Quando à tarde o Ajudante Negreiros apartou-se do governador, tomando pela Rua da Moeda, houve quem lhe bispasse a manobra.

Viam-se pela ribeira, próximos à jusante da maré, jiraus cobertos de palha, onde costumavam os pescadores guardar as canoas, e também jangadas suspensas de um lado por espeques. Aí, atrás de uma dessas anteparas se metera o Nuno, com receio de que o avistasse de longe a comitiva do governador, e lhe pusesse o ajudante no encalço os lacaios e guardas a cavalo.

Sucedeu esconder-se o rapaz a jeito de ouvir as palavras que trocaram o ajudante é o governador, ao passarem rente com a palhoça onde se agachara.

Desde que desapareceu a comitiva, surdiu o mascatinho sarapatando, e lobrigou o Negreiros que apeava-se na calçada da loja. Ali naquela hora se ia decidir de sua sorte, e sabendo do empenho que punha o mercador em agradar a D. Sebastião, tinha já como cousa assentada, a remessa para Lisboa.

No primeiro navio que se fizesse de vela para aquele porto, lá ia ele encomendado a algum tio da outra banda; e tão cedo não veria a sua Marta, nem de tão longe a poderia disputar aos que se atrevessem a pretendê-la.

Logo, sem mais detença, cuidou em evitar o golpe; e o único meio que tinha era desaparecer da casa, e de modo que lhe não pudesse o pai seguir a pista e agarrá-lo.

— Não me pilham!... disse o mascatinho ao concluir a sua breve reflexão. Vamos rondando do lado do quintal, a ver se posso apanhar-me dentro de casa e arranjar a trouxa. Depois raspo-me; e passem lá muito bem.

Era precavido o rapaz, no que mostrava a despontar entre os arreganhos marciais o sangue mascate. Como podia ter necessidade de ganhar o sertão, lembrou-se que precisava da roupa, mas sobretudo de armas, sem as quais não o tomariam por homem de guerra; o que era todo o seu desejo.

Ao avizinhar-se dos fundos da casa, escondido entre o mata-pasto, deu com o Lisardo encostado à parede da tacaniça, perto da gelosia, e não lhe custou adivinhar o que ali fazia o amigo.

Enquanto afinava-se o trovista para recitar a sua décima, o esperto do Nuno penetrou na casa paterna, pelo quintal, onde só encontrou a Benvinda, que estava cochilando ao borralho, em companhia dos dois gatos da casa.

Barafustou o rapaz a correr pelo corredor, até um compartimento que ficava nos fundos da loja, e lhe servia de armazém ou arca de Noé. Aí cuidou logo de escolher o mais fornido chifarote que suspendeu à. ilharga pelo talabarte; pôs à bandoleira uma clavina; meteu no cinturão um par de pistolas francesas e uma adaga flamenga, e na cabeça uma velha cervilheira, que ali rolava de envolta com outros cacaréus.

Assim reduzido a um cabide d'armas, tratou o garoto de entrouxar duas ou três mudas de roupa, que tirou do armário das que já vinham em obra do Reino; feito o que, foi-se pondo ao fresco sem mais demora, pois no meio dos seus aprestos vinha-lhe a rajadas, lá da entrada da loja, um certo rumor de vozes, que o tinham alerta.

Desconfiava o rapaz, e não sem motivo, que esse sussurro provinha da prática do pai e do ajudante, naturalmente sentados à calçada da loja. Por maior que fosse a curiosidade de saber o que estavam os dois tramando contra sua liberdade, o medo de que o viesse encontrar o pai, armado em guerra dos pés até a cabeça, tirou-lhe. todo o gosto da escuta e lhe amolou os calcanhares.

Ao toque de ave-maria já estava o Nuno outra vez escondido no mata-pasto em frente à rótula, e a ruminar uma lembrança que lhe acudira. Era nada menos do que sair ao encontro do ajudante, na volta deste, chamá-lo a desafio, e ali mesmo meter-lhe na pele duas boas cutiladas, para ensiná-lo a não se intrometer com a vida alheia.

Quando tinha assentado levar por diante a traça, e já a trazia bem concertada, saiu-lhe o negócio burlado; pois o Negreiros com a pressa de tornar a D. Sebastião, portador de boas-novas, apenas saltou na sela fincou esporas no ginete, e lançou-o a todo o galope. Ninguém o julgaria capaz de tal façanha, achacado como era de várias queixas, que todas lhe provinham dos destemperos de boca. Que heroísmos, porém, não inspira a bajulação?

Assim frustrada sua esperança de vingar-se no ajudante, se deixou ficar o Nuno oculto no mata-pasto, à espreita do nosso poeta Lisardo, com quem contava para o plano que forjara.

