Pouco faltava para soarem trindades na torre da Madre de Deus.

Era um sábado, 15 de outubro, e portanto dois dias depois da aventura de Vital Rebelo em Olinda.

Havia essa tarde o ajuntamento do costume na calçada do mercador Viana, que morava como já se sabe à Rua da Moeda, para as bandas do Forte de Matos.

Aos dois e três iam chegando os principais da mascataria, e outros que não tinham voz ativa, mas serviam para fazer número.

Percebia-se que era de ponderação o negócio, não só pela maior companhia, como pela preocupação que se mostrava em todos os semblantes.

Junto a uma das janelas estava sentado o Viana, pai do nosso Nuno, e com quem ainda não tivemos ocasião de avistar-nos.

Era uma formidável amostra de homem, com sofrível estampa, e uma dessas caras sediças, ornadas do clássico passa-piolho, como se encontram a cada volta entre os nossos irmãos de além-mar, e que são vulgarmente conhecidas caras de mestre de barco.

No mais, boa pessoa, um tanto pachorrento e descansado na voz como nos gostos; marroaz, amigo da chelpa que para ele fora sempre a melhor política, o Sr. Miguel Viana passava entre os amigos no físico e no moral por um perfeito pé.de-boi.

Incomodara ao mercador a peraltice do Nuno que já ele sabia estar metido com os nobres em Olinda; mas devemos confessar que o desgosto do pai com a marotice do filho não foi tão grande quanto a mofina do patrão, por ver-se de repente sem caixeiro na loja.

À medida que vinham chegando os parceiros, erguia-se o mercador para os saudar, e também para alcançar dentro da casa os tamboretes que oferecia aos recém-chegados, os quais se iam abancando em roda.

A parte feminina da família entrava para a sala, onde estava a Senhora Rosaura para as receber com mil requebros em que nestas ocasiões se desfazia o seu corpo rechonchudo com sério risco de sua respeitável trunfa.

Já havia chegado com sua cara-metade e a menina Marta o digno almotacé, o Sr. Simão Ribas, que estava abancado à direita do Viana, e nesse momento apontara na esquina o importante almoxarife, Domingos da Costa Araújo, que se aproximou com um andar grave e enfático.

Era o Costa Araújo um dos luminares da mascataria e sem contestação o mais bem falante. Em arranjar um vistoso ramalhete de bonitas frases, ninguém levava-lhe a palma. No mais não se cansava; toda a ciência dos negócios, cifrava-a em ter por si o homem, fazendo-lhe como aos meninos se costuma as pequenas vontades.

Quando moço, tinha ele tomado ao sério essa nigromancia apelidada política, e prodigalizara grande soma de talento, de entusiasmo e de atividade, na defesa dos povos contra a prepotência dos governadores. Fora um dos precursores da democracia brasileira, que um século depois devia suscitar o Martins, o Miguelinho e outros mártires pernambucanos.

Nesse fervor dos anos escrevera uma filípica, no gênero de Demóstenes, contra a raça bragantina, o que lhe valeu a ira dos adversários, e o receio dos amigos que temiam-lhe o contágio.

Recebeu a lição e aproveitou-a. Conheceu que os povos, por quem se havia sacrificado, eram animais domésticos: à liberdade preferem o quente aprisco onde os reis os põem à ceva.

Desde então mudou de rumo; passou a. viver nos melhores termos com os governadores, que tinham em grande conta os seus conselhos; pelo que o proveram no cargo de almoxarife, além de outras mercês. Rosnavam os invejosos de um ato de contrição feito a D. Sebastião de Castro. Vinha o boato da mordacidade de um dos tais amigos, que se valem da intimidade para melhor beliscarem: são como os gorgulhos que se metem dentro do grão para lhe roerem a flor.

No físico, não fora a natureza tão liberal com o Costa Araújo como no moral; mas sabia ele dar à sua quadratura um tom apresentável. Se neste século de espiritistas em que se tiram fotografias às almas do outro mundo houvesse curioso que se lembrasse de pintar a estampa de alguma figura de retórica das mais bochechudas, como por exemplo a prosopéia, teríamos o retrato ao vivo do nosso pomposo almoxarife.

