Galeria dos Brasileiros Ilustres/Martim Francisco Ribeiro de Andrada
Há muita vida, muita grandeza em nosso passado. A história contemporânea brasileira é fecunda em brilhantes episódios, em gloriosos exemplos, que devem ser religiosamente guardados pela gratidão nacional.
A causa da liberdade no Brasil tem sido ilustrada por devotações patrióticas, por sacrifícios heróicos. Filhos ingratos, nós renegamos o passado, e olhamos com desdenhosa indiferença para aqueles que nos legaram uma nacionalidade. A lápida, que encerra os restos de nossos grandes homens, guarda também as glórias da pátria: entretanto eles aí jazem no esquecimento, e a geração presente renega o culto do passado para incensar os ídolos do dia!
Desde a Independência até hoje há mais de um exemplo eloqüente para atestar a grandeza histórica de nossos maiores, José Bonifácio, Martim Francisco, Antônio Carlos, Feijó, Paula Sousa, Alves Branco, são nomes que simbolizam épocas, e hão de representar com honra o Brasil de hoje perante as gerações futuras.
No grande pórtico de nossa história política avulta a figura majestosa de Martim Francisco Ribeiro de Andrada.
Enquanto o passado for uma religião; enquanto a virtude cívica for honrada, e o patriotismo merecer cultos, esse nome viverá nas recordações da pátria agradecida. Sua glória selou-a já a tradição.
Ide aí a todos os ângulos do Império; penetrai até lá onde não tiver repercutido o movimento do século, escutai o singelo habitante do nosso interior, e ouvireis o nome dos Andradas proferido com o respeito devido a esses homens-épocas, que concitam a gratidão de um povo inteiro.
Martim Francisco é um dos apóstolos mais devotados de nossas liberdades, um dos grandes obreiros de nossa independência. Sua vida é uma reação contra o passado colonial, um protesto enérgico e eloqüente contra o absolutismo. Seus longos sofrimentos pela causa do Brasil, o prestígio da proscrição, a probidade e independência de seu caráter, o mesmo orgulho de seu merecimento, dão à sua figura proporções grandiosas, que nos recordam os homens da antiga Roma, e o colocam entre os vultos mais notáveis do país.
Martim Francisco Ribeiro de Andrada nasceu na então vila de Santos em 1776: foram seus pais o coronel Bonifácio José de Andrada, e sua mulher D. Maria Bárbara da Silva. Os recursos de sua família pro-porcionaram-lhe a vantagem de seguir, com seus dois irmãos, a carreira literária: a Universidade de Coimbra abriu-lhe seus tesouros, e aí obteve Martim Francisco o grau em matemáticas.
Desde o reinado de El-Rei D. João V alargara-se consideravelmente o círculo dos brasileiros que se dedicavam às letras, e concorriam com distinção para o serviço da metrópole. O desembargador João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho, seu irmão o conde de Arganil, reitor reformador da Universidade de Coimbra, José Bonifácio de Andrada e Silva, Fr. Veloso, o grande botânico, Sousa Caldas, Silva Alvarenga, Coelho de Seabra, fecham com honra o século XVIII, e abrem com majestade o século XIX nos fastos do Brasil. Martim Francisco pertenceu também a essa plêiade brilhante. No ano de 1800 vemo-lo já empregado em excursões científicas ao serviço da nação portuguesa ao lado de seu irmão José Bonifácio, e do tenente-general Napion. O Brasil era então representado com glória ante a metrópole.
Voltou depois à sua pátria todo entregue à vida pacífica do homem de letras, e acumulando com seus estudos esse cabedal de erudição e saber, que devia mais tarde engrandecê-lo tanto no teatro da vida pública.
Serenos foram os dias que passou sob o reinado de D. João VI: o Brasil todo vivia tranqüilo sob o regime do absolutismo, e parecia como adormecido para ganhar forças, com que se empenhasse mais tarde na luta porfiada da Independência.
Durante esse largo período, em que se preparam os acontecimentos, que deviam mais tarde confundir-se com seu nome, Mar-tim Francisco era ainda o homem de letras, todo entregue às indagações da ciência.
