Olímpia só acordou de si em casa, ao lado do pai.

Acompanhara-os desde o circo um médico ainda moço, que se achava no teatro por ocasião do desastre. Era o Dr. Dermeval da Fonseca.

Dos três parecia ser este o único que conservava o sangue frio na alcova a que recolheram a desfalecida. O comendador nada mais fazia do que ir de um para outro lado, sem nunca acertar com os objetos que lhe pedia o assistente. Expedi­ram-se receitas para a botica, vieram os remédios, e às onze horas a enferma voltava a si. Abriu os olhos, olhou espantada por algum tempo para o pai e para o Dr. Dermeval; depois, reconstruindo as idéias, lembrou-se do fato que a fizera desmaiar, soltou um novo grito e recaiu em convulsões. O Dr. Dermeval e o comendador apoderaram-se dela. Olímpia queria morder os pulsos e gritava, agatanhando-se.

Gregório, na sala próxima, passeava muito agitado, impa­cientado por descobrir um meio de ser útil àquela situação. Mas não tinha ânimo de aproximar-se do quarto de Olímpia; receava com isso cometer erro maior. Ao mesmo tempo o seu amor-próprio se sentia acirrado pelo desastre do acrobata: Gregório sentira ciúmes desde a primeira vez que observara o modo apaixonado pelo qual Olímpia acompanhava com a fisionomia as difíceis e graciosas evoluções do gentil funâmbulo.

Não é que ele contasse ou ambicionasse merecer algum dia o amor da caprichosa senhora; não, porque estava no firme propósito de nunca deixar transparecer o menor vislumbre dos seus desejos, ainda que para isso fosse necessário afogá-los em sangue. Mas o coração também vive desse dúbio querer e não querer; desse vago desejar, que nasce e avulta em nossos sentidos, sem o menor concurso do raciocínio. Gregório era sem dúvida um espírito sumamente romântico e sempre vol­tado para o ideal, mas era latino e tinha dezoito anos; não podia, por conseguinte, furtar-se às tendências naturais do meio em que nascera e à fatal idiossincrasia de sua raça; educara o seu caráter e o seu gosto artístico pelos velhos mol­des líricos, cuja influência lhe chegava ao espírito por inter­médio de alguns livros, às vezes mal escolhidos, e de alguns jornais quase sempre pouco escrupulosos. Lamartine foi um dos primeiros que se apoderaram dele, que lhe, fascinaram a alma com a sua sedutora tristeza apaixonada; depois Musset, Gautier e Vítor Hugo terminaram a obra. Gregório não resis­tiu ao desejo de sentir com eles. Era tão agradável chorar na sua idade! É tão bom sofrer quando sofremos por gosto!...

Olímpia, depois da morte de Scott, ficou muito pior; o pai já não contava com ela e deixava-se mergulhar em fundo e surdo desespero.

O Dr. Dermeval não poupava esforços para salvá-la. Fizeram-se várias conferências médicas; a opinião predomi­nante era que Olímpia, se escapasse da morte, viria a sofrer para sempre das faculdades mentais. Só o Dr. Dermeval discordava.

E principiou este, mais do que nunca, a interessar-se por ela. Ia visitá-la todos os dias, procurava distraí-la, contava-lhe histórias espirituosas, oferecia-lhe de vez em quando um livro e falava-lhe de teatros e bailes. Olímpia, com efeito, ao fim de pouco tempo, experimentava melhoras, e daí a dois meses passeava no jardim pelo braço do pai.

Depois da moléstia ficara muito amiga de Gregório, tratava-o agora com extrema condescendência, quase com amor. Uma vez apareceu ele mais cedo que de costume (aca­bava-se de tirar a mesa e o comendador fazia a sesta no gabinete). Olímpia, ao ver entrar aquele, soltou logo uma exclamação de prazer e correu ao seu encontro com os braços abertos.

— Oh! disse ela; o senhor foi hoje verdadeiramente amável...

E abraçou-o.

O rapaz ficou perplexo com semelhante recepção, e nada mais conseguiu do que gaguejar algumas palavras de agra­decimento. Em seguida, assentaram-se os dois no mesmo divã e puseram-se a conversar. Olímpia mostrava-se aquela tarde de uma estranha expansão, e Gregório, ao contrário, parecia como nunca retraído e contrafeito.

