Enquanto passavam no Recife estas cenas, outras do mesmo drama se desdobravam na próxima cidade.

Era Olinda então a princesa daqueles mares. Reclinada sobre os verdes outeiros, ainda olhava ela com desdém a nova povoação que surgia-lhe aos pés longe em uma nesga de terra sáfara. Ainda sorria altiva aos esforços da humilde serva, que tentava quebrar o preito e obediência devidas à legítima suserana.

E tinha razão. Olinda, a fidalga, a cidade nobre e de mais antiga linhagem naquelas partes, senão em todo o Brasil, conservava nos princípios do século XVIII a flor de sua beleza. Incendiada embora em 1630 pelos holandeses, renascera das cinzas e aumentara com o novo influxo que recebeu a capitania depois de restaurada. Quem, pela vez primeira, a avistava do mar, emergindo do seio das ondas, compreendia como a absurda tradição de seu nome tanto se vulgarizou. Realmente era para exclamar: - Oh!... linda, linda cidade!

O outeiro se elevava como um triclínio romano voltada a cabeceira para o sul, e os pés estendidos pela dilatada campina. Aí, nesse leito voluptuoso, se recostava a americana cidade. Suas ruas subiam as encostas e serpejavam pela esplanada, a cavaleiro do mar. Era este um dos encantos de Olinda, e que raras cidades possuem.

De ordinário o viajante que chega não vê logo senão o vulto indeciso das cidades; a sua feição está no interior das ruas e praças para conhece-la é preciso atravessar a orla de trapiches ou quintais que lhe formam a crosta. Com Olinda não era assim; a faceira, garbosa de sua formosura vinha ao encontro do viajante e abria o seio para recebe-lo. Quem se aproximava de suas ribas alcantiladas, logo via do primeiro lance o coração da cidade bem como o fluxo e refluxo da vida no centro da povoação.

Provinha esta singularidade do corte abrupto da montanha pelo lado do mar. Parecia que a cidade fora fendida a meio pelo desabo da eminência. Tinha esse aspecto alguma cousa de cênico que redobrava-lhe o encanto; como nas vistas do teatro, o ponto visual era no foco do sitio representado.

Outra graça especial de Olinda era a garridice campestre com que ela, cidade nobre, se adornava. Os campanários erriçados de suas belas igrejas, assim como os tetos vermelhos dos edifícios, surgiam de um maciço de verdura. Não havia grupo de casas que não tivesse uma cintura de ramagem e flores. O campo e a cidade, como dois amantes se uniam em apertado abraço. A civilização, assim vestida à americana, tinha uns ares de louçania e gentileza que a embelezavam.

Dizem que tão bonita era Olinda de longe, quanto feia e incômoda dentro. Se essa tradição nasceu de gente invejosa, filha das outras terras, ou de algum cronista vendido aos mascates, é cousa impossível já de averiguar-se. Mas em todo o caso não desabona a cidade; há belezas para serem admiradas de longe; outras se querem vistas de perto.

Infelizmente, aquele viço da altiva formosura não tardava se desvanecer. Lá estava ao sul, numa orla de praia, a minguada povoação de pescadores, que fora crescendo desde a invasão holandesa; e devia em breve dominar essas regiões.

Tinha Olinda todas as superioridades. Situação magnífica, ares saudáveis, água em abundância, terreno fértil, e vegetação opulenta; esses eram os dons da natureza, aos quais o homem juntara outros: as tradições da primeira colonização, os edifícios bem acabados, e os meios de defensão.

Recife era uma ponta de areia, estéril, despida de arvoredo, fétida e doentia, sem outra água potável além da péssima fornecida por cacimbas. A próxima Ilha de Santo Antônio estava nas mesmas condições. Mas havia ali um ancoradouro, porta aberta ao comércio. A indústria, que já se estreava para um dia se apoderar da civilização e subjugá-la, devia arrastar a população do alto das verdes e risonhas colinas às praias sujas, e infetas do Mosqueiro.

Assim, a pouco e pouco minguou a seiva à altiva cidade; suas casas foram desamparadas; tornaram-se ermas as ruas; e o cadáver da formosa Olinda permaneceu como seca múmia entre a verdura das árvores e as palmas dos coqueiros, únicas de suas galas antigas que não desbotaram ainda hoje. Para consolo dessa velhice prematura fizeram-na beata: deixaram-lhe a supremacia espiritual.

