CAPITULO XIV.
Molestias dos gados.
Depois da doença da sua familia nada affecta e prejudica tanto o lavrador como a doença dos seus gados.
2135. A saude dos animaes domesticos póde alterar-se como a do homem. As enfermidades daquelles seres são, como as nossas, lesões mais ou menos profundas do organismo. Se as leis da vida, a fabrica dos orgãos, e o mechanismo das funcções nos fossem cabalmente conhecidas em todas as suas relações, as enfermidades, que não são mais do que um resultado das alterações organicas ou funccionaes, poderiam ser perfeitamente apreciadas, e por consequencia racionalmente prevenidas ou curadas.
2136. A vaga incerteza, em que os medicos fluctuam com respeito ás causas e á natureza de muitas enfermidades humanas, revela-nos qual será a obscuridade com que os veterinarios devem luctar na determinação e curativo das enfermidades dos animaes. Na impossibilidade em que estes brutos se acham de nos exprimirem os seus soffrimentos, como poderemos nós descobrir a maior parte dos symptomas morbosos, e determinar a natureza das molestias? Pouca reflexão é necessaria para conhecer que em muitos casos esta determinação deve de ser impossivel, e n'outros muito difficil ou problematica; e que por tanto toda a prudencia e circumspecção será sempre pouca na applicação dos remedios heroicos. É com tudo indubitavel que existem molestias externas, que são perfeitamente conhecidas, e algumas internas, que se manifestam por symptomas apreciaveis e constantes, contra as quaes se póde empregar um curativo reconhecidamente racional e proveitoso; e é nestas molestias que a veterinaria póde alcançar um evidente triumpho.
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2137. Nas doenças dos animaes devemos ter grande confiança nas medicações e exforços tutelares da natureza. - O veterinario, ainda mais do que o medico, deve ser o seu interprete, e o seu ministro. Elle deve primeiro que tudo exforçar-se por dirigir e auxiliar a acção protectora das forças vivas, abstendo-se nos casos problematicos e obscuros de empregar remedios activos, que podem ou entorpecer e contrariar aquella acção, ou infundir no organismo uma nova causa de doença.
2138. Deduz-se do que levamos ponderado: 1.º que o tratamento das molestias dos animaes deve ser nos casos duvidosos, ou paliativo, ou apenas symptomatico; isto é, deve propor-se ou a paliar, ou a combater os symptomas; 2.º que deve ser mais hygienico do que medicinal, consistindo antes no emprego de um bom regimen, do repouso, e da dieta do que na applicação de remedios activos; 3.º finalmente que devemos procurar preservar os animaes das molestias, desviando quanto fôr possivel a acção das suas causas, quer proximas, quer remotas, e empregando contra ellas os meios preventivos, tanto geraes, como especiaes, quaes são o aceio já nos individuos, já nos curraes, uma boa alimentação, o agasalho, o ar puro e livre, e geralmente todos os preceitos de uma boa hygiene.
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2139. As medicações mais usadas na arte de curar os animaes são a purgante, a antiphlogistica, a emoliente, a excitante, a revulsiva, e a especifica.
2140. O escasso numero de veterinarios existentes em o nosso paiz, e a falta quasi absoluta delles nas aldêas, e nos campos obrigam os nossos cultivadores ou a recorrer a pessoas que se dizem entendidas no curativo das molestias dos gados, ou a alcançarem elles mesmos alguns conhecimentos tendentes a este fim.
2141. As taes pessoas que se dizem entendidas, entendem em geral muito pouco desta difficil sciencia; e se não fosse a natureza, que tem muitas vezes força não só para triumphar da acção da molestia, mas tambem da acção ainda mais desorganisadora dos remedios, estes charlatães, mais brutos do que as suas victimas, seriam monteados nos campos como os lobos nas serras. Por humanidade, e por interesse proprio devem os agricultores fugir de entregar os seus gados, que são o melhor da sua fazenda, a estes impostores, que tão barbaramente abusam da sua credulidade. Quando ignorarem o que hão-de fazer, é melhor não fazer nada. O descanço e a dieta são então (e quasi sempre) excellentes remedios.