O país entrara em uma nova fase: retirado El-Rei D. João VI para Portugal, tornara-se a recolonização do Brasil o alvo político das Cortes de Lisboa. Os decretos de 29 de setembro foram o primeiro passo para restabelecer a antiga denominação colonial. O Brasil uníssono repeliu tão impolítica pretensão. Com seu irmão José Bonifácio concorreu Martim Francisco, a esse tempo secretário do governo provisório de São Paulo, para essa gloriosa representação de 24 de dezembro de 1821, que foi o primeiro grito do patriotismo contra a prepotência da metrópole.
Chegado à corte, é José Bonifácio chamado à gerência dos negócios públicos, e começa sua grande obra de organizar o país no sentido das idéias da Independência. O passado porém estava ainda em pé: o mando de Portugal dominava. As medidas impolíticas das Cortes haviam lançado o germe da discórdia entre os brasileiros.
Em São Paulo o movimento retrógrado das idéias lusitanas, apoiado pelo general João Carlos, conseguira entorpecer o progresso da liberdade constitucional, que a nova ordem de coisas tentava plantar no país. Como representante das novas idéias, que se encarnaram em José Bonifácio para dar-nos a Independência, é Martim Francisco expulso do governo provisório de sua província, e conduzido preso para a corte. Tal era ainda a força das idéias regressistas.
Chegado ao Rio, aguardava-o o mais brilhante triunfo: seu nome ia ligar-se ao grande drama de nossa libertação política.
A luta da Independência era uma empresa difícil: desorganizado pelas Cortes, o Brasil entrava em combate com uma potência constituída, que o assenhoreara por três séculos.
Nessa grande empresa empenhavam-se todos os recursos do país: provas de extraordinária firmeza e atividade dera José Bonifácio, conduzindo com prudência consumada o movimento da Independência. A época porém era crítica: as circunstâncias do país punham em contribuição todos os recursos do político; a nova ordem de coisas reclamava sobretudo um hábil financeiro, que pudesse, por acertadas medidas, fazer face às avultadas despesas, que exigiam acontecimentos tão extraordinários: esse homem apareceu em Martim Francisco. A 4 de julho de 1822 é ele chamado ao ministério da Fazenda: sua glória ilu-mina-se com os raios da liberdade nascente. O desinteresse e a probidade deram a mão a subidos talentos para firmar sua reputação política: apesar dos enormes dispêndios da guerra da Independência, sua probidade e patriotismo acharam recursos para fazer-lhes face sem gravar os cofres da nação.
Consumou-se a Independência, e a Constituinte brasileira re-uniu-se para organizar o pacto da nova associação política. Martim Francisco foi a ela deputado pelos votos da província do Rio de Janeiro: o ministro, encarregado de dirigir os destinos do Império, devia no seio da Constituinte defender os interesses do povo, a causa da liberdade. Essa missão ele a desempenhou com honra.
A energia dos Andradas em uma época crítica, travada de paixões e preconceitos de nacionalidade, acarretou-lhe inimigos ardentes: uma oposição surgiu logo na cena política, que procurava em-baraçar-lhes a ação: depois de algumas vicissitudes a liga dos exaltados com os realistas determinou-lhes a queda, e a 17 de julho de 1823 o glorioso Ministério da Independência estava fora da administração.
Os talentos dos Andradas porém marcavam-lhes ainda um lugar distinto na arena política: retirados do poder organizaram essa oposição vigorosa, que antepunha os recursos da imprensa, a eloqüência da tribuna aos desvios do poder.
Na administração cingira Martim Francisco sua fronte com os louros de uma glória imorredoura: a tribuna reserva-lhe os triunfos da palavra, a preeminência do orador.
