I

Não, não se descreve a consternação que produziu em todo o Engenho Velho, e particularmente no coração dos amigos, a morte de Joaquim Fidelis. Nada mais inesperado. Era robusto, tinha saude de ferro, e ainda na vespera fôra a um baile, onde todos o viram conversado e alegre. Chegou a dansar, a pedido de uma senhora sexagenaria, viuva de um amigo d'elle, que lhe tomou do braço, e lhe disse:

—Venha cá, venha cá, vamos mostrar a estes criançolas como é que os velhos são capazes de desbancar tudo.

Joaquim Fidelis protestou sorrindo; mas obedeceu e dansou. Eram duas horas quando sahiu, embrulhando os seus sessenta annos n'uma capa grossa,—estavamos em junho de 1879—mettendo a calva na carapuça, accendendo um charuto, e entrando lepidamente no carro.

No carro é possivel que conchilasse; mas, em casa, máu grado a hora e o grande peso das palpebras, ainda foi a secretária, abriu uma gaveta, tirou um de muitos folhetos manuscriptos,—e escreveu durante tres ou quatro minutos umas dez ou onze linhas. As ultimas palavras eram estas: «Em summa, baile chinfrim; uma velha gaiteira obrigou-me a dansar uma quadrilha; á porta um crioulo pediu-me as festas. Chinfrim!» Guardou o folheto, despiu-se, metteu-se na cama, dormiu e morreu.

Sim, a noticia consternou a todo o bairro. Tão amado que elle era, com os modos bonitos que tinha, sabendo conversar com toda a gente, instruido com os instruidos, ignorante com os ignorantes, rapaz com os rapazes, e até moça com as moças. E depois, muito serviçal, prompto a escrever cartas, a fallar a amigos, a concertar brigas, a emprestar dinheiro. Em casa d'elle reuniam-se á noite alguns intimos da visinhança, e ás vezes de outros bairros; jogavam o voltarete ou o _whist_, fallavam de politica. Joaquim Fidelis tinha sido deputado até á dissolução da camara pelo marquez de Olinda, em 1863. Não conseguindo ser reeleito, abandonou a vida publica. Era conservador, nome que a muito custo admittiu, por lhe parecer gallicismo politico. _Saquarema_ é o que elle gostava de ser chamado. Mas abriu mão de tudo; parece até que nos ultimos tempos desligou-se do proprio partido, e afinal da mesma opinião. Ha razões para crêr que, de certa data em diante, foi um profundo sceptico, e nada mais.

Era rico e lettrado. Formára-se em direito no anno de 1842. Agora não fazia nada e lia muito. Não tinha mulheres em casa. Viuvo desde a primeira invasão da febre amarella, recusou contrahir segundas nupcias, com grande magoa de tres ou quatro damas, que nutriram essa esperança durante algum tempo. Uma d'ellas chegou a prorogar perfidamente os seus bellos cachos de 1845 até meiados do segundo neto; outra, mais moça e tambem viuva, pensou retel-o com algumas concessões, tão generosas quão irreparaveis. «Minha querida Leocadia, dizia elle nas occasiões em que ella insinuava a solução conjugal, por que não continuaremos assim mesmo? O mysterio é o encanto da vida.» Morava com um sobrinho, o Benjamim, filho de uma irmã, orphão desde tenra idade. Joaquim Fidelis deu-lhe educação e fel-o estudar, até obter diploma de bacharel em sciencias juridicas, no anno de 1877.

Benjamim ficou atordoado. Não podia acabar de crer na morte do tio. Correu ao quarto, achou o cadaver na cama, frio, olhos abertos, e um leve arregaço ironico ao canto esquerdo da boca. Chorou muito e muito. Não perdia um simples parente, mas um pai, um pai terno, dedicado, um coração unico. Benjamim enxugou, emfim, as lagrimas; e, porque lhe fizesse mal ver os olhos abertos do morto, e principalmente o labio arregaçado, concertou-lhe ambas as cousas. A morte recebeu assim a expressão tragica; mas a originalidade da mascara perdeu-se.

—Não me digam isto! bradava d'ahi a pouco um dos visinhos, Diogo Villares, ao receber noticia do caso.

Diogo Villares era um dos cinco principaes familiares de Joaquim Fidelis. Devia-lhe o emprego que exercia desde 1857. Veiu elle; vieram os outros quatro, logo depois, um a um, estupefactos, incredulos. Primeiro chegou o Elias Xavier, que alcançára por intermedio do finado, segundo se dizia, uma commenda; depois entrou o João Braz, deputado que foi, no regimen das supplencias, eleito com o influxo do Joaquim Fidelis. Vieram, emfim, o Fragoso e o Galdino, que lhe não deviam diplomas, commendas nem empregos, mas outros favores. Ao Galdino adiantou elle alguns poucos capitaes, e ao Fragoso arranjou-lhe um bom casamento... E morto! morto para todo sempre! De redor da cama, fitavam o rosto sereno e recordavam a ultima festa, a do outro domingo, tão intima, tão expansiva! E, mais perto ainda, a noite da ante-vespera, em que o voltarete do costume foi até ás onze horas.

