A criação da vila do Recife, tão porfiada pelos mercadores, devia ser o desfecho dessa contenda em que os dois povos rivais andavam empenhados, havia mais de dez anos.
Com outro governador assim teria acontecido; mas com Sebastião de Castro não passou de uma fase nova da luta, que tornou-se mais ardente pelo despeito de um partido e a arrogância de outro.
A indignação dos moradores de Olinda, quando entre eles estourou a nova como uma bomba fulminante, não guardou termo e prorrompeu em ameaças e assuadas. O que mais revoltava aos pernambucanos era a falsa fé com que o governador, adormecendo-os na confiança inspirada por palavras insinuantes, havia sorrateiramente obtido do conselho ultramarino a separação do Recife.
Em verdade era completa a segurança dos pernambucanos. Conversando o velho Capitão-Mor João Cavalcanti uma tarde em palácio com o governador, e trazendo a prática para o ponto que mais lhe interessava, teve em resposta estas formais palavras: -"Sobre este particular pode ficar descansado, senhor capitão-mor. O Recife, pelo que ouvi em Lisboa, tão cedo não será vila."
Estas palavras, referiu-as textualmente João Cavalcanti aquela mesma noite, no serão costumado, e ninguém houve que se não tranqüilizasse com o penhor dado por Sebastião de Castro ao venerando ancião. Não conheciam ainda a polpa do homem que os governava.
No meio do geral espanto, causado pela noticia, interrogavam-se todos acerca daquela promessa; e os principais acercavam-se do capitão-mor para ouvir dele os pormenores do caso e a repetição fiel da asseveração do governador.
Não ocorria ao velho fidalgo que pudesse alguém duvidar de sua palavra; mas incomodava-o a só idéia de haverem faltado à fé por ele assegurada. Além de que essa fé também lhe fora dada a ele por quem se prezava de cavalheiro e como cavalheiro lhe devia contas severas.
Recobrando um assomo do antigo vigor, montou o capitão-mor a cavalo e sem mais acompanhamento do que um pajem, deitou-se a galope para o palácio do Recife onde estava o governador inquieto com o alvoroto de Olinda.
Nessas ocasiões em que se embrulhava a política, se não mente a crônica, o fígado de Sebastião de Castro, como o de César, sofria a repercussão do abalo moral; mas a bílis, prontamente corrigida, nunca perturbava a fleuma desse organismo.
Já àquela hora andava o Ajudante Negreiros num corrupio, despejando ordens pelos fortes e quartéis, enquanto o governador em conferência com o Secretário Barbosa de Lima combinava nos panos quentes e cataplasmas com que se devia acudir ao desmancho.
Pressuroso saiu Sebastião de Castro ao encontro do capitão-mor a quem recebeu com desusada afabilidade, mas com isso não desarmou a carranca do velho, que foi direito e rijo ao ponto.
Não podia o governador ocultar a parte que tivera na criação da vila, pois a carta régia se referia positivamente à sua informação; mas ainda quando houvessem omitido essa circunstância, não a negaria ele. Em sua opinião a mentira é um expediente grosseiro, que somente empregam os espíritos frouxos e indolentes.
Ouvida a queixa, se não amarga exprobração do velho Cavalcanti, respondeu-lhe o governador sem alterar-se:
— O que disse ao senhor capitão-mor e mantenho, foi ter ouvido em Lisboa a quem o devia saber, a asseveração de que tão cedo não seria vila o Recife.
— Mas não se dirá...
Impetuoso como sempre interrompera João Cavalcanti ao fidalgo para retrucar-lhe sobre a contradição de seu procedimento. Atalhou-o o governador:
— Quanto a haver eu representado em favor da criação da vila, compreende o senhor capitão-mor, como cavalheiro que é e leal súdito, que eu faltaria ao meu dever de governador desta capitania, não informando a El-Rei das necessidades da terra, para que Sua Majestade as proveja de remédio. Nem podia deter-me neste particular o muito que me merece a nobreza, pois contava infalível o indeferimento.
