SEPARANDO-SE do nosso poeta, os dois companheiros se dirigiram para o lado da ponte.

Cosme tinha destino, embora não lhe fizesse conta confessá-lo. Quanto ao Nuno, esse aproveitava a companhia para pautear, e ter um pretexto de demorar-se fora da loja.

— O que você disse, Nuno, não passa de brincadeira? insinuou o Cosme.

— Pois ainda duvida? Não tarda a estralada, e se não andarem com isso depressa, eu cá darei jeito à cousa.

— De que modo?

— Ainda não sei; mas hei de achar.

— Em verdade nunca faltam meios de barulhar as cousas; o acomodá-las, sim, é o difícil.

Nesse ponto do diálogo, o Nuno deu um salto, arregalando os olhos para a ponte. Sem mais ambages, quebrou a esquina e barafustou pela rua afora, deixando surpreso o Cosme, mas contente, porque o forrava ao trabalho de se desvencilhar dele.

O que assim espantara ao caixeiro era a cavalgada do governador, que já de volta das Cinco Pontas, atravessava para ir ao Forte do Mar, como costumava.

Vinha Sebastião de Castro pensativo; o que não deixava de inquietar ao secretário e ajudante, os dois braços do governo da capitania, colocados à direita e esquerda do excelentíssimo toro.

Não será fora de propósito esboçar aquelas figuras de ministros coloniais; até mesmo porque podem servir para o paralelo com as ilustres cariátides modernas, que aí andam em quadros de apoteoses.

Alto, bem apessoado, o Capitão Barbosa de Lima florescia, apesar dos anos que lhe tinham despovoado a fronte, sem fanar a rosada frescura do agradável semblante, nem estancar o perene sorriso que manava dos lábios suasivos, como fio de um favo; e ele o tinha na palavra insinuante.

Dos olhos pequenos e redondos lhe escapavam as chispas de um espírito a cintilar, como lentejoula que era do seu engenho superior e adestrado no manejo dos negócios. A cavalo, as pernas mais compridas do que exigia a justa proporção do corpo dariam a outro postura ingrata, senão ridícula; mas o secretário com tal jeito conduzia esse trambolho, e tamanha sedução crescia em torno de si, que lhe esqueciam a prorrogação das gâmbias, para somente verem a afabilidade das maneiras.

As moças, que todas têm no mindinho sua unha de Dalila e gostam da juba para a tosquiarem, todavia achavam bonita a calva do secretário; e os rapazes invejavam-lhe a estatura pernalta, a que se atribuía o ter galgado tanto pela escada da fortuna. Quanto aos homens bons da governança da terra, velhos e moços, nobres e plebeus, todos à uma o afagavam e todos o queriam por companheiro. Razão tinham eles, pois era cavaleiro de boas manhas, como se dizia então: e pagava os defeitos de que ninguém está isento, com prendas de que poucos se ornam, ainda mais em vida de tamanha porfia como a tivera.

Fazia contraste com essa feição prazenteira a fosca e sombria carranca do Ajudante Negreiros, coberta de lívido pergaminho e crivada por espesso molho de cerdas.

Dentre a barba hirsuta destacavam os grossos lábios de nina boca flácida e lorpa que estava debuxando na balofa carnosidade a gula insaciável de todos os apetites. Se há nos traços fisionômicos uma expressão, essa boca fora talhada, não só para inchar a palavra, arrotando petulâncias e indigestos impropérios, como para atolar-se no tarro da sensualidade.

Nesse homem de pêlo híspido e couro adiposo, ressumbrava certa expressão e gesto suíno, que chegava algumas vezes até o grunhir. O tronco parecia Diógenes puro, mas lardeado de D. Quixote, e trufado com Aretino. O todo afogado em grosso unto de Tartufo, mas com uma rija côdea de Catão, que formava os folhos do grande pastelão de carne e osso.

O antagonismo dos elementos agregados no indivíduo o traziam em tamanha anarquia, que se lhe desarticulava o pescoço a cada instante em torcicolos e trejeitos, como se a cabeça lutasse por despegar-se do corpo estranho ao qual por engano a tinham ligado. Desse cacoete lhe proviera uma volta do congote, que o tornava um tanto corcunda.

Os que mais de perto conheciam o ajudante tinham-no em conta de homem às direitas, e fiavam tudo de sua inteireza. Também disso damos testemunho; mas era para lamentar que a natureza não tivesse virado ao avesso tão excelente pessoa, mostrando-a antes pelo forro.