A seu lado o Simão Ribas fazia as vezes de um solecismo junto de uma oração de Cícero; e todavia não tinha o almotacé menos engenho que ele, avantajando-se-lhe assaz na cópia dos conhecimentos que havia colhido nas várias províncias literárias; pois era de muito e constante labor, tão versado nos livros quão pouco nos homens.

Tomou o Costa Araújo assento à esquerda do Viana, e depois das urbanidades usuais e de uma anedota contada pelo almoxarife, que apreciava esse acepipe literário, assoou-se o almotacé e temperou a garganta para abrir a conferência:

— Sabem os amigos e companheiros que se está seliamente cuidando no suplemo da cliação da nossa vila do Lecife; mas alguns senholes andam inquietos com a demola e então quiselam que se fizesse uma junta para se avisal no que mais convém e conceltal os meios de aplessal o nosso tliunfo. É pol isso que estamos aqui, cada um dos senholes melcadoles dilá seu palecei; o meu é que devemos confial no suplemo e espelai que a alta sabedolia da govelnação do Estado ploveja como entendel, que há de sel semple pelo melhol.

Compreenderam os circunstantes o sentido da arenga, pois além de muito habituados ao lambdacismo do Simão Ribas, sabiam que suplemo era uma expressão mística para designar o governador, tendo ele por míngua de respeito indicá-lo nominalmente.

Seguiu-se uma pausa formada pela hesitação daqueles que desejavam também dar sua colherada, mas tolhia-os o enleio. Um desses era o marreco do Capitão Miguel Correia Gomes que trazia decorado um farelório do Padre João da Costa, com a intenção de impingi-lo à assembléia, mas agora suava como um caldeirão a ferver.

Havia chegado momentos antes o Vital Rebelo, que apeara-se do cavalo e recostado ao selim ouvira a fala do almotacê. Percebia-se no seu gesto a indiferença que lhe inspiravam essas assembléias, onde se burlava a sinceridade de muitos em proveito da ambição ou comodismo de alguns.

— Como seja lícito a cada um dar seu voto por mais desencontrado que pareça, direi eu o que penso. Esta vila do Recife vai fazer em novembro um ano que El-Rei a criou; e pois que o governador por ele mandado a esta capitania tem deixado de cumprir a carta régia, mostrando-se rebelde, nosso dever de fiéis vassalos é obrigá-lo à obediência que deve a seu príncipe e senhor; e sendo preciso, erigirmos nós, os povos em conselho, o padrão da vila. Se estais por isso, contai comigo; mas das negaças em que andais às voltas com o governador, não entendo, nem quero saber.

O venerando almotacé, que tinha por costume ir todas as tardes ao benedicite em palácio, e que não punha taxa, nem julgava coima, sem levar antes a D. Sebastião de Castro um rascunho para receber a correção do mestre, azoou com aquela insólita linguagem, e apuridou ao Viana que ficara impassível, resguardado como estava contra esses sobressaltos pela espessa crosta de sua pachorra.

O almoxarife, porém, que viu retratada a sua petulância de outrora naquela isenção do mancebo, sorriu-se de um modo significativo, e pensou consigo como aos cinqüenta anos se não havia de espantar o Rebelo de seus arrebatamentos juvenis.

Nisso é que se enganava o Costa Araújo. Homens há, e ele era um, em quem o desengano gera o cepticismo. Em outros, porém, a fé é tão profunda e tão de raiz que não há extirpá-la; não podendo arrancá-la, o que fazem a ingratidão e deslealdade é que, à força de a abalarem, deixam ali uma chaga que se está magoando a cada instante contra as misérias do mundo. Era deste cadinho a alma de Vital.

— Aquilo é despeito! rosnou o Padre João da Costa.

— Como o governador não o fez capitão! ... acrescentou o Miguel Correia , enfunado da sua gineta.

Tomou então a palavra o Doutor Antônio de Sousa Magalhães, que foi um dos letrados de maiores créditos entre os mascates. Era meão de corpo e estatura. Não tinha fisionomia, mas uma cara insossa e desbotada sem a menor expressão. Só num traço reparava-se: era nos olhos pequenos, por causa das pálpebras sem pestanas e debruadas de vermelho que pareciam casas de botões.

Nos primeiros tempos dizia o Magalhães que o seu lote neste mundo o queria em ouro. Com a experiência, porém, foi aprendendo que o ouro é precioso sobretudo pela ductilidade, e conheceu quanto ele se prestava a todos os misteres, à cobiça, à ambição e até à beatice.