Os Césares modernos que se deixam vencer pelos ministros quando lhes convém enfeitar-se de suas lentejoulas democráticas, não responderiam com maior dignidade e abnegação a algum favorito sacrificado: "Sou seu amigo, mas lembre-se que também sou rei constitucional." O que em gíria cortesã quer dizer: "Se agora para guardar as aparências fui obrigado a despedi-lo como um importuno, com jeito posso fazê-lo sota-rei mais tarde."
— O caso é que os mascates lograram afinal o que em dez anos não puderam.
Estas palavras soltou-as o capitão-mor com um tom morno, pois dissipado o primeiro assomo, já se lhe relaxava a fibra.
Sorriu-se o governador:
— Lograriam...? disse ele com uma entonação que não se podia afirmar se era de interrogação, se de reticência.
— Pois Vossa Excelência ainda o põe em dúvida? exclamou o capitão-mor.
— Por linhas tortas escreve-se direito, em havendo arte.
— Confesso que não atino.
— Mandou-me El-Rei criar vila no Recife; mas a vila não está criada, e pode bem ser que se não chegue a criar; entretanto que, embalados nesta esperança, os mercadores se aquietarão.
— Lá diz o ditado - "que entre a boca e a mão vai o bocado ao chão." E assim acontecerá se tivermos por nós a Vossa Excelência que em respeito a seus brasões, como grande fidalgo, se deve à nossa causa que é a da nobreza contra a ralé.
— Neste posto de governador, devo-me a El-Rei primeiro, e aos povos depois, sem distinção de nobreza e peonagem. Mas não careceis de escudo, com os títulos que tendes. Do que precisais é de moderação e tolerância para atrair à nobreza pessoas abastadas e preponderantes.
— Não se costuma entre nós, senhor governador, repelir os que vêm como amigos, ainda quando não trazem cabedais, que mercê de Deus não cobiçamos.
— Será então falso quanto me referiram?
— Ignoro o que fosse.
— Que o alferes Vital Rebelo requesta uma sobrinha vossa, a qual lhe corresponde ao afeto; mas vós, ou os vossos, a tendes por modo defesa, que ao valente namorado custa-lhe um assalto d'armas cada vez que se avista de longe com a formosa dama?
— Há razões particulares, respondeu João Cavalcanti reservado.
— Estas razões, senhor capitão-mor, são desarrazoadas. Se o pai de Vital Rebelo ficou senhor do engenho e mais haveres do finado Luís Barbalho, marido de vossa sobrinha, mais pela prodigalidade deste do que pela usura daquele, que melhor meio de reparar esse revés da fortuna do que devolver por rima acertada aliança, ao casal donde saíram os bens dissipados?
Calou-se o capitão-mor.
— Que dizeis a isto? insistiu o governador.
— Digo que pode bem ser esteja a razão da parte de Vossa Excelência.
— Neste caso, por que não ma dá o senhor capitão-mor fazendo o que lhe aconselho?
— É do agrado do senhor governador o casamento?
— Penso, respondeu o governador elevando a voz como para acentuar melhor o seu alvitre, que será de grande proveito ao partido e à família a aliança de sua sobrinha D. Leonor Barbalho com Vital Rebelo, pois é este, além de cavalheiro de muitas prendas, homem de dotes superiores.
Desde algum tempo, que um dos toma-larguras do palácio andava rondando sôfrego de bispar alguma cousa da prática. Não escapou-lhe uma só das últimas palavras do governador, que alteara a voz a talho de ser escutado.
Nessa mesma tarde Vital Rebelo sabia do que a seu respeito dissera o governador.
Foi extrema a surpresa do mancebo.
Apesar de filho de mercador e partidário do Recife, não era ele dos que estavam nas boas graças de Sebastião de Castro; bem ao contrario, tinha impulsos de dignidade e altivez que deviam beliscar o orgulho do fidalgo.