Descendia o ajudante do ilustre André Vidal de Negreiros, do que muito se enfatuava; e havia arranjado para seu uso um extenso rosário de nomes, que apregoavam sua antiga e remota linhagem.

Ao avistar a cavalgada à boca da Rua da Moeda que saía na Ribeira, volveu D. Sebastião um olhar ao Ajudante Negreiros, e perguntou-lhe com ar que se não era, bem parecia distraído e indiferente.

— Não é na Rua da Moeda que mora o mercador Miguel Viana?

— Aí mora, sr. governador, acudiu o ajudante atento ao menor gesto de D. Sebastião. E se V. Ex.a concede, vou-me já à casa dele agarrar o mariola do filho!

— Em casa do Miguel Viana? perguntou o governador no tom do maior espanto.

— Pois que é o pai do bigorrilhas!

— Ah!

— O sr. governador não sabia?

— Deixe em paz o moço, Negreiros, tornou D. Sebastião esquivando a resposta.

— Em paz o quero eu, atalhou o ajudante com um regougo de riso, mas é no Forte do Brum, aos tirantes de uma peça de 64. Não há como isso, para amansar o lombo desta canalha de birbantes.

— Tamanho rigor não pede o caso. Uma rapazia de moço brejeiro... Basta que o pai lhe passe um repelão e lhe traga tente as rédeas.

— Aquele?... Não toma caminho, a não ser o do pelourinho, onde certo vai parar, se não o amarrarem à carreta e sem demora.

— Se o mandassem a Lisboa estudar, não cuida o ajudante, que se havia de fazer gente? Lembre ao mercador, como cousa sua; verá que ele abraça logo o alvitre. Vá, vá ter com o homem.

Falara D. Sebastião com a habitual volubilidade; mas na leve resistência que despontara através da última réplica, percebeu o Ajudante Negreiros o pulso da vontade oculta, que à semelhança da odalisca de um serralho, nunca se mostrava a rosto descoberto.

Quando porém o fidalgo, sobre despedi-lo com a palavra e o gesto, voltou-se de todo para o secretário, impedindo assim qualquer réplica, compreendeu nosso ajudante que a ordem era peremptória, e rasgando uma cortesia com a cabeça inclinada a tocar as orelhas do cavalo e o chapéu desbarretado até a garupa, separou-se da comitiva para enfiar a Rua da Moeda.

Pouco faltava à comitiva para enfrentar com a Rua do Azeite em cuja esquina ficara de plantão o Cosme, depois da escapula do Nuno, esperando a passagem do governador para fazer-lhe a sua reverência.

Respondeu o fidalgo à zumbaia do escrevente com um sorriso animador, e à meia voz disse para o Capitão Barbosa de Lima:

— Aí está um rapaz de recado, que bem merece ser aproveitado.

— Já tinha pensado nisso, respondeu o secretário que nem vira a sonsa figura do escrevente. Consta que é de ânimo cordato; ainda que o suspeita o almotacé de pender para os de Olinda.

— Que mal vem daí? perguntou o governador com um sorriso melífluo.

Lembrou-se o capitão que também ele, antes de tomá-lo o governador a seu serviço, andara extraviado e fora do bom caminho, tendo sido um dos mais respingados entre os do partido olindense.

Com o barrete na mão, e o espinhaço reverencialmente curvo, acompanhou Cosme a cavalgada até que a viu sumir-se por trás da Madre de Deus. Arrancando então um suspiro que lhe estava entalado na garganta, deitou-se o rapaz a trote na mesma direção da cavalgada, para atravessar a ponte e ganhar a outra banda donde já podia estar de volta, se não lho estorvasse o trapalhão do Nuno.

Seguindo de longe o governador, embalava-se o escrevente em fagueiras esperanças, e sentia lá dentro do coração umas cócegas deliciosas. Parecia-lhe que sua estrela ia enfim raiar do seio das águas turvas que se estavam encapelando.

A ocasião faz o homem, como o choco faz o pinto; sem ela, o homem é um ovo goro.

Tal era o conceito em que se embebia o espírito do nosso escrevente, pouco poético, se o quiserem, mas profundo na filosofia, não a especulativa, que se deleita em chilras utopias, mas a prática e sólida, que é a verdadeira ciência da vida.