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2142. Bem quizeramos nós poder apresentar-lhes aqui principios seguros, que podessem guial-os na arte complicada de curar os animaes; mas além da grande difficuldade do objecto e da nossa insufficiencia para o tratar com desempenho, somos ainda constrangidos pela natureza do nosso trabalho a contrahir-nos a um pequeno numero de enfermidades e de idéas. (*)
Molestias communs á maior parte dos gados.
2143. Feridas. Chama-se ferida toda a solução de continuidade, feita nas partes molles por uma causa mechanica qualquer. Podem as feridas ser feitas por instrumentos cortantes, perfurantes, e contundentes. Nestas molestias figuram como mais graves as feridas de armas de fogo; as que interessam orgãos, vasos, ou nervos importantes; as que são acompanhadas de grandes perdas de substancia, e as venenosas.
(*) Desejando tratar esta parte da nossa obra util e conscienciosamente, haviamos colhido um grande numero de factos de alguns cultivadores esclarecidos, a quem cousultámos, e copiosos esclarecimentos praticos dos tres habeis professores da Escola Veterinaria, os Srs. Lapa, Lima, e Teixeira (aos quaes muito folgamos de poder manifestar nesta occasião a expressão da nossa estima, e do nosso agradecimento); e munidos destes elementos, e dos que nos foram fornecidos pela lição e meditação das melhores obras de veterinaria, conseguimos coordenar um resumido trabalho sobre as principaes molestias dos gados; mas a grande extensão, que a pedido de alguns dos nossos leitores, demos á parte, propriamente agricola da nossa obra, nos tolhe de inserir todo o nosso trabalho no Manual do Cultivador, reservando-o para ser publicado opportunamente se as pezadas e variadissimas occupações do nosso magisterio nol-o permiltirem.
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O tratamento geral das feridas consiste na sua lavagem com agoa fria; na ligadura dos grossos vazos quando acontece serem interessados, a fim de evitar as hemorragias; na extracção dos corpos estranhos; e na união das superficies cortadas: feito isto, e subtrahida a ferida ao contacto do ar por um apparelho adequado, deve esperar-se o curativo por adhesão immediata, operada a favor de uma ligeira inflammação das superficies lezadas. Este processo natural póde ser contrariado por uma inflammação excessiva que obsta fortemente ao trabalho da cicatrisação, produzindo uma supuração consideravel; neste caso convem as emissões sanguineas, e a applicação de cataplasmas, ou de cozimentos emolientes, como são os de malvas, parietaria, linhaça, &c.
Se a ferida fôr proveniente de mordedura de animal venenoso, deve logo ser cauterisada ou pelo ferro candente, ou pelo ammoniaco liquido, tratando-se depois como qualquer outra ferida simples. Quando a ferida fôr feita por animal damnado, evita-se a raiva, ou a hydrophobia, lavando desde logo a ferida, e cauterisando-a pelo ferro em braza, ou pela manteiga de antimonio, e promovendo em seguida uma contínua supuração durante 30 a 50 dias, por meio do balsamo de Arceu, ou de qualquer unguento excitante.
2144. Sarna. Molestia cutanea e contagiosa devida á presença de um pequeno insecto do genero acarus, cuja picadura produz vesiculas acompanhadas de grande comichão, e que contém um liquido viscoso. Apresenta-se geralmente no pescoço dos cavallos, e no dorso e garupa dos carneiros.
Causas. A falta de aceio, a má alimentação, as intemperies atmosphericas, e a transmissão por contagio.
Symptomas. Comichão augmentando de noite com o calor das cavalhariças, ou dos curraes, queda do pello, apparecimento das vesiculas, que se transformam em pustulas, e que abrindo-se dão sahida a um liquido espesso. Este liquido condensando-se fórma crustas delgadas e pouco adherentes.
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Tratamento. Fricções por espaço de alguns dias sobre as partes affectadas, com a pomada de enxofre, que resulta da incorporação de uma parte de figado de enxofre com quatro partes de banha de porco. Passam tambem por excellentes remedios a pomada de Helmerich, a pomada mercurial, e a pomada antipsorica. Depois das fricções com estas pomadas devem lavar-se as partes affectadas com cozimentos de alecrim, de fumaria, de losna, &c.