—Amanhã não venham, disse-lhes o Joaquim Fidelis; vou ao baile do Carvalhinho.

—E depois?...

—Depois de amanhã, cá estou.

E, á sahida, deu-lhes ainda um maço de excellentes charutos, segundo fazia ás vezes, com um accrescimo de doces seccos para os pequenos, e duas ou tres pilherias finas... Tudo esvaido! tudo disperso! tudo acabado!

Ao enterro acudiram muitas pessoas gradas, dous senadores, um ex-ministro, titulares, capitalistas, advogados, commerciantes, medicos; mas as argolas do caixão foram seguras pelos cinco familiares e o Benjamim. Nenhum d'elles quiz ceder a ninguem esse ultimo obsequio, considerando que era um dever cordial e intransferivel. O adeus do cemiterio foi proferido pelo João Braz, um adeus tocante, com algum excesso de estylo para um caso tão urgente, mas, emfim, desculpavel. Deitada a pá de terra, cada um se foi arredando da cova, menos os seis, que assistiram ao trabalho posterior e indifferente dos coveiros. Não arredaram pé antes de vêr cheia a cova até acima, e depositadas sobre ellas as coroas funebres.


II

A missa do setimo dia reuniu-os na igreja. Acabada a missa, os cinco amigos acompanharam á casa o sobrinho do morto. Benjamim convidou-os a almoçar.

—Espero que os amigos do tio Joaquim serão tambem meus amigos, disse elle.

Entraram, almoçaram. Ao almoço fallaram do morto; cada um contou uma anecdota, um dito; eram unanimes no louvor e nas saudades. No fim do almoço, como tivessem pedido uma lembrança do finado, passaram ao gabinete, e escolheram á vontade, este uma canneta velha, aquelle uma caixa de oculos, um folheto, um retalho qualquer intimo, Benjamim sentia-se consolado. Communicou-lhes que pretendia conservar o gabinete tal qual esta va. Nem a secretária abrira ainda. Abriu-a então, e, com elles, inventariou o conteudo de algumas gavetas. Cartas, papeis soltos, programmas de concertos, menus de grandes jantares, tudo alli estava de mistura e confusão. Entre outras cousas acharam alguns cadernos manuscriptos, numerados e datados.

—Um diario! disse Benjamim.

Com effeito, era um diario das impressões do finado, especie de memorias secretas, confidencias do homem a si mesmo. Grande foi a commoção dos amigos; lêl-o era ainda conversal-o. Tão recto caracter! tão discreto espirito! Benjamim começou a leitura; mas a voz embargou-se-lhe depressa, e João Braz continuou-a.

O interesse do escripto adormeceu a dor do obito. Era um livro digno do prelo. Muita observação politica e social, muita reflexão philosophica, anecdotas de homens publicos, do Feijó, do Vasconcellos, outras puramente galantes, nomes de senhoras, o da Leocadia, entre outros; um repertorio de factos e commentarios. Cada um admirava o talento do finado, as graças do estylo, o interesse da materia. Uns opinavam pela impressão typographica; Benjamim dizia que sim, com a condição de excluir alguma cousa, ou inconveniente ou demasiado particular. E continuavam a ler, saltando pedaços e paginas, até que bateu meio-dia. Levantaram-se todos; Diogo Villares ia já chegar á repartição fóra de horas; João Braz e Elias tinham onde estar juntos. Galdino seguia para a loja. O Fragoso precisava mudar a roupa preta, e acompanhar a mulher á rua do Ouvidor. Concordaram em nova reunião para proseguir a leitura. Certas particularidades tinham-lhes dado uma comichão de escandalo, e as comichões coçam-se: é o que elles queriam fazer, lendo.

—Até amanhã, disseram.

—Até amanhã.