Sua palavra ecoava com a majestade do tribuno do povo: no fato de Davi Pamplona, sua voz elevou-se à altura de uma nobre indignação; nos transportes do patriotismo, ela bradava com energia à Assembléia:
"Legisladores, trata-se de um dos maiores atentados, de um atentado que ataca a segurança e dignidade nacional, e indiretamente o sistema político por nós adotado e jurado. Quando se fez a leitura de se melhante atrocidade, um silêncio de gelo foi nossa única resposta, e o justo receio de iguais insultos à nossa representação nem sequer fez as somar em nossos rostos os naturais sentimentos de horror e indignação. Dar-se-á caso, que submergidos na escuridão das trevas tememos encarar a luz? Que amamentados com o leite impuro do despotismo amamos ainda seus ferros e suas cadeias? Ou que, vergados sob o peso de novas opressões, emudecemos de susto e não sabemos deitar mão da trombeta da verdade, e com ela bradar aos povos: Sois traídos!...'" [ ]
"Infames! Assim agradecem o ar que respiram, o alimento que os nutre, a casa que que os abriga, e o honorífico encargo de nossos defensores, a que indiscretamente os elevamos? Que fatalidade, brasileiros! Vivem entre nós estes monstros, e vivem para nos devorarem!... Grande Deus! É crime amar o Brasil, ser nele nascido, e pugnar pela sua Independência e pelas suas leis! Ainda vivem, ainda suportamos em nosso seio semelhantes feras!!..."
Esse discurso foi o testamento político da Constituinte: suas palavras, incendidas pelo entusiasmo ardente do patriotismo ofendido, feriram o poder, e os nomes dos que as proferiram foram inscritos nas tábuas da proscrição: a 12 de novembro de 1823 a Constituinte era dissolvida à força armada, e Martim Francisco, com seus irmãos e outros patriotas, arrastado às torturas do exílio!
Enquanto Martim Francisco, atirado às plagas do estrangeiro, geme sob o peso do exílio, o poder desenvolvia no Brasil sua vasta rede de pesquisas, em que tentava colhê-lo: a dissolução da Constituinte fora apenas um episódio da grande obra empreendida contra os representantes da nação. O decreto de 24 de novembro de 1823 instituiu um vasto plano de inquisição política, que imprimia o caráter de criminalidade nos mesmos discursos dos deputados à Constituinte!
Martim Francisco e Antônio Carlos foram compreendidos na horrorosa devassa, a que então se procedeu. O processo contra eles instaurado é uma exceção, um interregno da Constituição: parece antes um parto do absolutismo dos antigos tempos, do que um documento de uma época constitucional: seus discursos na Constituinte, as cartas por
eles escritas do desterro à família, aí figuravam como provas de criminalidade; e essas cartas o governo apreendera, violara seu segredo, e mandara por portaria de 9 de outubro de 1824 apensá-las ao processo! A História lembrará sempre, como uma feição característica da época, que o ministro, que referendou esses atos, foi um dos redatores da Constituição do Império.
Em 1828 estava ultimado o plano do poder: o processo, que inculpava Martim Francisco do crime de sedição, ia ser sujeito à Relação. O ilustre proscrito corre com seu irmão Antônio Carlos ao Rio para de-fender-se, e, chegando à sua pátria, é encerrado em uma masmorra da Ilha das Cobras, onde deve expiar o crime de haver amado sua pátria.
O véu ia rasgar-se, e sua inocência aparecer em toda sua luz. A 6 de setembro de 1828 a Relação do Rio de Janeiro firma a sentença de absolvição que lava a afronta feita aos Patriarcas da Independência, e os restitui ao seio de seus concidadãos. Nesse mesmo ano a província de Minas, o foco do civismo naquela época, protestava contra o poder, elegendo para a legislatura de 1830 o patriota proscrito.
Desgostoso porém por tantas decepções, lecionado por sofrimentos tão dolorosos, Martim Francisco protestara nunca mais chegar aos lábios o cálix amargurado da vida pública, que para ele só encerrara o fel da ingratidão.
Em 1830 recusou entrar para os conselhos da Coroa, a que o chamava o Imperador, já arrependido de seu erro.
A generosidade é o apanágio das almas grandes: Martim Francisco e seus irmãos perdoaram a Pedro I as ofensas dele recebidas, e foram na adversidade os únicos amigos que encontrou o Imperador.
A glória mais bela é a que iluminam os raios desmaiados de um astro cadente. Na hora suprema da adversidade a amizade assume a sublimidade de um sacerdócio: Martim Francisco soube ser amigo dedicado no dia do infortúnio, ele, que no tempo da prosperidade só recebera do monarca ofensas e ingratidões. Levou a fidelidade ao infortúnio do Imperador ao ponto de recusar servir sob a regência, porque, aceitando o 7 de Abril como um fato consumado, não queria assumir a responsabilidade de um governo saído do seio de uma revolução por ele reprovada.