Falaram vagamente sobre todos os assuntos de que se podiam lembrar para encher a conversa. Ela ofereceu-lhe café, e foi pessoalmente buscar uma garrafa de licor; pediu-lhe depois que lhe desenhasse alguma coisa no álbum. Gre­gório obedeceu; mal, porém, tinha principiado o desenho e já a caprichosa lhe arrancava o lápis dos dedos e lhe pedia para fazer-lhe antes um pouco de leitura. Gregório foi à biblioteca, tomou os Primeiros cantos de Gonçalves Dias e principiou a recitar o episódio do Pirata.

— Não! disse Olímpia, pousando-lhe a mão na boca. Leia-me outra coisa... faz-me mal esse poeta!... Não gosto de lhe ouvir os versos senão quando preciso chorar...

Gregório lembrou Casimiro de Abreu, ofereceu Castro Alves, intercedeu por Fagundes Varela. Ela, porém, não aceitou nenhum deles.

— Olhe! cá está o Machado de Assis! Quer?...

Olímpia respondeu que não, sorrindo com faceirice e agitando o indicador da mão direita.

— O Luiz Guimarães?...

— Não...

— Ah! Cá está o Muniz Barreto!

— Não! não!

— Quer antes um poeta francês?... prefere ouvir um trecho de prosa?...

— Não! Já não quero nada disso. Dê-me aquele álbum que ali está...

Gregório foi buscar sobre o piano o álbum indicado.

— Agora sente-se aqui. Aqui justamente, neste banqui­nho. Bem; vejamos juntos estes desenhos.

Gregório ficara muito encostado ao divã em que estava Olímpia. Esta abriu o álbum sobre os joelhos e passou a primeira folha.

— Sabe quem fez isto? perguntou sorrindo.

Gregório inclinou-se mais para ver.

— Fui eu, explicou Olímpia. Não está bem feito?...

— Está muito bonito, disse o rapaz, prestando pouca aten­ção ao desenho.

— E este?... Que tal acha? continuou ela, voltando a folha.

— É, respondeu Gregório, quase sem olhar para a página.

— Olhe para cá! repreendeu Olímpia, segurando-lhe a cabeça e obrigando-o a olhar para o álbum.

Gregório riu-se.

— Chegue-se mais! acrescentou ela ainda em ar de re­preensão. Parece-me tolo!...

— A senhora está hoje muito amável!...

— Faça-se engraçado! Pensa que não sou capaz de puxar-lhe as orelhas!...

E terminou esta frase, segurando amorosamente a cabeça do rapaz e puxando-a para junto dos lábios.

Gregório retirou a cabeça de suas mãos e ergueu-se.

— Não! não! balbuciava ele a desprender-se-lhe dos braços.

— Você é um idiota! exclamou Olímpia, repelindo-o com raiva. E afastou-se da sala muito apressada.

Nessa ocasião acabava o comendador a sua sesta no gabinete e preparava-se para apresentar-se, como sempre, de colarinho limpo, barba feita e cabelo bem escovado.

Ele não era homem capaz de aparecer mal a ninguém. A filha nunca o vira em mangas de camisa. Apurava-se muito na roupa; tratava cuidadosamente dos dentes, que os tinha magníficos; e trazia freqüentemente, na algibeira do seu colete de seda preta, um canivetinho com que às vezes se entretinha a brunir as unhas.

Jacó era o seu braço direito. Era o Jacó quem lhe fazia a barba, quem o vestia, quem lhe cuidava dos sapatos, quem lhe metia os botões na camisa. Ninguém mais fazia isso a gosto do comendador.

Ainda em vida da mãe de Olímpia, já o desvelado domés­tico invadia todas essas atribuições e gozava do valimento do amo. Foi ele, até, entre os íntimos do comendador, quem tomou parte mais ativa no segundo casamento deste. O co­mendador consultara a opinião do criado.

Jacó achava a noiva um pouco moça demais para o amo. O comendador já não estava criança!...

O pai de Olímpia opunha então a circunstância de que tinha filhos, de que precisava de uma senhora que lhe tomasse conta da casa e dirigisse a educação das crianças.

— Ora, replicava o velho criado; a Sinhazinha não está tão pequena que precise de madrasta!... (Esta Sinhazinha, a que se referia o bom Jacó, era Olímpia). E o Nhonhô, acres­centava ele, sai do colégio apenas duas vezes por ano...