Quando a vi de primeira vez, transiram-me o silêncio e melancolia que a habitavam. Pareceu-me penetrar o vasto âmbito de um templo cristão. Tal era o profundo abatimento de Olinda, que não podiam reanimá-la a inexaurível jovialidade e o habitual rumor da colônia acadêmica, então para ali rejeitada.

Naquela tarde de 11 de outubro de 1710 resplandecia Olinda entre os fulgores do ocaso. A rósea vez das nuvens refletia na branca fachada dos edifícios, e algumas chispas do último raio do dia abrasavam os coruchéus das torres. Ao meio da rua principal que se prolonga pelo dorso da montanha, e então como hoje se chamava de São Bento, do mosteiro situado em frente, sobressaíam as outras duas casas nobres, da melhor aparência naquele tempo.

Tinham sobrado ambas, com janelas de sacada, revestidas de altas cortinas de rótulas, pintadas de vermelho. A primeira, mais larga e de cinco portas, pertencia ao Capitão-Mor João Cavalcanti, pessoa da melhor nobreza de Pernambuco. A outra, de três portas somente, era da propriedade e residência do Capitão André Dias de Figueiredo, morador dentre os principais de Olinda.

Na primeira sacada da última casa percebiam-se entre as gretas da rótula, por onde coavam-se as derradeiras réstias do sol cadente, dois vultos que pareciam de mulher; e o eram de feito. Estava sentada em cadeira e mais recolhida, uma já revelhusca; a outra, moça e formosa, em estrado e pendida para a sacada, a fim de aproveitar a claridade; pois trabalhava na trama de uma bolsa de retrós.

— Não se amofine com isto, menina! dizia a matrona.

— Pois, tia, não me hei de queixar de minha sorte, que me fez donzela e casada, sem que o seja nem uma, nem outra? Não me pertenço a mim, que sou de quem me disse o coração; não me pertenço ao meu marido, que dele me tem separada. Ah! soubera eu do que me esperava, que não teria consentido! Afinal de contas ele é meu esposo e eu devia acompanhá-lo...

— Que diz você, Leonor?... Queria então ajuda-lo na guerra que faz aos nossos?

— Quem fala disto, senhora? Sou tão boa pernambucana, como a que melhor for; e também, lhe juro, ninguém se desvela tanto de amores por esta Olinda, onde nasci e me criei, e parece que tudo me conhece, porque brincamos juntos, quando era eu criança; e vai a ponto que viver fora daqui, creio que não é mais viver, e sim morrer-se em vida aos poucos.

— Se pensa por esse teor, de que se arrepende então?

— Eu sei, tia? Tenho cá uma cousa comigo a dizer-me que se não fossem ao Sr. Vital Rebelo, logo na mesma noite em que nos desposamos, a intimar-lhe para morar em Olinda, ele se não havia de agastar; e depois com o tempo, pedindo e rogando, como era meu dever, tudo alcançaríamos dele. E agora!...

Curvou Leonor ainda mais a cabeça, dando ao colo alvo e flexuoso uma ondulação de cisne, a fim de esconder da tia a lágrima cristalina que tremia nos cílios e veio a cair no regaço. Mas a voz não a pôde esconder; viera aquela última palavra rociada de prantos.

— Está bom, tornou a senhora; console-se que breve tudo isto acaba. Em vencendo nós aos tais mascates...

— Contanto que lhe não façam mal! replicou prontamente a moça.

— Disso lhe dou fiança, menina; basta ser seu marido e meu sobrinho.

— Mas quando acabará?

— Qualquer destes dias.

— Ah! Deus lhe ouça, tiazinha de meu coração, exclamou a donzela esposa, erguendo ao rosto as mãos juntas para o céu.

Nesse movimento as madeixas do cabelo castanho descaindo para as espáduas mostravam em toda a pureza natural o belo semblante de Leonor. Entre a límpida alvura coavam uns reflexos de luz rosada que anunciavam a aurora da esperançada ventura.

