e portanto não é de admirar que afora os primeiros rudimentos da educação, lhe faltassem as aulas de humanidades. Mas o latim era aí ensinado com momento espantoso à mocidade pelo afamado reverendo padre Francisco de Paula Prestes. A este distinto professor entregou Antônio José da Silva Carrão seu filho, que de pronto e com confessada admiração do professor, concluiu em meses o estudo da língua latina. Mas quantas vezes sua diligente e extremosa mãe o arrancou a horas altas da noite da mesa do estudo, em que a jovem e robusta inteligência com apaixonada vontade de saber se afadigava em reiteradas lutas para o descobrimento da verdade?

Os estudos preparatórios tinham caído em declínio na cidade de São Paulo, pelo que o capitão Antônio José da Silva Carrão mandou seu filho para Sorocaba, onde os concluiu com louvor.

Matriculou-se em 1833 na Academia de São Paulo: formou-se bacharel em ciências sociais e jurídicas em 1837, e recebeu o derradeiro grau de doutor em Direito no ano de 1838.

Em cada ano de sua vida acadêmica obteve um triunfo, precursores fiéis de sua glória futura. Seus companheiros o admiravam e es-timavam-no, porquanto, a par de uma inteligência vigorosa e de um raciocínio tão robusto e compacto a que se não resiste, se via e se sentia uma modéstia tipo, e um coração dócil.

A amizade não é para o Dr. Carrão um simples sentimento; é uma religião com todos os seus deveres.

O vigor raro de sua inteligência e a candura de sua alma jovem lhe criaram admiradores, que se tornaram logo amigos. A bela palavra do jovem Dr. Francisco Bernardino Ribeiro, tão cedo perdido para as letras e para a Pátria, se fazia ouvir nos salões da Academia de São Paulo, e levado de simpática atração, os dois talentos se encontraram unidos pelos vínculos da ciência, da política e da amizade.

Em 1835, sendo ainda estudante do 3º ano, colaborou na re-dação do Novo Farol Paulistano, do qual era redator Francisco Bernardino Ribeiro, assumindo alguns meses a redação.

Nas mãos do estudante João da Silva Carrão, o Novo Farol Paulistano não era mais essa bigorna de aço para quebrar os martelos do despotismo, não era esse facho ardente para atiçar as paixões populares, com o propósito de anular um rei, ainda comprometendo uma monarquia inteira. O Novo Farol era a luz doce que esclarecia os mares aos viajores desnorteados, era a tocha da razão alagando com seus belos clarões o santuário da consciência política.

E prestou grandes serviços esta pequena folha em São Paulo, pregando a única e verdadeira política conforme com a razão e os interesses do país.

Nunca se precisou no Brasil de tanta moderação nos partidos como naquele período regencial, em que a vitória de 1831 estimulava os vencedores à exageração, e os vencidos à irritação nascida do despeito. A revolução, que estava no poder, não tinha outra força que não fosse a moral, e entretanto os interesses dos pequenos grupos conspiravam. Era preciso afrontar todos estes perigos, chamando os espíritos à discussão calma das cousas públicas, e dando à imprensa esta fisionomia de imparcialidade científica, que convence sem irritar.

Tanto o finado Dr. Francisco Bernardino Ribeiro como o jovem estudante João da Silva Carrão tinham convicções políticas, mas não ódios de partidos. As opiniões da mocidade explicam-se pelos prosadores eloqüentes e poetas, nos quais bebem a longos sorvos as idéias, mas nunca por vinganças individuais ou de grupos. A razão teve no Novo Farol seu altar, e daí radiou a paz e a concórdia.

Foi este o primeiro marco que João da Silva Carrão, ainda nos estudos, assentou no estádio da vida política. Não era sua ambição de glória que tinha pressa do alarido do renome, ou dos prazeres do poder; não: era sua inteligência admirável, amadurecida ainda no primeiro albor.

Com a abdicação em 1831 o Partido Liberal se dividiu em duas frações muito distintas: os exagerados e os moderados; os primeiros não se contentavam com as instituições adquiridas, e sonhavam reformas; os segundos desejavam a permanência do regime monárquico-constitucional. O Dr. João da Silva Carrão pertencia ao Partido Liberal Moderado, sem adeptos na Academia de São Paulo. A mocidade folga nas lutas, e procura as grandes impressões e as novidades surpreendentes. Na cabeça do jovem a idéia não produz só a convicção, porém sim entusiasmo febril, ávido de peripécias.

O estudo sério e a educação bem dirigida tinham dado ao espírito do Dr. João da Silva Carrão a calma e a reflexão, de maneira a excluir esses ímpetos desordenados, que o consomem de esforços estéreis, e dos quais nos dias de atenção e retrospecto ao passado quase sempre se torna motivo de arrependimento.