2145. Carbunculo ou anthraz. Esta molestia que ataca todos os animaes, mas principalmente os herbivoros apresenta tres principaes variedades; a saber, o carbunculo simples que não é contagioso, o carbunculo pestilencial que o é, e que vem sempre acompanhado de tremor, de febre, e de grande abatimento, e o carbunculo glossanthraz, que se manifesta debaixo da fórma de umas bexigas palidas, lividas, e por fim anegradas, que se formam debaixo da lingua, ou se estendem rapidamente pela sua superficie ou pela parte interna do labio inferior. Nesta enfermidade o animal apresenta grande depressão e tristeza, os olhos lagrimijantes, intorpecimento dos sentidos, e febre.
O carbunculo simples, e o pestilencial, ou epizootico apresentam caracteres diversos, segundo a especie dos animaes atacados. No cavallo, e no jumento annuncia-se por um pequeno tumor circumscripto, resistente, e da grossura de uma fava; no boi tambem por um tumor, que tem a fórma e a grandeza de uma noz; e no carneiro finalmente por um tumor duro, de fórma variavel, que apresenta um ponto anegrado no centro. Estes lumores adquirem promptamente um grande desenvolvimento, e é necessario tratal-os incessantemente para evitar a gangrena, que é a sua natural terminação, particularmente nos pestilenciaes, que são quasi sempre symptomas de uma febre maligna, ou typhoide. O tratamento consiste na extirpação do tumor, na sua cauterisação, na lavagem com a agoa de Javelle, e no emprego interno dos cozimentos antiputridos, como os da quina, da valeriana, &c. O tratamento do glossanthraz, muito commum no gado cavallar e vaccum, consiste em despedaçar as bexigas da bocca, e laval-as promptamente com acido sulphurico diluido em um triplicado volume de agoa, ou com vinagre forte, excitando depois a salivação por um corpo estranho, como o pó do carvão, as folhas seccas do tabaco, &c. Deve evitar-se que o animal beba para que não morra immediatamente. A separação dos animaes doentes dos sãos, tanto no carbunculo pestilencial, como no glossanthraz é indispensavel por serem estas enfermidades eminentemente contagiosas.
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2146. Tetano (espasmo, mal de veado). Esta molestia consiste na contracção permanente e involuntaria dos musculos, e particularmente dos extensores; contracção que póde affectar ou todo o apparelho muscular da vida animal, ou sómente os musculos de uma ou outra região.
Symptomas. O tetano começa ordinariamente pela contracção espasmodica dos musculos do colo, e das maxilas, que por fim não podem separar-se uma da outra; pouco e pouco o espasmo ganha os musculos visinhos, e vai progressivamente generalisando-se; a pupilla apparece muito dilatada, a vista fixa, as orelhas immoveis, e a respiração laboriosa. Progredindo a molestia, o animal enfraquece, cahe por terra, o pulso apresenta-se irregular, manifestam-se suores frios, e a morte vem no fim deste cortejo de symptomas.
Tratamento. Entre os muitos remedios que tem sido propostos contra esta molestia, os que gozam de mais alguma reputação são os seguintes - a sangria copiosa, os banhos, e as embrocações de agoa tepida, os sudorificos, e os narcoticos, principalmente o opio. Mas o tetano é uma dessas enfermidades terriveis que fazem a vergonha dos homens que se dedicam á arte de curar.
Molestias do gado vaccum.
2147. Hematuria (ourinas sanguineas, fluxo de sangue). A hematuria provém quasi sempre de uma affecção inflammatoria do apparelho urinario, e com particularidade dos rins. É por isso que muitas vezes a consideram antes como symptoma do que como molestia. Consiste n'uma emissão frequente de ourinas sanguinolentas, tendo por causas as grandes fadigas, os intensos calores, e a ingestão copiosa das folhas recentes das arvores, e principalmente das summidades e das gemmas do carvalho.
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Symptomas. Abatimento, tristeza, fastio, frequencia de pulso, sensibilidade na espinha e nos lombos, palidez das membranas mucosas, e emissões frequentes de ourinas sanguineas. No fim de 4 a 6 dias perda completa de appetite, suspensão da ruminação, prostração excessiva, decubito permanente, e morte, se a enfermidade não é atalhada.