Mas, apesar de tudo, o comendador contraiu novo matri­mônio, do qual lhe resultaram aquelas duas malogradas gêmeas de que já tratamos. Não foi feliz nas segundas núpcias: o criado tinha razão quase inteira. Ao casar, o comendador não estava totalmente velho, mas caminhava muito de perto para isso. A velhice às vezes é uma janela que se abre de repente, e por onde fogem no mesmo instante os últimos raios da mocidade.

A segunda mulher do comendador orçava então pelos vinte anos e era rapariga muito bem constituída de corpo. Sem ser bonita, ostentava esse encanto inestimável da saúde e da força, que tem para o homem as mesmas qualidades atra­tivas que a brilhante clorofila das flores, segundo Darwin, tem para os insetos voláteis.

Pelos seus olhos vivos e travessos, pelo moreno quente das suas faces coradas e viçosas, pelos seus lábios carnudos e vermelhos, pelo vigor da sua larga respiração e pela sedu­tora frescura dos seus dentes, a segunda mulher do comen­dador estava a pedir um marido mais esperto e mais senhor de si; de sorte que, por ocasião de escancarar-se a janela de que há pouco falamos, se escaparam logo, de envolta com os últimos raios da mocidade do infeliz marido, as estopinhas da fidelidade conjugal, cujos votos a esposa do comendador prin­cipiava a romper com toda a força dos seus ricos vinte anos.

Uma janela aberta e que se não pode fechar, é um perigo constante para a casa a que pertence, principalmente se nesta houver uma flor, porque os insetos andam soltos lá por fora.

O primeiro inseto que entrou pela janela foi o Portela, aquele morigerado e belo moço do comércio, convidado por Henriqueta e Leão Vermelho para servir de padrinho de batismo à nossa Clorinda, e o qual, mais tarde, vimos trans­formado em comendador, a conversar em companhia do Adelino Fontoura e do Duque-Estrada em casa da afilhada.

Portela estava por esse tempo no vigor dos anos; teria quando muito vinte e cinco, porque justamente na mesma época batizara ele a filha natural de Leão Vermelho.

Vejamos agora quais foram as circunstâncias que o apro­ximaram da mulher do comendador Ferreira, porque elas se ligam às futuras cenas desta narrativa.

O pai de Olímpia ainda então se achava no comércio ativo, de sociedade com um tal João Figueiredo, tão comen­dador como ele, porém muito menos fino e menos traquejado nas salas. O nosso Portela era caixeiro da casa. Nesse tempo, como deve saber o leitor, os empregados do comércio não gozavam em geral de certas regalias, que só mais tarde lhes foram conferidas pelos patrões. O bigode, a gravata, o fraque, por exemplo, eram fruto proibido para os caixeiros.

Entrar em um café, fumar um charuto, saber dançar uma quadrilha francesa, tudo isto, para os infelizes moços, eram verdadeiros crimes de lesa-moralidade comercial. Mas o co­mendador Ferreira não se deixava levar por tão mesquinhos preconceitos e dava aos seus empregados plena liberdade de deixar crescer o bigode, vestir um fraque, penetrar nos raros cafés dessa época e fumar os charutos que quisessem.

O Figueiredo opunha-se amargamente contra semelhante liberdade do sócio.

— Você me quer estragar os rapazes!... dizia ele, pene­trado de um grande desgosto. Pois você não vê, seu Ferreira, como tudo por aí anda já tão desmoralizado!... Não vê como hoje só há pelintras?! Não vê que hoje em dia os rapazes, em vez de aproveitarem o domingo para ir à missa, querem ir fumar charutos ao Passeio Público e meter-se à tarde na patifaria do teatro?!...

E o Figueiredo, possuído cada vez mais da sua indignação, revoltava-se contra o sócio; mas o comendador Ferreira não se deixava catequizar e continuava a dar folga aos rapazes.

É porém seguro que, entre os caixeiros da casa, só um se aproveitava verdadeiramente dessas regalias, e esse era o Portela. Aos domingos, em vez de ir para o canto da rua, como faziam seus companheiros, assentar-se a um banco de pau e ver quem passava, o pretensioso caixeiro ataviava-se com roupas de casimira francesa, metia um charuto entre os dentes, e punha-se de passeio pelas ruas. Estas especialidades davam-lhe aos olhos das moças suas conhecidas certa distinção sim­pática: Portela era citado por ela como a flor dos rapazes do comércio.