Assim não lhe dava excelência, tratamento que não competia aos governadores, mas que eles recebiam de todos com prazer em vez da chata senhoria, havendo-os que o impunham de preceito, bem como outras cortesias a que não podiam pretender, pois eram prerrogativas da majestade.
Guardando ao governador a reverência que julgava devida, o alferes cortejava-o com o chapéu quando o encontrava, mas não ficava de cabeça ao tempo, como usava a gente principal, que não se cobria nem voltava as costas estando ele presente e até o perder de vista.
Também não era Vital assíduo em palácio onde compareciam habitualmente todos os que tinham oficio público ou posto de milícia e ordenanças. Alguma vez que lá ia de longe em longe, levava<) mera urbanidade e não lisonja.
Passava Sebastião de Castro por filósofo e desabusado acerca dessas maneiras palacianas. do que muito se lastimavam os oficiais de sala, então como agora mais realistas do que o rei. Todavia nunca se lembrou o fidalgo de acabar com tais práticas, no que bem mostrava não lhe serem desagradáveis e menos incômodas.
Mas por cima dessas esquisitices veniais, tinha Vital Rebelo pecado mortal. Uma ou outra vez em discurso com o próprio Sebastião de Castro, e muitas nas práticas dos mercadores, chegara a dizer que os governadores abusavam do, seu regimento, já ingerindo-se nas cousas de justiça, já provendo postos que não cabiam em sua alçada.
E não andava ele mal informado, pois ao próprio Sebastião de Castro mandou El-Rei estranhar asperrissimamente por se intrometer nos negócios de justiça, e também por exigir que a Câmara de Olinda lhe desse o tratamento de Senhor, a igual da majestade. Prova isto que o rei-povo é menos que o rei-só zeloso de suas prerrogativas, e mais bonachão com seus governadores e ministros.
Com tais antecedentes não havia reparar na surpresa de Rebelo ao saber do conceito em que o tinha Sebastião de Castro e do empenho que tomava pela realização do mais ardente voto de sua alma.
— Fui injusto! É homem de ânimo generoso, e um nobre coração! disse o mancebo penhorado da fineza.
Havia então no Recife um letrado que vivia dos provarás, porém mais da rigorosa economia, a que se acostumara. Chamava-se Carlos de Enéia e era homem de meia-idade, metido consigo, que o mais do tempo levava a rabiscar papel.
Há suspeitas de que seja o incógnito autor da crônica manuscrita donde extraíram-se estas memórias, e na qual porventura se refugiava o advogado do nojo pelas misérias públicas que o rodeavam.
Fora Enéia algum tempo secretário de Sebastião de Castro, quando este governara o Rio de Janeiro, bem que não se demorara no cargo, pois ele, como de D. João de Castro disse Jacinto Freire, "podiam sofrê-lo como vassalo, mas não como criado".
Do pouco tempo de serviço lhe ficara larga experiência do natural de Sebastião de Castro, de quem algumas vezes costumava dizer: "que era varão insigne, porém no posto a que o subira a fortuna, andava desencontrado, desgovernando tudo pela ânsia de muito governar".
Ligava Rebelo ao letrado uma afeição que nascera da conformidade no temperamento de suas almas. Estando à noite com o amigo, referiu-lhe o alferes o ocorrido, mostrando-se rendido à galhardia de Sebastião de Castro.
Sorriu-se Enéia, citando um verso de Sírus:
— Nisi qui sit facere, insidias nescit metuere.
— Que queres dizer com isto? tornou Vital.
— Que vês a imagem alheia no espelho de tua alma; mas eu, que a vejo à luz da experiência, descubro sombras que te escapam.
— E quais são elas, não me dirás?