Tratamento. No começo da molestia, quando a febre e os symptomas inflammatorios apresentam grande intensidade, applicam-se duas ou tres pequenas sangrias, beberagens de um cozimento de sementes de linho ligeiramente nitrado, saccos emolientes sobre os rins, agazalho, e uma dieta severa - apenas algumas farelladas. Se a molestia se achar, porém, no seu ultimo periodo, convem dar alguns sudorificos, posto que então quasi todos os remedios são infructuosos.
2148. Tympanite (meteorisação, mal de empanturrado, rez aventada, entourida). Esta molestia peculiar dos animaes herbivoros consiste n'uma indigestão acompanhada de desenvolvimento de gaz acido carbonico no canal digestivo, e da dilatação do ventre que, com a grande tensão que adquire, resoa, quando batido, como um tambor. É muito mais commum nos ruminantes do que nos outros animaes herbivoros, e entre os primeiros frequentissima no gado vaccum.
2149. A tympanite póde ser aguda ou chronica. A primeira, cuja discripção vamos apresentar, acompanha-se de uma invasão, e terminação tão rapida, que importa oppor-lhe um prompto tratamento.
Symptomas. Accumulação de gazes no canal digestivo, e com particularidade na pansa, logo depois da ingestão de forragens verdes, principalmente da luzerna, e trevo recemcortados e rociados, ou dos orvalhos, ou da agoa da chuva. O ventre começa por entumecer-se, e com particularidade o lado esquerdo: o meteorismo vai rapidamente progredindo; e o animal ameaçado de suffocação estende o pescoço, abre a bocca, dilata as ventas, respira anceado, dá profundos gemidos, fica em grande prostração, quasi sem pulso, e proximo a asphyxiar-se, se não lhe acodem com prompto remedio. Estes symptomas succedem-se muitas vezes com tal rapidez que em 4 a 6 horas o animal chega ás vezes a perecer no meio de convulsões e agonias atrozes.
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Tratamento. O tratamento consiste na applicação de remedios absorventes dos gazes; sendo por isso que se tem empregado com algum proveito a agoa salgada, a de sabão, e a da barrella. Mas o remedio mais efficaz é o ammoniaco, na doze de meia a uma onça, em duas libras de agoa fria para os bois, e de meia oitava em quatro onças de agoa para os carneiros. Estas dozes dão-se de hora a hora, e repetem-se oito a doze vezes. É preconisada tambem como remedio efficassissimo a agoa de Javelle, na dóze de meia onça, diluida n'uma garrafa de lexivia de cinzas. Esta dóze repete-se segundo a necessidade. Finalmente emprega-se a puncção nos casos mais urgentes, e desesperados, praticando-a com o trocate no meio do vazio esquerdo, deixando ahi a bainha do instrumento para que os gazes tenham franca sahida. Tambem esta operação se póde praticar com uma navalha de ponta bem afiada, introduzindo pela ferida um canudo de sabugo. E em qualquer dos casos, depois de evacuados os gazes, e de tirada a bainha do trocate, ou o canudo, unem-se os labios da ferida por um ou mais pontos, a fim de obter a cicatrisação, que se consegue dentro de pouco tempo. É preciso, porém, que durante este trabalho morbido só seja a rez alimentada com beberagens de farinha.
A tympanite chronica é de uma cura mais difficil. Nesta molestia o meteorismo não é tão forte, mas é muito frequente; o appetite torna-se irregular e depravado; a ruminação é lenta e imperfeita, os excrementos seccos, carregados de côr, e de um cheiro forte - a pelle e o focinho tornam-se seccos, e o animal emagrece; por fim todos estes symptomas engravecem, a meteorisação torna-se quasi contínua, e o animal perece. A causa desta molestia não consistindo sómente no meteorismo, mas tambem no amontoamento dos alimentos no entrefolho, e no estado inflammatorio deste sacco alimentar, e dos mais orgãos digestivos, é necessario não só fazer a puncção na pança, e deixar ahi o tubo do trocate por longo tempo, mas tambem administrar abundantes bebidas adoçantes e mucilaginosas. Mas sendo muito difficil obter a cura desta molestia, o melhor partido a tomar é o sacrificio do animal para lhe utilisar alguns dos seus despojos.