E o fato é que ficava um rapagão, quando envergava o fraque de pano fino, vestia um par de calças novas, armava o seu chapéu alto e ganhava a rua, rangendo as botinas e picando a calçada com a biqueira da bengala. Dos emprega­dos do nosso comendador foi ele o único que compareceu ao casamento do patrão. O Figueiredo teve uma vertigem quando o viu chegar de carro e casaca.

— Ora com efeito!... resmungou o caturra, a sacudir a cabeça. E afastou-se para não disparatar ali mesmo com o sócio.

Portela dirigiu-se mais de uma vez à noiva, felicitou-a, disse-lhe palavras muito bonitas e pediu-lhe que lhe reservasse um dos seus alfinetes dourados. À mesa ergueu-se com desem­baraço para brindar o patrão, e seu discurso foi muito bem recebido. Desde esse dia o comendador o convidou para jantar aos domingos, e Portela não faltou a nenhum deles. Às vezes havia dança e ele dançava; se havia jogos de prenda, brincava; e, se havia meninas solteiras, namorava.

D. Teresinha, como tratava ele a mulher do patrão, não lhe votava entretanto mais do que uma pequena estima, mais generosa que outra coisa, e perfeitamente compreendida no círculo dos seus deveres conjugais.

Por essa época já ela estava grávida das duas gêmeas a que nos referimos. O tempo passou; nasceram as meninas, e Portela sempre a freqüentar a casa do comendador, cada vez mais considerado e mais querido.

Quando a peste, que nessa época assolava o Rio de Janeiro, entrou em casa do bom negociante e lhe arrebatou dos braços os adoráveis frutos do seu segundo matrimônio, o pobre homem recebeu o golpe em cheio no coração e caiu desanimado e sem forças. Portela foi o único que teve o segredo de distraí-lo da desgraça, chamando-o de novo à vida.

Foi então que uma forte rajada dos ventos da velhice se atirou de súbito contra a tal janela e abriu-a de par em par. O comendador envelheceu da noite para o dia.

A transição da virilidade para a decrepitude é tão sobres­saltada como a passagem da meninice para a puberdade. O desgraçado sentiu faltar-lhe a coragem para tudo; não queria festas, não queria distrações; o próprio trabalho já não tinha para ele nenhum dos atrativos de outrora. E, enquanto os fatos assim se sucediam, o Portela empregava todos os esforços para alcançar a mão de Olímpia, cujos encantos principiavam a vestir as galas da mulher, resplandecendo dentro da auréola de seus quinze anos. Distinta, rica, inteligente e formosa, a filha do comendador representava, para o caixeiro, o melhor partido que este poderia ambicionar.

O comendador estava por tudo; só faltava que a menina se resolvesse. Ela recusou. O pai tentou ainda defender a pretensão do amigo; Olímpia voltou-lhe as costas.

Foi por esse tempo que o comendador, sentindo-se esgo­tado e precisando descansar, resolveu sair do comércio ativo. João Figueiredo, logo que liquidou as contas do sócio e ficou só, declarou ao Portela que não o suportaria nem mais uma semana em sua casa.

— Até ali era preciso respeitar a vontade do comendador Ferreira; agora não havia razão para aturá-lo!

O comendador, sabendo do fato, ficou furioso e chamou o rapaz para sua companhia.

— Havemos de arranjá-lo, prometeu ele; mas enquanto não aparecer emprego, ficará ao meu serviço. O senhor terá um ordenado, casa e comida.

Portela mudou-se logo para a casa do comendador. De muito pouco serviço dispunha este para lhe dar a fazer; não passava todo ele das contas de suas propriedades alugadas e uma ou outra carta comercial exigida pelas pendências com a praça. Compreende-se, por conseguinte, que o rapaz tinha folga e grande folga.

Trabalhava no próprio escritório do patrão, ao lado da biblioteca, perto da sala de jantar, onde Teresinha costurava. Às vezes o Portela punha de lado a pena, fechava a sua costaneira e ia dar dois dedos de palestra à patroa. Ela o tratava com muita deferência.