— O elogio é um meio muito usado, mas sempre novo, de render a vaidade; e neste caso tem outra serventia, qual é convencer-te da gentileza de quem os faz. Se até agora nutrias uma prevenção contra Sebastião de Castro, de hoje avante vai ele tentar-te pela mais perigosa das seduções, que é a da virtude. Acatando nele, já revestido das dignidades do governo, um modelo de honradez e símbolo de justiça, que não exigirá de tua veneração que tenhas força para recusar? Serão em começo cousas de pouca monta que não assustarão teus escrúpulos; mas esse caminho é assim talhado, que em tropeçando nele, já ninguém se pode erguer, e para subir não há outro jeito senão ir de rastos ou às gatinhas.
— Estou à prova! disse Vital com sobranceria.
— Ainda não; por ora pertences ao amor, que é capaz de todos os raptos e entusiasmos como de todas as loucuras, que faz herói ao cobarde e mártir ao egoísta. É na idade da ambição que se prova a têmpera aos homens.
— E qual é essa idade? Não dirás que seja a tua, pois nela te condenas ao esquecimento.
— Não se trata de mim, que já não pertenço ao mundo, nem cuido senão de mirrar a múmia deste espírito para deixá-la à posteridade. Não que eu creia nisso que se chama pomposamente a justiça da história; mas creio no sarcasmo retrospectivo do futuro; creio no desprezo póstumo pelas torpezas que já não aproveitam, e nessa gargalhada eterna que desde o princípio do mundo atravessa as idades fustigando como um látego todas as grandezas ridículas e grotescas.
Caindo em si, o advogado reprimiu esse rasgo, como homem que já não permitia à sua palavra austera as flores da eloqüência:
— E eu a falar de mim, quando é de ti e do governador que me devo ocupar! Quer-te ele casado...
— Também entra nisso um plano? perguntou Rebelo gracejando.
— E o mais perigoso. Moço, rico, benquisto, brioso, ornado de prendas tão luzidas que o próprio Sebastião de Castro não as pode esconder, és um manjar de rei. Tua altivez já passa a escândalo e faz sombra em palácio. Neste momento não tem o governador com que fascine teu coração de namorado. Suas insígnias de capitão-general não valem para ti o requebro d'olhos e o sorriso de tua dama. Mas casado e com uma fidalga de Olinda, tu, mercador e filho de mercador, podes responder por tua isenção?
— Juro-te que sim; e se me conhecesses, não o duvidarias.
— Não te conhece ele, e por isso espera que tua mulher será a chave com que os Cavalcantis te abrirão a consciência e se apossarão dela até fazerem de ti uma criatura sua. Eis por que Sebastião de Castro se empenha por teu casamento.
— Tenho na melhor estimação o teu voto em tudo, mas neste ponto cuido que exageras a habilidade do homem; não o suponho capaz de tal argúcia, e nisso faço menos justiça à sua virtude, do que ao seu engenho.
Estavam os dois amigos no gabinete do advogado, que seguia a prática andando de um a outro lado. Passava ele por diante da livraria e acertou de cair-lhe sob os olhos um volume.
— Conheces este livro? perguntou apontando o rótulo com o índex.
— O Príncipe?
— Anda em moda compará-lo com Sebastião de Castro; e já ouvi de alguém, que o governador não era senão o livro encadernado em pergaminho humano. Com essa maledicência cuidam deprimi-lo, e o absolvem. Maquiavel foi o político de seu tempo, como este o é de sua escola. Observa-se em ambos a estranha fusão das máximas severas da moral com os manejos de uma astúcia desabusada. Agora a dedicação ao bem público; logo após um frio egoísmo. A razão disto, querem sabê-la? É que para eles, que têm os povos em conta de crianças, pois os conheceram assim, o governo do Estado não é outra cousa senão a arte de enganar os homens para o bem de todos.
Essa convicção robusta não deixou de abalar o mancebo, que movido em parte dela e em parte da deferência com que tratava ao amigo, disse-lhe em ato de despedir-se:
— Que me aconselhas então?
— Nada. Segue teu caminho; serás iludido por tua vez e aprenderás à tua custa. Aqui hás de tornar cedo, porque não és dos que aprendem a grimpar e se agacham para subir.