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2150. Splenite (baceira). Consiste esta enfermidade na inflammação e obstrucção do baço; e ataca as rezes que pastorêam, e principalmente as que pernoitam nos sitios sazonaticos e pantanosos, sendo por isso mais frequente nas nossas provincias do sul do que nas do norte. Temos observado por vezes esta molestia, e estamos persuadidos que é ou causa, ou effeito de febres periodicas - sendo por isso muito similhante ás hepertrophias de baço, que são umas vezes principio, e outras consequencia das febres intermittentes. Á baceira acompanhada de empachamentos, e grande volume de ventre, chamam-lhe verde, ou simples; e á que não apresenta estas circumstancias, chamam-lhe secca ou complicada. Esta molestia assume muitas vezes um caracter muito grave, e torna-se então epidemica ou epizootica, causando grande mortandade nos gados.
Symptomas. Elevação, e entumecimento do ventre para o lado da aba esquerda, ou do vazio. Som macisso, dureza, e sentimento sobre esta parte, ruminação difficil, constipação de ventre, dureza dos excrementos, prizão dos movimentos da perna esquerda. - São estes os signaes diagnosticos da splenite simples, ou da baceira verde; os da splenite complicada, ou baceira secca, que parece ser um periodo mais adiantado da primeira, são os mesmos, mas sem tão grande elevação e entumecimento do vazio esquerdo, que se apresenta todavia mais doloroso. Além disto a rez manifesta grande tristeza, prostração, febre, e sede intensa. Os signaes da splenite epizootica e maligna, são além dos indicados, abatimento extremo, respiração difficil, pulso intermittente, accessos de calor e de frio, e pustulas e bubões pelo corpo, como nas intermittentes perniciosas que atacam a especie humana.
Tratamento. Na splenite simples deve sangrar-se largamente, tirando de 12 a 18 libras de sangue; deve empregar-se o tratamento emoliente e refrigerante, dando beberagens feitas com cozimentos de malvas, de verbasco, de parietaria, e de semeas; e devem finalmente applicar-se cataplasmas de farinha de linhaça, e panos ensopados em agoa e vinagre sobre a região affecta. Na complicada este mesmo tratamento em maior escala, dando de hora a hora as beberagens indicadas, e um cozimento de cevada para mitigar a sede quasi inextinguivel da rez, e finalmente as applicações revulsivas no lado affecto, conhecidas pelo nome de sarjas de fogo. Na gangrenosa devem tambem applicar-se as sarjas de fogo, e fortes decocções de quina e de casca de salgueiro branco; posto que esta enfermidade seja quasi sempre lethal.
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2151. Nuvem ou unha no olho (unheiro, farpão). Esta molestia consiste n'uma ophtalmia, que se acompanha de uma membrana mais ou menos opaca, similhante a uma têa de aranha, que se dirige dos cantos do olho para a pupilla, a qual chega a cobrir; privando o animal da vista, e causando-lhe grandes dores, e uma abundante secreção lacrimal. Ataca endemicamente muitas rezes do mesmo rebanho, produzindo a cegueira em algumas dellas. Nós tivemos logar de observar esta enfermidade no verão passado em um rebanho de turinas que introduzimos no districto de Portalegre com o fim de ahi fabricar manteigas; e então notámos que foram quasi simultaneamente atacadas muitas vaccas e bezerros, uma das quaes ficou quasi privada da vista, restabelecendo-se todas as mais. Conjecturámos que a molestia nascia de picadellas de insectos, que produziam a inflammação, e depois della o unheiro.
Tratamento. Tem-se aconselhado contra esta enfermidade os pós de casco de ciba e as sangrias; mas este tratamento não apresenta vantagens algumas. O tratamento radical, e por certo efficaz, consiste na extirpação da nevoa, o que se obtem facilmente collocando sobre ella uma pequena moeda de cobre, ou de prata, puxando com uma pinsa um dos bordos da nevoa para cima da moeda, passando depois uma agulha com um fio de seda atravez do mesmo borde, a fim de segurar a têa, e levantando-a ligeiramente para a cortar de redor com as pontas de uma tisoura fina. Feito isto, lava-se o olho com agoa ligeiramente alcoolisada, e consegue-se deste modo a cura.