Chegado à outra banda, encaminhou-se o Cosme à casa do almotacé, onde esteve de cochichos com a Sr.a Rufina, na janela do canto.

Do que ai o levou, e da espécie de comércio que havia entre a matrona e o escrevente, saberemos a seu tempo; sendo que neste momento mal pudemos acompanhar o rapaz na disparada em que vai, já de volta para o Recife.

Ei-lo que enfia pela Rua da Cadeia, e chegado à casa que procurava, encostou-se à ombreira da porta, encolhido para que não ó avistassem de dentro; assim ficou a espreitar pelas fasquias da rótula:

Na câmera servida por essa porta achavam-se em palestra animada duas pessoas, uma cuja voz fornida retumbava pelo teto, e outra de fala submissa embora rouquenha.

O sujeito do verbo alto trazia as vestes dos recoletos, e esquadriava o pavimento de tijolo com umas pernadas, que nada tinham de eclesiásticas, e mais pareciam guinadas de espadachim. As vezes parecia que a batina o tolhia, e dava-lhe tal safanão acompanhado de um trejeito da boca e dos olhos, que bem se via quanto lhe custava a arrastar aquele trambolho. Se não fora a utilidade que lhe prestava, com certeza já o houvera lançado às urtigas.

O árdego padre tinha a cabeça batida; o rosto largo, olhos redondos e lábios carnudos, que estavam denunciando a temulência da carne não castigada convenientemente pela abstinência, e menos pela disciplina. Apesar do freio de santarrão com que ele havia bridado o carão moreno, e do cuidado com que lhe amansava a braveza, não raro mostrava-se ao natural a catadura, e via-se então que era homem de dar e tomar, como se dizia no sertão.

E no sertão deixara o Padre João da Costa, no tempo que por lá andara, memória de suas proezas. Entre outras cousas dizia-se que na festa de uma freguesia, apresentara-se no largo, e puxando da faca, arremetera contra uni pimpão para lhe bifar a rapariga com quem estava; e conseguiu, porque era o frade faquista de fama, e o outro sentiu bater-lhe a passarinha. Tomando então a moça de garupa, saiu o fragueiro do reverendo pela povoação afora, mui ancho de si.

É verdade que estas e outras anedotas vinham de Olinda, onde o Padre João da Costa era abominado, como a alma da conspiração dos mercadores, e o espírito daninho que o estimulava contra os nobres e moradores da terra. Convém portanto dar a tais murmurações o devido desconto da paixão partidária, tão acesa naqueles tempos.

O outro personagem era homem de seus trinta anos, bem fornido de carnes, com uma dessas construções maciças, que se podem bem comparar na arquitetura humana aos edifícios de pedra e cal, sólidos e elegantes. Tinha bela presença; e uma compostura, a que dava realce a galhardia marcial, rara em um mercador, como ele era.

— Ouça o que lhe digo, Sr. Miguel Correia. Antes de três dias decide-se a cousa.

— Pois eu aposto, Padre João, que ainda não é desta vez!

O frade soltou uma risadinha:

— Veremos! Amanhã à noite em casa do Miguel Viana há de mudar de parecer!

— Qual! Os mecos são espertos!

— São! São!... Não há dúvida!

Destas frases ditas em tom claro e compassado, pilhou o escrevente algumas palavras. Infelizmente botando-se o Miguel Correia para a janela, não pôde ele escutar o mais. Bateu então à rótula devagarinho, como quem acabasse de chegar.

— Ah! é você rapaz? disse o mercador levantando o postigo da rótula que era de bater. Entre!

Enquanto arredava a porta .para dar passagem ao gaguinho, voltou-se para anunciá-lo ao frade:

— É o Cosme Borralho, Reverendo!

— Bem aparecido, moço, disse o Padre João; já sei que nos traz alguma nova importante!

— O reverendo e mais o Sr. Miguel Correia dirão, respondeu Cosme com modéstia.

Sacando então do bolso da sotaina o maço de papéis, escolheu um cheio de garatujas que apresentou aos dois. Logo apoderou-se o frade do manuscrito e acercou-se da janela para o decifrar.

— Há!... há!... fazia o reverendo, durante a leitura. Bravo!... Que malandros!