Um dia, seriam duas horas da tarde e o comendador não estava em casa. Teresinha parecia entretida de todo com a sua máquina de costura, e Olímpia passeava na rua do Ouvidor com as amigas.

Fazia muito calor: outubro nunca estivera tão insuportável e tão cheio de moscas.

O ar morno e pesado produzia quebrantes no corpo e convidava a gente a estender-se no chão, sobre a esteira, e deixar-se ficar de olhos fechados em plena preguiça. Quase que se não podia respirar. As cortinas da janela tinham uma imobilidade de pedra.

O comendador morava já em Botafogo, na mesma casa donde mais tarde o arrancou Olímpia para dar com ele na Avenida Estrela e depois no modesto chalezinho da Tijuca. Via-se da sala de jantar a baía defronte reverberar aos raios do sol: o Pão de Açúcar, completamente nu de nuvens, se refletia por inteiro no ardente espelho das águas, e o céu, des­coberto e brilhante, parecia feito de porcelana azul!

Teresinha largara o trabalho para resfolegar e refrescar as faces com a palma de sua mão gorda e macia. Portela apareceu à porta do gabinete e fez uma exclamação sobre o calor, despregando com os dedos abertos o seu rico cabelo, preto e anelado, que o suor grudava ao casco da cabeça.

— É! respondeu ela; está horrível!

— Não se pode trabalhar, considerou Portela, soprando afrontado. E foi assentar-se perto de Teresa.

— Então, como passou desde ontem dos seus incômodos nervosos? perguntou a mulher do comendador, referindo-se a uma conversa da véspera.

— Ah! ainda se lembra disso?...

— O senhor queixou-se tanto!...

— Qual! Eram manhas; o meu mal é outro. Não sei se mais difícil ou mais fácil de curar!... E, depois de fazer um gesto de convicção, acrescentou: Nasci para ser casado; não me serve a vida de solteiro...

— Não caia nessa asneira!... aconselhou Teresinha, fa­zendo-se muito séria.

— Mas asneira, por quê?...

— Ora! É uma desilusão! Eu preferia estar ainda hoje solteira e vivendo como dantes em casa de minha madrasta...

— Todavia a senhora não tem razão de queixa...

Teresinha respondeu dando um grande suspiro.

— Não vive então satisfeita?... perguntou ele, pondo na voz uma extrema doçura.

— Ai, ai! Mudemos antes de conversa...

E passou abruptamente a falar sobre uma bela tartaruga amazonas, que o comendador, dias antes, recebera de presente.

— Era um bicho esquisito, muito grande, fazia aflição olhar para ele! Uma verdadeira raridade!

Portela mostrou desejo de ver o animal, e os dois desce­ram à chácara.

Levaram algum tempo à borda do tanque, ao lado um do outro, acompanhando os movimentos preguiçosos do an­fíbio. Portela declarou que de cara o achava parecido com o João Figueiredo, e esta rancorosa comparação fez rir à senhora.

— Ali sempre era melhor de estar que lá em cima, con­siderou depois o rapaz.

— É mais fresco, disse Teresinha, dirigindo-se para uma rua de bambus que costeava a casa e ia dar afinal a um agru­pamento de árvores no fundo da chácara. Portela acompa­nhou-a, oferecendo-lhe o braço. Ela aceitou, e puseram-se ambos a passear muito vagarosamente por entre a rumorosa sombra da alameda.

Ouviam-se estalar as folhas secas debaixo de seus pés. Teresinha não dava uma palavra, toda segura ao braço do rapaz caminhava vergada para ele, como se prestasse atenção a uma conversa de muito interesse. A certa altura pararam; e ela parecia fatigada, a julgar pela dificuldade com que respirava. Os dois olhares se encontraram, mas ao mesmo tempo se fugiram, porque cada um compreendeu de relance o que se passava no pensamento do outro.

E tornaram a caminhar, sempre em silêncio, mas desta vez Portela tinha entre as suas uma das mãos de Teresinha. Chegados ao fundo da chácara, sentaram-se juntos debaixo de uma mangueira, sobre um banco que aí havia. A senhora, de olhos baixos, fitava com insistência um ponto no chão, e sus­pirava de vez em quando, como se um pensamento doloroso a torturasse.

Portela chegou-se mais para ela, passou-lhe meigamente um braço sobre o ombro e perguntou-lhe com muito carinho o que a fazia assim tão triste.