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2152. Phthisica tuberculosa. Esta enfermidade tem grande semelhança com a molestia do mesmo nome, que ataca a especie humana. Começa por uma pneumonia, ou inflammação pulmonar, que assume o caracter chronico, e acaba finalmente por uma degeneração tuberculosa; isto é, pela formação e fusão de tuberculos no tecido do bofe. A sua marcha é lenta, e conduz pouco e pouco os animaes ao ultimo gráu de consumpção. Ataca de preferencia as vaccas leiteiras, e as rezes que vivem constantemente no estabulo.
Symptomas. Na primeira epoca da molestia; tosse secca, rouca, frequente, e pouco forte; magreza geral, sem perda de appetite; cançaço depois de qualquer exercicio, por pouco violento que seja. N'uma epoca mais avançada diminuição da secreção leitosa; respiração anhelosa e difficil; tosse muito frequente, tristeza, abatimento extremo, arripios, febre contínua, marasmo, e morte.
Quando a molestia se acha n'um certo gráu de desenvolvimento suppõe-se quasi impossivel a sua cura. No começo, porém, da sua marcha podem aproveitar muito as beberagens de farellos, o uso das batatas, das betarrabas, e de quaesquer outros alimentos sacharinos e feculentos, a mudança de habitação e de lugar, a alimentação na pastoria, o agasalho, e a limpeza dos estabulos. Importa tambem, durante o tratamento, ordenhar pouco as vaccas, por isso que a abundancia da excreção leitosa é a causa principal desta molestia.
Molestias do gado lanigero.
2153. Morrinha, ou gafeira. Esta molestia, eminentemente contagiosa, é uma febre eruptiva, cujas causas occasionaes são ainda ignoradas, posto que pareçam ligar-se a uma certa constituição atmospherica. Manifesta-se pelo apparecimento de botões e pustulas mais ou menos grossas e aproximadas umas das outras, que nascem sobre aquellas partes do animal, que ou são nuas, ou pouco revestidas de lã, como o focinho, as tetas, a cabeça, as verilhas, e o ventre. Apresenta a morrinha quatro periodos diversos, que são o da incubação ou da invasão, o da erupção, o da suppuração, e o da dessecação.
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Symptomas. São diversos nos diversos periodos da molestia. No primeiro, ou no da incubação, que dura ordinariamente quatro dias, apresenta-se o animal triste e abatido, marchando vagarosa e difficilmente, com a cabeça baixa e mettida entre as mãos; sem appetite, e com alguma febre - na passagem, porém, do primeiro para o segundo periodo todos estes symptomas augmentam, a febre torna-se mais intensa, a respiração mais anhelosa, o que se conhece pelo frequente arquejar das ilhargas, e pelas rapidas pulsações do coração. No segundo periodo apparece a erupção dos botões, que preludia pela vermelhidão dos olhos, pela sede, e calor da pelle, e por uma grande prostração: os botões começam por pequenas manchas violaceas, que se elevam e engrossam progressivamente desde o tamanho de um grão de cevada até ao de uma moeda de seis vintens: estes botões elevam pouco e pouco os seus bordos, e achatam-se e deprimem-se no centro. Este periodo dura ordinariamente cinco dias, desapparecendo quasi sempre a febre durante as ultimas quarenta e oito horas. Começa então o terceiro periodo, ou o da suppuração, que se annuncia de novo por febre, perda de appetite, e abatimento. As pustulas tornam-se então brancas, formando-se no seu interior uma serosidade russa e transparente. Esta serosidade constitue um virus que, applicado ou inoculado a qualquer animal são, produz a morrinha, posto que mais benigna. Cinco dias depois apparece o quarto periodo, ou o da dessecação. As pustulas formam então uma crista, e destacam-se pouco e pouco umas apoz das outras. É depois desta dessecação que o animal, desembaraçado da molestia, recobra a alegria e o appetite.
Estes são pois os symptomas da morrinha regular: os da irregular são os mesmos, posto que mais graves, por serem acompanhados de um evidente caracter maligno. Conhece-se que a morrinha tem este caracter não só por uma abundante secreção salivar, e por um fluxo nasal espesso, sanguinolento, e fetido, mas tambem porque os olhos e a cabeça incham, e porque os botões, nascendo mui proximos uns dos outros, tornam-se confluentes, e formam pustulas muito extensas, corrosivas, e profundas.