D. Severa lançou-lhe um olhar de castelã.

— Ai! Quem me dera outra vez aqueles bons tempos em que as damas e donzelas sabiam arrostar os perigos e davam aos senhores homens o exemplo do heroísmo? Também por isso eram mais respeitadas e queridas do que são hoje, que vivem encostadas ao canto que nem traste velho e fora de uso. Se não era outra cousa bem diferente das de agora uma fidalga, ainda mesmo do tempo de minha avó, que pelejou em Porto Calvo com D. Clara? E por sinal que atravessou dois holandeses com uma só lançada!

— Jesus!... Que mulherzinha!

— E eu sou capaz de outro tanto; o ponto é me acompanharem.

— Ui! tia não se lembre disto. Já estas cousas andaram tão baralhadas sem nós mulheres andarmos aí às voltas, quanto mais se nos fôssemos também meter com elas? Então é que ninguém mais se entenderia; por força que havia de vir muita desgraça, sem contar a que já estou prevendo de me ver casada e descasada tão sem graça e de repente!

— Não digo! Para choramingas e rezas é que servem hoje as mulheres. Se fosse uma dama do bom tempo, que se apartasse como você, Leonor, de seu esposo para seguir a seus parentes, em vez de ficar em casa a fazer meias ou bolsas, punha-se em campo com seus acostados e gente d'armas; e havia de não menos vencer o inimigo à ponta de espada, do que render o esposo com um bote de lança, que não com um requebro d'olhos.

— Nossa Senhora me defenda de tal tentação!

— Ai, saudades!... Aquilo é que era viver! continuou D. Severa entusiasmada. A gente sempre adorada, cavaleiros de todas as partes que cercavam a dama de seus pensamentos, e bastava um aceno para que eles fossem ao fim do mundo, e isso só em troca de um sorriso de longe em longe, ou quando muito de uma flor, de modo que assim a formosura de uma fidalga podia chegar para fazer a tantos felizes; e não é como hoje, que vive fechada dentro de casa para um só, e este mesmo nem com ela se importa!... Ai, tempos, belos tempos dos torneios, das justas, das cruzadas! Tempos de constância em que a gente não se dava de esperar dez, vinte, trinta anos, que seu esposo voltasse da Palestina! É para se comparar!...

Aqui vejo-me obrigado a dizer alguma cousa sobre o físico da Sr.a D. Severa de Sousa, para que o leitor não se deixe ir a suposições arriscadas!

Tinha a fidalga cinqüenta anos bem puxados: os cabelos, ainda não grisalhos, mas de um preto ruço, trazia-os ela em diadema enastrado de fitas verdes, amarelas e escarlates. Nas faces, onde a natureza pôs aquele doce pomo rubescente, que nossos pais com propriedade chamaram as maçãs do rosto, havia outra variedade de fruto, duas nozes.

Formavam estas saliências em conjunção com o queixo não menos proeminente a triangulação da beleza de D. Severa, que se contava no rol das ninfas olindenses. E não era vaidosa, não. O nosso amigo Lisardo que tinha entradas no Parnaso e privava com as musas, lhe dedicara há tempos um madrigal neste gosto:

Onde vais

correndo assim?
Pergunto à Flora chorosa.
Diz-me a deusa: "Busco a rosa
Que fugiu do meu jardim."

Acode amor: "Oh! não penses,
Que volte a ser flor mimosa,
Clélia, a ninfa mais formosa
Entre as ninfas olindenses.

Ah! poetas, poetas. Por que vos deu a natureza um estômago?... Sem essa víscera exigente não seríeis forçados, vós, os sacerdotes do belo, a cantar as Donas Severas de todos os tempos; e a incensar as torpezas de ambos os sexos, que por ai pululam corno rãs, neste grande charco, chamado mundo!

Observava Leonor com um arzinho zombeteiro o entusiasmo cavalheiresco da tia, e o sorriso que lhe brincava nos lábios já abrochava para soltar algum remoque inocente, quando uni tropel de cavalo soou na rua, que a distraiu. Enfiando o olhar pela fresta da gelosia, teve um sobressalto e se arremessou de encontro à rótula com irresistível impulso.

— O que é? 0 que é? perguntou D. Severa estendendo o longo pescoço, que no madrigal do Lisardo devera representar o pedúnculo da rosa.