Exultava o gaguinho por baixo da sonsa, vendo o efeito que produzia o papel. Quanto ao mercador, depois de ter debalde tentado soletrar as garatujas do escrevente por cima do ombro do frade, achou mais proveitoso consultar as reverendas bochechas; e como elas se espraiavam em riso gostoso que serpejava enroscando a papada, também o bom do mercador se pôs a gargalhar, esfregando as mãos de contente.

— Aposto que são obras do matreiro do entrevado?

— Foi o licenciado que o escreveu ainda esta manhã, respondeu Borralho.

— O Davi de Albuquerque? perguntou o mercador.

— Grande ronha!... Tem mais peçonha por dentro do que lhe sai por fora das chagas do corpo! prosseguiu o reverendo tornando à leitura.

O mercador tentou segunda entrada nos gregotins do manuscrito, porém debalde.

— Ótimo!... continuava o Padre João.

— Boas noticias, hem?... Bem dizia eu que o Borralho era um rapaz de truz. Mas então as cousas vão bem?...

— As maravilhas, Sr. Miguel Correia, futuro procurador do Senado recifense! exclamou o frade com ênfase, terminada a leitura.

Arrufou-se o mercador de prazer, como um peru de roda quando o garoto rapaz lhe assobia no terreiro.

— Qual!...

— Digo-lho eu. O mês se não acaba sem que tenhamos pelouros abertos neste Recife.

— Pois já tão próximo?... tornou o Miguel. Pelo que vejo este papel é algum arranjo que os pés-rapados nos propõem?

— Este papel?...

Um riso desdenhoso borrifou a respeitável belfa do frade, que inchou as bochechas, para soltar a palavra retumbante com a ênfase do costume.

Aqui para nós, leitor, o reverendo preparava-se para representar o papel de tribuno, que é o apostolado político; e por isso não perdia ensejo de pôr os pontos á sua eloqüência.

— Este papel?... É o mane, thecel, phares da orgulhosa Olinda!... Como Babilônia cairá para não se levantar mais, a famigerada cidade! Este papel?... É o documento da conjuração que tramam os fariseus deste Pernambuco, contra a autoridade do Rei, na pessoa de seu governador, a quem trabalham com danada tenção por deitar fora da terra, a fim de porem a governança na mão de seus apaniguados, embora se derrame o sangue de inocentes, contanto que satisfaçam ao seu nefando propósito de abater esta Sião do Recife, o que tenho fé não hão de consegui-lo...

O reverendo tomou fôlego, e enroscando no dedo índex o fim do longo período à maneira de carapito, outra vez encheu os foles da bochecha para apontuar devidamente o fim daquela rajada de eloqüência.

— ... jamais!...

Saiu o gaguinho dos biocos humildes e silenciosos em que se metera, para manifestar por modos significativos sua admiração à oratória do Padre João. Piscando os olhos de entusiasmo, e batendo a cabeça como o lagarto, animou-se a murmurar à meia voz:

— Nem o Padre Vieira!

Lançou o frade ao gaguinho o olhar de proteção com que hoje em dia o ministro na Câmara afaga os íntimos que engastam em 'apoiados" e "muito bem" as pérolas, por ele desfiadas na tribuna.

Entretanto passava o Miguel Correia um momento bem atribulado. De todo aquele soberbo jacto da reverendíssima eloqüência, não tirara o seu bestunto senão uma cousa; mas essa de arrepiar.

Era o tópico de sangue derramado tão junto ao nome do Recife. Ora, havia no digno mascate invencível repulsão por tudo quanto atentava contra a integridade da pele humana, e sobretudo da que lhe forrava o indivíduo.

Não se conhecia ainda naquele tempo a causa de semelhante fenômeno. Medo; nem por sombras podemos conjeturar que o sentisse um homem da polpa do Sr. Miguel Correia Gomes, capitão no terço dos brancos, e escolhido pelos mascates como um de seus cabeças, para levar a cabo a grande empresa em que se haviam empenhado.

Atualmente, abençoado progresso, qualquer estudante de Medicina explicaria de uma maneira clara e decorosa aquela esquisitice, diagnosticando uma afecção nervosa. Fique pois assentado que o Sr. Correia, bem apessoado de corpo, era, não obstante a fartura de músculo e fêvera do seu todo, um organismo essencialmente nervoso.

Tal frouxidão produziram nele as palavras referidas, que as pernas faltaram ao tronco; os ombros afundaram sob a cabeça; e o homem se aboborou sobre o tamborete.