Acabava de receber o grau de doutor quando vagaram na Faculdade duas cadeiras. Entrou em concurso com o finado Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos, e a congregação dos lentes propôs ambos ao governo imperial em 1838.

Os dois concorrentes liberais, decididos e de talentos superiores, não poderiam agradar ao Gabinete de 19 de setembro, que, inspirado pela paixão política e egoísmo de partido, não consentia que o merecimento conquistasse os postos da República, e ainda os das letras, sem comungar no mesmo evangelho político, ou pelo menos prestar nas vésperas da investidura o juramento de obediência.

É escusado dizer que os dois concorrentes às cadeiras da Academia não perderam aquela nobre postura política de independência e profunda convicção.

O Governo de 19 de setembro, que tinha suas vinganças a preencher e obstáculos a pôr a toda a prosperidade que pudesse tocar a algum liberal, usou do direito dos tiranos anulando o concurso por caprichosa nulidade, o que em nada podia afetar a regularidade da prova, e muito menos pôr em dúvida o alto merecimento dos candidatos. A verdadeira nulidade foi a opinião política a que pertenciam os dois concorrentes.

O Governo fez de sua vontade lei. Os amigos dos Drs. Carrão e Gabriel viram com razão na anulação do concurso uma inspiração política, e molestados entenderam pedir-lhe que não mais concorressem até que mudasse o espírito do Governo, que estava disposto a anular todos os concursos em que fossem aprovados e propostos brasileiros liberais.

Eleito deputado suplente à assembléia geral em 1840, esteve nas sessões preparatórias da Câmara dissolvida previamente em 1842.

Seus princípios de ordem e de liberal moderado repugnaram com o projeto da revolução de 1842 nas províncias de São Paulo e Minas Gerais. Quando foi ocasião de ser consultado por seus amigos, o Dr. João da Silva Carrão ainda tentou persuadi-los da temeridade, senão loucura, de semelhante tentativa de vencer pelas armas as idéias retrógradas do Governo de então. Mas a febre do entusiasmo e a confiança de uma quase unânime adesão da província ao movimento armado os ensurdecia às vezes da razão calma e não comprometida.

Vencido em seu parecer pelo número, nem por isso o Dr. João da Silva Carrão se deixou dominar; porém não teve outro remédio senão o silêncio. Ah! quantas alusões se fizeram, quantas suspeitas cruéis e injustas, quantas murmurações! Entretanto era de mister sofrê-las sem desabafo, porque os homens de bem pertencem a um partido, como a uma família pertence o filho.

Não conhecemos alguém em política que padeça com mais resignação a proscrição, nem tampouco quem tenha esperança mais viva no futuro.

A proscrição política que padecera em virtude da revolução vencida não o acovardou. O futuro é a grande vingança dos espíritos resignados, e a esperança das idéias oprimidas, porém não batidas.

O jurisconsulto da altura do Dr. João da Silva Carrão não tem precisão da generosidade dos governos para conquistar uma vida cômoda, senão feliz. A inteireza de seu caráter, e a severidade a que sua alma se tinha habituado não podiam suportar a humilhação, e nem tampouco as transações da política.

Em 1843 fixou sua residência na cidade de São Paulo, e abriu escritório de advocacia. O advogado se nivelou com o jurisconsulto, inspirando a maior e mais viva confiança a todos que o procuravam para dar remédio a seus sofrimentos. A pobreza encontrou um vingador de prestígio e de saber; a riqueza um amparo forte; o arbítrio um censor circunspecto, e por isso mesmo cruel.

Sua reputação correu a província, e de remotos termos vinham a seu escritório clientes animados de esperança no patrono que a popularidade de um grande nome lhes designava.

Tem sido um verdadeiro sacerdote da nobre profissão do advogado. Nesta gloriosa arena adquiriu os mais vigorosos títulos ao reconhecimento do povo, que procurou sempre ansioso as urnas eleitorais para conferir-lhe o mandato legislativo.

Se a força mais de uma vez pesou sobre a consciência pública, de sorte que ficou privada de se exprimir livremente, todavia não foram menos gratos ao candidato do povo os nobres esforços empregados para seu triunfo.

O sucesso não é a medida da justiça, nem o correlativo da verdade.

Em 1844, quando já tinham serenado os ódios que a revolução de 1842 atiçara, e parecia dever começar o trabalho da razão desprevenida na indagação do passado, criou o Dr. Carrão com o conselheiro Campos Melo um periódico político denominado Americano, com o propósito de explicar as causas da revolução, e apagar as negras sombras com que os adversários enegreciam aqueles acontecimentos, para mais facilmente desmoralizarem o Partido Liberal da província, e ungirem com a salvação pública os golpes que da corte descarregaram os arautos do partido saquarema contra os chefes daquela crença.