Era o nosso advogado um dos que mirravam-se com o desejo de pilharem um lugar na secretaria do governador, mas como a sombra fugia-lhe, inculcava-se de impossível, e não perdia ensejo de rufar a sua abnegação.

Foi insigne beato. Ouvia missa com exemplar devoção, e rezava todo o ofício da Semana Santa ajoelhado, de ripanço em punho; até fazia novenas e terços em casa. Mas a sua carolice não se reduzia a essa parte ascética; freqüentava o refeitório da Madre de Deus nos dias da peixada e apreciava as moquecas e pastelões que lhe mandavam de mimo em salvas de prata os padres Mendicantes do Seráfico São Francisco.

Passou o Dr. Magalhães por grande retórico, e poucos no seu tempo tiveram tanto jeito para engordar essa simpleza do vulgacho, que hoje em dia se decora com o pomposo nome de opinião pública e que melhor se chamaria de pasmaceira pública.

O que distinguia especialmente a facúndia do nosso homem era a entonação com que ele pronunciava as palavras. Essa espécie de eloqüência retumbante tem sido cultivada por outros, mas ninguém ainda levou-lhe a palma. Darei aqui um exemplo de sua força nesse gênero.

Em uma das arengas que ele freqüentemente fazia nas rodas dos mascates contra os nobres de Olinda, querendo pintá-los sob uma face odiosa que produzisse impressão no auditório, exclamou: Vivem atolados no pirão, na rapadura e na cachaça.

Um seu êmulo diria esse rasgo com uma voz estentória capaz de estremecer os alicerces; outros lhe dariam inflexões enfáticas; mas nenhum era capaz de a pronunciar como o Magalhães, percorrendo três escalas cromáticas desde a primeira nota do tiple até a última do baixo profundo.

A frase, começada no nariz, descia-lhe pela garganta aos burburinhos e ia roncar nas profundezas do ventre. Assim, quem o ouvia falar conhecia logo que o homem não só tinha grande papo, embora invisível, como que era insigne ventríloquo.

Quando o Dr. Magalhães e o Padre João da Costa se encontraram pela primeira vez, sentiram-se mutuamente atraídos por uma simpatia irresistível. Agora achavam-se estremecidos; e dizia o reverendo que muito breve haviam de ver o advogado ao serviço do Filipe Uchoa e da gente de Olinda.

Para rebater o alvitre do Rebelo, desfiou o Magalhães uma longa perlenga, cheia dos costumados borborigmos, e arrebicada de uns revirados de olhos com que ele pretendia dar à feição insulsa umas borradelas de ironia. Ao cabo, passada toda essa loqüela por um cantil, não ficava senão o bagaço do que havia dito o Simão Ribas.

Assim o venerando almotacé aplaudiu; o Viana remexeu os ombros, o que nele era sinal de grande comoção, e o Costa Araújo fez com a cabeça um gesto gongórico de aprovação.

Aqui terminou a junta, com o maior desprazer do Miguel Correia que foi obrigado a embuchar a perlenga, e do Campelo que não sofria lhe disputassem a glória de incensar o governador, cujo panegírico já tinha escrito, bem longe de pensar que teria de cantar-lhe a palinódia.

Vital Rebelo fora-se, e com ele a maior parte dos que tinham acudido ao convite. Nada se resolvera, mas era esse precisamente, e não outro, o fim da junta que se fizera para acalentar as impaciências de alguns sôfregos e exagerados. Falara o almotacé que todos sabiam da privança de D. Sebastião; e os mais exigentes voltavam satisfeitos.

Reduzida a roda aos íntimos, tornou-se geral a palestra, travando-se os colóquios a trecho.

— Eu cá, disse o Campelo, do governador não suspeito, não; mas o Barbosa de Lima não é homem em quem se possa a gente fiar.

— E o tal ajudante, que me tem cara de coveiro? E com certeza o é, que ainda se não meteu em empresa que a não desandasse, acudiu o Brás da Silva.

— Está muito atrasado o Campelo! acudiu o Padre João da Costa a rir. Pois o Barbosa de Lima é o que D. Sebastião quiser; que o seu grande talento é este de ser todos, menos ele próprio, que nunca o soube, nem pôde.

— É a pura verdade, acudiu o Miguel Correia, que tinha por devoção apoiar o seu confessor e amigo.