Já haviam passado o Rev. João da Costa em companhia de Miguel Correia, e o Lisardo não se resolvia a apartar-se da rótula. Cansado de esperar, o Nuno que não primava pela paciência, foi-se aproximando agachado entre o mata-pasto, e de repente surdiu em face do nosso poeta.

— Defende-te, vilão! gritou o mascatinho engrossando a voz e puxando do chanfalho.

Ao ver-se atacado por uma panóplia, o Lisardo, que sofria de nervoso, ficou estatelado contra a parede, sem voz para proferir palavra; porém maior foi a surpresa quando todo aquele fero se trocou em gargalhada, e ele reconheceu sob a viseira o rosto brejeiro do Nuno.

— Sempre tens uns modos!... disse o nosso poeta arrufado.

— Com que então queria o Sr. Lisardo de Albertim que eu o deixasse muito de seu e sossegado estar aqui de requebros e segredinhos com a sonsa da senhora minha irmã, que aposto nos está escutando por detrás daquela rótula.

Ouviu-se um muxoxo entre as frestas.

— Pois engana-se, tornou o mascatinho entonando-se outra vez no seu recacho guerreiro. À espada ou lança, a pé ou encarapitado, lhe mostrarei que... que você é um poeta das dúzias.

— E você um espalha-brasas!... atalhou com impaciência uma voz maviosa que vinha da rótula.

Voltou-se o Nuno para dar-lhe o troco; mas em vez do rostinho de alfenim que ele esperava encontrar, lobrigou através da rótula entreaberta as marrafas de uma respeitável matrona, que se aproximava da janela com uma curiosidade suspeita.

Essa matrona era nada menos do que a Senhora Rosaura, mulher do mercador Miguel Viana e mãe do nosso Nuno.

Percebendo-lhe as pisadas, a menina dos olhos negros esgueirou-se da rótula o mais depressa que pôde. Vendo o que, o Lisardo teve o palpite de amolar as canelas, escamando-se a bom correr pelo campo fora.

Pensou o Nuno que era esse o mais prudente alvitre, e apesar da durindana que lhe embaraçava as pernas e da cervilheira a dançarlhe na cachola, lá disparou pelo mata-pasto no encalço do Lisardo, de quem não lhe fazia conta perder a pista.

Momentos depois caminhavam os dois amigos pelo istmo, na direção de Olinda.

Chegados ã altura do Brum, parou o Lisardo, pensando que o Nuno desejaria separar-se dele para tornar ao Recife. O mascatinho, porém, tinha lá sua traça, e foi despejando o caminho sem dar-se por entendido.

— Olhe, não fique tarde para você recolher-se, Nuno! disse-lhe o nosso trovista.

— Não lhe dê cuidado, sô mofino!

Assim chegaram às abas de Olinda, e o Lisardo ia despedir-se do companheiro. quando este perfilando-se disse-lhe com um tom que não admitia volta.

— Fique sabendo o Sr. Lisardo de Albertim que vai deste passo levar-me à casa do Capitão-Mor João Cavalcanti.

— Do... do capitão-mor?... murmurou o poeta gago de surpresa.

— De que se espanta você?

— Pois, Nuno, o filho de um mascate do Recife...

— Que tem isso?... D. Francisco de Sousa, que é nobre e dos mais nobres, não está com os mascates?

Embatucou o Lisardo com o exemplo, mas não se deu por vencido:

— E seu pai?

— Ele que se arranje! Não; que para Lisboa não me levam nem em postas.

— Que me diz você, Nuno?

— A tramóia foi armada pelo manhoso do governador e mais o paparrotão do ajudante que o leve o demo! Mas hei de pregar-lhes um mono, que não imaginam.

— Então é ponto decidido?

— Com a breca!... Eu cá não sou homem de voltar atrás! Dito e feito!... Desembainhando o chifarote com um arreganho de ferrabrás, o Nuno cresceu para o Lisardo gritando-lhe:

— Leve-me já à casa do capitão-mor se não quer que o leve eu espetado na ponta desta espada!

Já abalado pela noticia do desterro que ameaçava o amigo, o nosso poeta rendeu-se ante aquele argumento perfurante.

Eis porque momentos antes o Lisardo atravessava a casa do sofá de um modo tão original, e surdira na casa da ceia, no meio da surpresa geral dos convivas, que o viram entrar à guisa de boneco de engonço.

Passada a primeira surpresa. as vistas se fitaram no vulto de Nuno, que atado ao formidável chanfalho e coberto pela enorme cervilheira, fazia uma figura grotesca. As risadas estrugiram pelo âmbito da sala de envolta com o tinir da louça e dos cristais.