Era de mister preparar o futuro de uma religião política vencida e perseguida, o que não se podia conseguir sem moralizar aqueles fatos anormais, que determinaram o triste acontecimento da revolução, de cujos efeitos e existência também eram responsáveis em mor parte seus provocadores.

O Americano falou a linguagem da moderação, raciocinou. E com este espírito obteve assinalados triunfos na opinião, que afinal veio a ter um juízo verdadeiro sobre o estado do Partido Liberal antes e no tempo da revolução armada.

Os chefes do partido liberal não perdoaram ao filósofo e ao escritor imparcial a independência com que condenara a revolução da qual eles haviam tomado a direção suprema. Aguardaram o dia da eleição para se vingarem, excluindo da chapa liberal o nome do Dr. João da Silva Carrão.

Assim são os homens: aborrecem a verdade, porque com sua franqueza lhes molesta o amor-próprio, e amam a lisonja e a mentira, porque estão sempre prontas a santificar seus erros.

O povo repugnou subscrever ao ato de proscrição que os chefes do Partido Liberal haviam lavrado com tanta fraqueza; e apesar da união em que o partido vivia, a desobediência a um tal decreto se tornou inevitável.

O Dr. João da Silva Carrão foi eleito primeiro suplente à deputação geral, e tomou assento na Câmara em 1846.

Em 1845 foi nomeado lente da Faculdade de Direito em São Paulo depois de um concurso brilhante e de proposta de seu nome ao governo pela congregação da Faculdade. A vara da proscrição não pesava mais sobre o Partido Liberal. Estava no poder o Ministério de 2 de fevereiro.

Sobre a profundeza de seus conhecimentos jurídicos, de sua palavra clara, sistemática e correta, de sua lógica vigorosa, são testemunhas sinceras todos esses jovens que tiveram a fortuna de receber suas lições.

O direito à sua voz como que se aviventa e toma todas as proporções gigantescas da ciência da vida social.

Ele explica a lei em sua origem histórica, com sua filosofia e seu desenvolvimento no tempo. Na Academia é um grande jurisconsulto, na imprensa um distinto publicista, no escritório um exímio advogado. A seu raciocínio corresponde a convicção; os espíritos robustos se dobram submissos à poderosa pressão de sua lógica de ferro: se não fora seu amor pela verdade, ele a poderia fazer passar pelos cadinhos de sua dialética de modo a desvirtuá-la, iludindo aos mais atilados. Não o faz, porquanto seu espírito aborrece o paradoxo; porém em algum dia de ostentação acadêmica, principalmente em provas de doutoramento, leva de vencida aos primeiros acometimentos os espíritos mais preparados.

Foi membro da Assembléia Provincial de São Paulo nos anos de 1842 a 1843, de 1846 a 1849, de 1856 a 1857. A instrução pública, as finanças e melhoramentos materiais receberam impulsos benéficos de sua alta razão legislativa, dos quais ainda goza a província.

Nos dias da desgraça e na hora da adversidade do Partido Liberal de São Paulo, o primeiro homem que aparecia para animar os amigos e prepará-los para a resistência era o Dr. João da Silva Carrão.

Em 1849, que a infeliz revolução de Pernambuco tinha acabado por desfechar tão rude golpe no Partido Liberal, criou o Dr. Carrão em São Paulo o Ipiranga, que foi por muitos anos o mais temível campeão das idéias liberais na imprensa, e um centro de unidade, de força e de desafogo ao sofrimento. Nunca faltou a esta folha dignidade e moderação. Sua coleção é uma erudita obra de direito público, e uma história vivaz, sim, mas fiel das lutas políticas daqueles tempos.

O Ipiranga foi um belo estandarte, e todo aquele que se bateu à sua sombra deve ter uma grande ufania. Ao Dr. Carrão ficará a glória de ter dado palavra e tribuna a um grande e patriótico partido nos anos de oposição e de padecimentos.

Em 1856 foi eleito deputado geral pelo 1º distrito eleitoral (o da capital) da província, apesar de ser o colégio eleitoral em sua maioria composto de membros do partido outrora chamado saquarema. Sua candidatura foi aceita pelos próprios adversários, tal é a confiança que seu merecimento inspira, e tal é a prova solene e irrecusável de sua moderação.

Atendendo o governo imperial sobre suas brilhantes qualidades para executar fiel e proveitosamente a política da conciliação na longínqua província do Grão-Pará, o nomeou em 1857 seu presidente. Em menos de um ano o jurisconsulto, o publicista, e o advogado mostrou seu grande talento administrativo, e preencheu sua missão tão exatamente, que os próprios inimigos políticos não acharam motivo razoável de censura.

Aqui pára sua carreira pública. Que Deus lhe conceda muitos anos de vida para que o nosso país possa usufruir todos os benefícios que tem direito de esperar de uma inteligência tão avultada e de um coração tão puro.