— E senão vejam, continuou o reverendo: o que disse o Padre Leitão domingo passado quando pregou na festa de N. Senhora do Rosário?

— O que foi então? perguntou o Seara.

— Que o secretário tão fácil qual Lucano se encarecia, como qual Proteu se fingia e transformava.

Parece que deu-lhe no goto ao Padre Antônio Gonçalves Leitão a frase, pois ela se encontra textualmente na história da Guerra dos Mascates quando fala do Capitão Barbosa de Lima, querendo aludir ao ouro dos mascates de que a inveja e a maledicência o diziam cosido, bem como á versatilidade de gênio.

É achaque este de todos os tempos, que são os amigos quem primeiro e com maior empenho se incumbem de dar voga aos aleives e epigramas dos contrários. Assim, não trazia o Cosme Borralho, de Olinda, nenhum desaforo contra este ou aquele dos mascates, para o insinuar à esconsa no ouvido de alguns dos seus fregueses, que à noite não tivesse corrido todo o Recife.

Interviera no diálogo o Zacarias de Brito:

— Pois para mim, o Capitão Barbosa de Lima é homem de muito conceito que vale o seu peso, e não só para mim como para todo o Recite.

— Ninguém diz o contrário, observou o Campelo, ressalvando em tempo o destempero da língua.

— Por certo. Quem o nega? acudiu o Miguel Correia.

— Esses mexericos que por aí andam, donde vêm senão da raiva que têm os de Olinda de o haver perdido, sem contar a inveja de outros que não podem sofrer as suas boas partes?

Este Senhor Zacarias de Brito, seja aqui dito entre parênteses, queria ser contratador do sal, boa fatia que esperava arranjar.

Não havia naquele tempo a maquia dos agenciamentos de voluntários e privilégios lucrativos, com que os ajudantes de um governador-filósofo recompensassem os obséquios do amigo, as carícias de alguma bela dama, e a paciência dos camaradas impertinentes; mas já então existiam os estancos e monopólios com que se esfomeava o povo para enricar aos mimosos da terra.

Nenhum dos circunstantes fizera reparo em uma velha de mantilha, que desde o começo da palestra levara a passar pela frente da casa do Viana, quando não se escondia no canto do outão. Embora não tivesse a conferência cousa de comprometer, tanto que a faziam na calçada, todavia se percebessem o manejo da sujeita, é de crer que não consentiriam nessa bisbilhotagem.

Cansada de espreitar, a velha deitou-se a trote miúdo para as bandas do Corpo Santo e foi ter a uma rótula, onde aparecia a mais emaranhada grenha que já lastrou em cabeça de mulher. A dona deste cipoal mal se podia conter à gelosia; pois lhe estavam saindo a língua e as melenas pelas grades e o corpo pela adufa.

— Deus me perdoe! Querem ver que foi esta excomungada que se alambazou com a minha mantilha! Ladra do inferno! Espera que eu te ensino!

Proferindo esta praga, a sujeita que deitara os gadanhos ao pescoço da velha puxou-a para dentro onde, com espanto seu, desembrulhou-se da mantilha a cara velhaca do nosso muito conhecido Cosme Borralho.

— Eu logo vi que eram artes deste peralta! Que anda você fazendo por aí com a minha mantilha?

— Nada; foi para divertir-me com os rapazes.

— E por causa das suas brejeiradas me deixa aqui presa quando me estão esperando na casa da Rosaura a que prometi não faltar! Ai que não sei onde estou, marotinho, que te não arranco esses olhos de cabra morta!

— Ora, não se zangue, prima Inacinha, disse o Cosme com ar magano, que eu tenho um segredinho para lhe contar.

— De Olinda? perguntou a Inácia em cócegas. O que é?

— Escute!

Conchegaram-se os dois a um canto, e pôs-se o Cosme a cochichar no ouvido da prima, que estava num formigueiro com a pressa de ir-se ao serão ajustado, e o prazer da novidade que levava.

Acompanhara o gaguinho o tal segredo de um acionado original, e de uns requebros de corpo, com que se enroscava pela Inacinha, a qual não se agastava com essas licenças oratórias do escrevente.

Acabou o Cosme dando à prima um papelinho, que ela meteu no cabeção e traspassando a mantilha, enfiou pela porta fora, como galinha poedeira à cata do ninho onde largue o ovo.