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Tratamento. O tratamento da morrinha regular, ou benigna, é muito simples, por isso que esta enfermidade é quasi sempre debellada pelas proprias forças vitaes. Devem-se desviar todas as causas que podem embaraçar o natural andamento da molestia; deve pôr-se o gado doente em dieta, dando-lhe bom feno e raizes carnosas salpicadas de sal; deve ficar em agasalho em curraes seccos e bem limpos, e finalmente devem ministrar-se-lhe algumas infusões de flor de sabugueiro quentes, adoçadas com mel, a fim de promover a transpiração. O tratamento da morrinha irregular ou maligna deve ser mais energico. É mister facilitar desde logo a erupção por meio de tisanas tepidas de semente de linho, de malvas, e de violetas ligeiramente adoçadas; importa depois disto, no começo da suppuração, levantar as forças, administrando alguns tonicos, como, por exemplo, infusões de genciana e almeirão, misturadas com uma sexta parte de bom vinho; e no fim deste periodo applicar algumas infusões aromaticas, como chás de losna, de macella, e de folhas de larangeira aromatisadas com uma agoa espirituosa qualquer, ou com uma oitava parte de agoardente. Tem-se aconselhado tambem agoa ferrea por bebida ordinaria, e a abertura de um sedenho no peito como um poderoso revulsivo.
2154. Apoplexia cerebral (golpe de sangue subido á cabeça, &c.) Esta molestia torna-se notavel e temivel pela sua subita invasão, pela rapidez da sua marcha, e pela promptidão com que mata o gado que é por ella atacado.
Causas. Intensos calores, seccas prolongadas, grande gordura, plethora, saude vigorosa, alimentos muito substanciosos.
Symptomas. O animal, que parece gozar de uma saude robusta, pára e estaca de repente, baquêa por terra, estrabuxa, respira com anciedade, e dentro de meia hora morre, lançando pela bocca muito sangue anegrado. Dissectado depois da morte, apresenta o baço volumoso e injectado de sangue, as carnes arroxadas, os vasos da pelle engorgitados, assim como os olhos e o cerebro.
Tratamento. A sangria é o principal remedio contra esta enfermidade; mas cumpre pratical-a sem demora nas duas veias que estão proximas dos olhos, ou no ramo da veia saphena, que passa sobre o jarrete. Tem-se tambem preconisado não só como remedio curativo, mas tambem como preservativo, os banhos d'agoa fria e corrente. Depois de restabelecido o animal convem dar-lhe por bebida ordinaria agoa em que se tenha dissolvido a porção de caparosa necessaria para lhe dar o gosto da agoa ferrea.
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2157. Amarilha ou podridão. Esta molestia consiste n'uma affecção profunda das visceras abdominaes, e principalmente do figado, complicada no seu periodo mais adiantado com um estado de hydropisia de ventre.
Causas. Pastoria em logares frios e pantanosos, chuvas e nevoas prolongadas, pastagens humidas.
Symptomas. Tristeza, ruminação lenta e trabalhosa, cabeça cahida para o chão, membrana mucosa, que reveste a bocca e as palpebras, desmaiada; e n'uma epoca mais avançada fluctuação de um deposito de sorosidades no ventre, marasmo, queda espontanea da lã; apparecimento, junto a tarde, de um tumor aquoso por baixo da queixada inferior, que se desfaz durante a noite. Abrindo-se o cadaver encontra-se o figado, e ás vezes tambem o bofe, desorganisado e em putrefacção. A marcha desta molestia é lenta. Ella ataca endemica e epizooticamente os rebanhos.
Tratamento. Logo que apparecem os primeiros symptomas daremos aos animaes atacados a agoa de caparosa que atraz indicámos, e além disto tisanas aromaticas de bagas de zimbro, de salva, e de genciana, na dóze de meio quartilho tres vezes por dia. Tambem se tem aconselhado pequenas porções de vinho branco na dóze de quatro onças, duas a quatro vezes por dia. As summidades do esparto verde tem sido consideradas como um excellente remedio, assim como o uso do sal commum, quer nas farelladas, quer nas beberagens. Tudo isto, porém, deve ser applicado no começo da molestia, porque se a deixarmos avançar será inutil qualquer applicação que contra ella dirigirmos. É preciso mudar os rebanhos de logar, transferindo-os para sitios altos e seccos. Convem tambem separar os doentes dos sãos para se submetterem aquelles a um regimen mais appropriado.