Uma vez só, Benjamim continuou a lêr o manuscripto. Entre outras cousas, admirou o retrato da viuva Leocadia, obra-prima de paciencia e semelhança, embora a data coincidisse com a dos amores. Era prova de uma rara isenção de espirito. De resto, o finado era eximio nos retratos. Desde 1873 ou 1874, os cadernos vinham cheios d'elles, uns de vivos, outros de mortos, alguns de homens publicos, Paula Souza, Aureliano, Olinda, etc. Eram curtos e substanciaes, ás vezes trez ou quatro rasgos firmes, com tal fidelidade e perfeição, que a figura parecia photographada. Benjamim ia lendo; de repente deu com o Diogo Villares. E leu estas poucas linhas:

«DIOGO VILLARES.—Tenho-me referido muitas vezes a este amigo, e fal-o-hei algumas outras mais, se elle me não matar de tedio, cousa em que o reputo profissional. Pediu-me ha annos que lhe arranjasse um emprego, e arranjei-lh'o. Não me avisou da moeda em que me pagaria. Que singular gratidão! Chegou ao excesso de compor um soneto e publical-o. Fallava-me do obsequio a cada passo, dava-me grandes nomes; emfim, acabou. Mais tarde relacionámo-nos intimamente. Conheci-o então ainda melhor. _C'est le genre ennuyeux._ Não é mau parceiro de voltarete. Dizem-me que não deve nada a ninguem. Bom pai de familia. Estupido e credulo. Com intervallo de quatro dias, já lhe ouvi dizer de um ministerio que era excellente e detestavel:—differença dos interlocutores. Ri muito e mal. Toda a gente, quando o vê pela primeira vez, começa por suppol-o um varão grave; no segundo dia dá-lhe piparotes. A razão é a figura, ou, mais particularmente, as bochechas, que lhe emprestam um certo ar superior.»

A primeira sensação do Benjamim foi a do perigo evitado. Se o Diogo Villares estivesse alli? Releu o retrato e mal podia crer; mas não havia negal-o, era o proprio nome do Diogo Villares, era a mesma lettra do tio. E não era o unico dos familiares; folheou o manuscripto e deu com o Elias:

«ELIAS XAVIER.—Este Elias é um espirito subalterno, destinado a servir alguem, e a servir com desvanecimento, como os cocheiros de casa elegante. Vulgarmente trata as minhas visitas intimas com alguma arrogancia e desdem: politica de lacaio ambicioso. Desde as primeiras semanas, comprehendi que elle queria fazer-se meu privado; e não menos comprehendi que, no dia que realmente o fosse, punha os outros no meio da rua. Ha occasiões em que me chama a um vão da janella para fallar-me secretamente do sol e da chuva. O fim claro é incutir nos outros a suspeita de que ha entre nós cousas particulares, e alcança isso mesmo, porque todos lhe rasgam muitas cortezias. É intelligente, risonho e fino. Conversa muito bem. Não conheço comprehensão mais rapida. Não é poltrão nem maldizente. Só falla mal de alguem, por interesse; faltando-lhe interesse, cala-se; e a maledicencia legitima é gratuita. Dedicado e insinuante. Não tem idéas, é verdade; mas ha esta grande differença entre elle e o Diogo Villares:—o Diogo repete prompta e boçalmente as que ouve, ao passo que o Elias sabe f azel-as suas e plantal-as opportunamente na conversação. Um caso de 1865 caracterisa bem a astucia d'este homem. Tendo dado alguns libertos para a guerra do Paraguay, ia receber uma commenda. Não precisava de mim; mas veiu pedir a minha intercessão, duas ou tres vezes, com um ar consternado e supplice. Fallei ao ministro, que me disse:—«O Elias já sabe que o decreto está lavrado; falta só a assignatura do imperador.» Comprehendi então que era um estratagema para poder confessar-me essa obrigação. Bom parceiro de voltarete; um pouco brigão, mas entendido.»

—Ora o tio Joaquim! exclamou Benjamim levantando-se. E depois de alguns instantes, reflexionou comsigo:—Estou lendo um coração, livro inedito. Conhecia a edição publica, revista e expurgada. Este é o texto primitivo e interior, a lição exacta e authentica. Mas quem imaginaria nunca... Ora o tio Joaquim!

E, tornando a sentar-se, releu tambem o retrato do Elias, com vagar, meditando as feições. Posto lhe faltasse observação, para avaliar a verdade do escripto, achou que em muitas partes, ao menos, o retrato era semelhante. Cotejava essas notas iconographicas, tão cruas, tão seccas, com as maneiras cordiaes e graciosas do tio, e sentia-se tomado de um certo terror e mau-estar. Elle, por exemplo, que teria dito delle o finado? Com esta ideia, folheou ainda o manuscripto, passou por alto algumas damas, alguns homens publicos, deu com o Fragoso,—um esboço curto e curtissimo,—logo depois o Galdino, e quatro paginas adiante o João Braz. Justamente o primeiro levára delle uma caneta, pouco antes, talvez a mesma com que o finado o retratára. Curto era o esboço, e dizia assim:

«FRAGOSO.—Honesto, maneiras assucaradas e bonito. Não me custou casal-o; vive muito bem com a mulher. Sei que me tem uma extraordinaria adoração,—quasi tanta como a si mesmo. Conversação vulgar, polida e chocha.»