— Não era nada!... segredos de sua pobre vida!... Coisas que não poderiam interessar a ninguém...

E Teresinha continuava de olhos imóveis, quase a chorar.

— Não! insistia o rapaz com a voz cada vez mais doce; a senhora sofre qualquer coisa. Não me diz o que é, porque não lhe mereço confiança, mas sofre...

E afagava-lhe os cabelos e o pescoço. Teresinha sentia-lhe o tremor nervoso da mão e percebia-lhe a comoção da voz.

— Não é feliz com o comendador?... perguntou Portela em voz baixa, chegando a boca ao ouvido dela.

— Foi uma asneira este casamento! respondeu Teresa. Eu passo uma vida de viúva. Ele, por bem dizer, não é meu marido. Entretanto, juro-lhe que desejava ser a esposa mais fiel e dedicada deste mundo!...

E começou a chorar aflita.

— É mesmo desgraça de cada um! acrescentou soluçando.

— Não se aflija dessa forma! disse o rapaz, puxando a cabeça de Teresinha para o seu ombro. Tenha uma pouco de resignação!...

— Mas não acha que devo passar uma vida estúpida e aborrecida?! Ando nervosa, sem apetite, tenho vertigens! tenho coisas de que nunca sofri até agora! Além disso, ele, porque já aborreceu os divertimentos, entende que os mais também não se devem divertir! Eu não vou a um baile, não vou a um teatro, não apareço a ninguém... Que diabo! eu tenho apenas vinte seis anos!

Portela dava-lhe toda a razão, e pedia-lhe que não se mortificasse.

— E você ainda pensa em casar... continuou ela, já em outro tom, não caia nessa! É uma asneira! É um engano! Se quiser aceitar o meu conselho, fique solteiro toda a vida! Ah! se eu fosse homem!...

E Teresinha suspirou de novo, e sacudiu a cabeça com um gesto cheio de intenções.

— Se fosse homem não se casaria? perguntou ele.

— Eu?! exclamou a rapariga, apertando os olhos, nunca!

— E a velhice depois, o abandono, as moléstias?...

— Ora! eu sei que não chegaria à velhice!... Além de que há muito quem cuide da gente, sem ser preciso casar.

— Mas também a vida assim, sem termos uma compa­nheira constante ao nosso lado...

E, passando o braço na cintura de Teresinha, concluiu:

— Não pode ser grande coisa!

Ela continuou a queixar-se, falou amargamente da sua vida; disse que naquela casa representava o papel de um "dois de paus"; a verdadeira senhora era Olímpia!

— Já tenho medo de dar qualquer ordem aos criados, acrescentou com um gesto desabrido; porque posso ser des­moralizada mais uma vez. Isto é vida!? Como senhora não tenho força moral, como mulher não tenho marido! Não tenho nada!

E as recriminações recrudesciam, acompanhadas de solu­ços. Portela, todas as vezes que lhe puxava a cabeça para junto dele, sentia-lhe o nariz frio e os lábios trêmulos.

Quando o comendador voltou, daí a uma hora, encon­trou-os já dentro de casa; Teresinha a costurar na sala de jantar, e Portela a fazer escrituração mercantil no gabinete.

Desde esse dia, a mulher do comendador principiou a melhorar dos nervos; em breve não se queixava mais das tais vertigens, comia com apetite, dormia muito bem e cantarolava durante a costura. Só quatro meses depois que o Portela se hospedara em casa do comendador, conseguiu este arranjá-lo em uma empresa comercial que se acabava de criar. Tal fato veio alterar um pouco a vida do caixeiro e enchê-lo de enormes saudades pelas horas sobressaltadas e felizes que conseguia passar ao lado da amante. O amor de Teresa constituíra-se para ele em hábito, em necessidade, sem todavia perder o encanto dos primeiros tempos, graças às circunstâncias que o dificultavam e que faziam dele um objeto proibido.

No dia em que se lhe cortassem as dificuldades e lhe suprimissem o perfume do mistério, Portela haveria de abor­recer-se e de enfastiar-se da amante, como sucede fatalmente em todos os casos idênticos.

Mas, nem ele, nem ela, se lembraram de fazer semelhante reflexão, pois se a fizessem, não cometeriam a leviandade de praticar o que vamos expor no capítulo seguinte.