Susteve Nuno impassível e sem pestanejar o fogo rolante daquela estrepitosa gargalhada, ainda que por seu gosto preferia afrontar uma descarga de mosquetaria.

Afinal, passado o frouxo de riso, veio a curiosidade de saber por que artes aparecera ali aquela estrambótica figura; e voltou-se a atenção para o Lisardo que, aproveitando a hilaridade, tratava de esgueirar-se pela copa, onde contava achar os remanescentes da opípara ceia.

— Oh! Lisardo! Não nos dirá onde foi desencavar este palerma?

— Querem ver que é algum fedelho dos flamengos, que ai ficou enterrado no mangue!

— Mais parece um bugio armado em guerra!

— Ora qual! É o Pança do D. Quixote do nosso Lisardo! Pois não sabiam! Enquanto assim os convivas trauteavam o nosso poeta, ele estava sobre espinhos; e não se animando a abrir a boca, encolhia-se de modo que parecia querer sumir-se dentro de si próprio.

Foi o Nuno quem, revestindo-se de sua natural petulância, pôs termo ao suplício do amigo.

— Querem saber quem eu sou; pois já lhes digo. Sou o filho do mercador Miguel Viana!

— Do mascate!...

— O mais atrevido da súcia!

— Que veio cheirar aqui, sô mariola?

— Oral Anda bisbilhotando para ir meter no bico dos labregos!

— É espião, não tem que ver!

— Pois enganam-se, acudiu Nuno decidido. Deixei o Recife e o pai; porque sou por Olinda e quero combater com a nobreza, em pró de sua causa, que é a dos legítimos senhores de Pernambuco.

Acolheram os convivas estas palavras do Nuno com um, silêncio cheio de suspeitas, apesar de serem elas proferidas em tom firme e sincero.

Não assim D. Severa, que atravessando o aposento, veio ao encontro do mascatinho:

— Bravo, moço. Como se chama você?

— Nuno! respondeu o caixeiro.

— Nuno, doravante pertence à minha casa. Faça-o meu pajem de estrado para o serviço especial da minha pessoa.

Nessa ocasião entrava na casa de jantar o Filipe Uchoa; e consultado sobre o caso, aprovou com um riso jâmbico a resolução de D. Severa.

— Não podíamos inventar melhor polé para o Miguel Viana, respondeu ele.

FIM DA PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

ADVERTÊNCIA

Quando a cerca de um ano veio a lume o primeiro

no match

editar

tomo desta crônica, houve muito quem teimasse em ver personagens contemporâneos disfarçados nessas figuras do século passado.

Semelhante personificação, o autor não pode de modo algum admiti-la.

Os atores da comédia, que se chamou a Guerra dos Mascates, são antes de tudo históricos: ou porque os anais do tempo fazem deles especial menção, ou porque representam as idéias e os costumes da época.

Demais, essas figuras têm cada uma seu papel no desenvolvimento da ação que o autor se incumbiu de narrar, conforme a lição do seu alfarrábio.

Admitida a personificação, não poderia o escritor referir um fato ou circunstância histórica, nem descrever um episódio qualquer da crônica sem que tais pormenores fossem logo referidos aos inculcados sósias de seus personagens.

Ora, o autor não pretende certamente defender-se do pecado de uma ou outra alusão, que lhe corre às vezes sem querer dos bicos da pena. Mas essas demasias, não as tem senão sobre a política, que e já de si um longo e interminável epigrama.

Insinuações à vida privada, nunca as fez o autor, e espera que não cometerá jamais tão grande aleivosia apesar de ter sido ele muitas vezes a vitima de semelhantes emboscadas.

Não é daqueles que muram a vida privada. Ao contrário, pensa como Alphonse Karr, que o homem publico não tem direito a esse asilo; pois deve à opinião que ele pretende dirigir, e ao pais a quem serve de exemplo, satisfação plena de todos seus atos.

Mas e com a precisa coragem e franqueza, não com insinuações que se tem direito de atacar o procedimento repreensível de qualquer cidadão, de modo a provocar a defesa e habilitar a opinião a pronunciar-se.

Com estas idéias, bem se vê que não podia o autor caricaturar ninguém nos personagens de sua crônica, aliás obrigados a desempenhar papéis originais em uma comédia de outros tempos e de outros costumes.

Carreguem-lhe pois a culpa das malignidades políticas, ainda mesmo daquelas de que não cogitou, mas deixem-lhe o direito de mover à vontade as figuras do seu teatrinho; de casá-las a jeito, e distribuir-lhes a cada um seu papel de pai, marido, filho, noivo, ou qualquer outro da comédia social.

Com isso, que é do domínio da fantasia, nada tem que ver a maledicência.

Corte, 1 de junho de 1874.