«GALDINO MADEIRA.—O melhor coração do mundo e um caracter sem macula; mas as qualidades do espirito destroem as outras. Emprestei-lhe algum dinheiro, por motivo da familia, e porque me não fazia falta. Ha no cerebro d'elle um certo furo, por onde o espirito escorrega e cai no vacuo. Não reflecte tres minutos seguidos. Vive principalmente de imagens, de phrases translatas. Os «dentes da calumnia» e outras expressões, surradas como colchões de hospedaria, são os seus encantos. Mortificase facilmente no jogo, e, uma vez mortificado, faz timbre em perder, e em mostrar que é de proposito. Não despede os maus caixeiros. Se não tivesse guarda-livros, é duvidoso que sommasse os quebrados. Um subdelegado, meu amigo, que lhe deveu algum dinheiro, durante dous annos, dizia-me com muita graça, que o Galdino quando o via na rua, em vez de lhe pedir a divida, pedia-lhe noticias do ministerio.»

«JOÃO BRAZ.—Nem tolo nem bronco. Muito attencioso, embora sem maneiras. Não póde ver passar um carro de ministro; fica pallido e vira os olhos. Creio que é ambicioso; mas na edade em que está, sem carreira, a ambição vai-se-lhe convertendo em inveja. Durante os dois annos em que serviu de deputado, desempenhou honradamente o cargo: trabalhou muito, e fez alguns discursos bons, não brilhantes, mas solidos, cheios de factos e reflectidos. A prova de que lhe ficou um residuo de ambição, é o ardor com que anda á cata de alguns cargos honorificos ou preeminentes; ha alguns mezes consentiu em ser juiz de uma irmandade de S. José, e segundo me dizem, desempenha o cargo com um zelo exemplar. Creio que é atheu, mas não affirmo. Ri pouco e discretamente. A vida é pura e severa, mas o caracter tem uma ou duas cordas fraudulentas, a que só faltou a mão do artista; nas cousas minimas, mente com facilidade.»

Benjamim, estupefacto, deu emfim comsigo mesmo.—«Este meu sobrinho, dizia o manuscripto, tem vinte e quatro annos de edade, um projecto de reforma judiciaria, muito cabello, e ama-me. Eu não o amo menos. Discreto leal e bom,—bom até á credulidade. Tão firme nas affeições como versatil nos pareceres. Superficial, amigo de novidades, amando no direito o vocabulario e as formulas.»

Quiz reler, e não pôde; essas poucas linhas davam-lhe a sensação de um espelho. Levantou-se, foi á janella, mirou a chacara e tornou dentro para contemplar outra vez as suas feições. Contemplou-as; eram poucas, falhas, mas não pareciam calumniosas. Se alli estivesse um publico, é provavel que a mortificação do rapaz fosse menor, porque a necessidade de dissipar a impressão moral dos outros dar-lhe-ia a força necessaria para reagir contra o escripto; mas, a sós, comsigo, teve de supportal-o sem contraste. Então considerou se o tio não teria composto essas paginas nas horas de máu humor; comparou-as a outras em que a phrase era menos aspera, mas não cogitou se alli a brandura vinha ou não de molde.

Para confirmar a conjectura, recordou as maneiras usuaes do finado, as horas de intimidade e riso, a sós com elle, ou de palestra com os demais familiares. Evocou a figura do tio, com o olhar espirituoso e meigo, e a pilheria grave; em logar d'essa, tão candida e sympathica, a que lhe appareceu foi a do tio morto, estendido na cama, com os olhos abertos e o labio arregaçado. Sacudiu-a do espirito, mas a imagem ficou. Não podendo rejeital-a, Benjamim tentou mentalmente fechar-lhe os olhos e concertar-lhe a bocca; mas tão depressa o fazia, como a palpebra tornava a levantar-se, e a ironia arregaçava o beiço. Já não era o homem, era o auctor do manuscripto.

Benjamim jantou mal e dormiu mal. No dia seguinte, á tarde, apresentaram-se os cinco familiares para ouvir a leitura. Chegaram sofregos, anciosos; fizera-lhe muitas perguntas; pediram-lhe com instancia para ver o manuscripto. Mas Benjamim tergiversava, dizia isto e aquillo, inventava pretextos; por mal de peccados, appareceu-lhe na sala, por traz d'elles, a eterna bocca do defunto, e esta circumstancia fel-o ainda mais acanhado. Chegou a mostrar-se frio, para ficar só, e ver se com elles desapparecia a visão. Assim se passaram trinta a quarenta minutos. Os cinco olharam emfim uns para os outros, e deliberaram sahir; despediram-se ceremoniosamente, e foram conversando, para suas casas:

—Que differença do tio! que abysmo! a herança enfunou-o! deixal-o! ah! Joaquim Fidelis! ah! Joaquim Fidelis!


FIM DA GALERIA POSTHUMA.