O voto nacional lhe dera um assento no recinto dos legisladores da pátria. Restituído ao antigo teatro de suas glórias parlamentares, Martim Francisco desprendeu sua voz poderosa, e opôs o prestígio de sua palavra à marcha triunfante do governo da revolução.
Os acontecimentos se haviam sucedido com rapidez: a democracia tocara seu último ponto de exaltação política: envolto nas faixas da infância, lá estava esquecido em São Cristóvão o jovem Imperador; ao lado do berço imperial velava um venerável ancião, que na hora da adversidade aceitara de um pai esse legado sagrado.
Nessa época cheia de apreensões e de sustos, os atos do tutor pareceram aos olhos suspeitosos da revolução um crime: o governo propôs às câmaras a remoção de José Bonifácio da tutoria, Martim Francisco ocupa a tribuna em defesa de seu irmão.
Havia em Martim Francisco esse fogo sagrado das grandes convicções, que é como uma centelha desprendida do céu para animar a argila humana. Sua palavra traduzia a nobreza de suas paixões, e coloria-se com os brilhantes reflexos de um patriotismo ardente.
Durante o tempo da regência guardou Martim Francisco religiosamente o protesto que fizera de abster-se da vida pública.
Em 1838, quando sobre os restos da democracia se erguera uma nova política, Martim Francisco engrandeceu com seus talentos essa patriótica minoria, que opunha na câmara os recursos da eloqüência ao poder.
Na menoridade não havia salvação para o Império. O governo da regência gravitava sob o peso de uma missão superior às suas forças. A maioridade apareceu como o termo dos males públicos.
Nesse grande movimento parlamentar, que investiu o Imperador de suas funções majestáticas, Martim Francisco teve uma parte larga e generosa. De novo o velho patriota desenrolou o pendão de sua elo-qüência, e apoiou com o prestígio de sua palavra respeitável essa idéia, que se antolhava à nação como o símbolo da salvação pública.
A 23 de julho de 1840 a maioridade era uma realidade, e o ilustre paulista era com seu irmão Antônio Carlos chamado aos conselhos da Coroa pelo jovem Imperador. O mesmo gênio, que tinha assistido o Império nos dias da Independência, fora pela Providência fadado para inaugurar o reinado do segundo imperador: atravessara dezoito
anos de infortúnio para cumprir sua missão, e finda ela nada mais lhe restava sobre a Terra. Em menos de nove meses deixou o poder, e nos poucos dias que viveu, guardava-lhe ainda a adversidade seus sofrimentos para coroá-lo mártir da pátria.
Nenhuma parte tomou nos acontecimentos de 1842: entretanto, suas cãs foram desacatadas, e ele, com seu irmão Antônio Carlos, solenemente exautorado das honras de camarista do Imperador. A ingratidão devia ainda turvar seus derradeiros dias, e até à última hora o venerando ancião teve de sofrer pela pátria.
Um ano depois falecia em Santos no dia 23 de fevereiro de 1844 um venerável velho, cujo nome recordava as glórias da Independência, e cujo passamento obscuro traduzia uma viva exprobração à ingratidão de sua pátria: era o conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada.
De uma severidade de costumes superior a toda sedução, conservou-se sempre pobre, sem honras, e baixou ao túmulo apenas com o hábito de Cristo do tempo colonial ao peito. Para sua glória porém bastava-lhe seu nome.
Esse nome simboliza a época grandiosa da Independência, as virtudes cívicas do cidadão. Sua vida fora travada de sofrimentos e de dor; seus dias amargurou-os a ingratidão dos contemporâneos.
Sobre seu túmulo porém brilha hoje o sol de sua glória: as paixões do dia desapareceram ante a luz radiosa da verdade. A glória tem sempre por pedestal um túmulo: só a morte assela a reputação dos grandes homens.
A memória de Martim Francisco revive eterna no coração da pátria agradecida: sua figura avultará sempre no pórtico majestoso, que abre a época de nossa libertação política.
Honremos os grandes homens de nossa pátria; cubramos de flores suas lousas sepulcrais: só assim veremos renascidos os dias dos Paulas Sousas, Andradas, e Feijós; só assim seremos dignos dos altos destinos, que nos chamam no seio do porvir!