Ha uma Gota de Sangue em Cada Poema/Os Carnivoros
Os Carnívoros
Quando a paz vier de novo, nova e franca,
passar nestas estradas e caminhos,
novas aves talvez e novos ninhos
hão-de agitar-se pela manhã branca...
Novos ventos virão da serra,
húmidos, rindo-se, esfuziar no prado;
e novamente, regoando a terra,
ir-se ha, rangindo, o arado...
Pouco tempo depois, pela estrada, os viandantes
verão, cobrindo os campos marginais,
os brocados trementes, ampliondeantes,
as roupagens custosas dos trigais...
Virão novas colheitas,
virão risadas a remir fadigas,
virão manhãs de acordar cedo,
virão as tardes feitas
de conversas á sombra do arvoredo,
virão as noites de bailados e cantigas!...
Toda a população ir-se-á nos vales
colher o trigo novo e lourejante;
e, na pressa afanosa, bem distante
lhe passará da idea tanta luta,
tantos passados males!
Pêlo campo ceifado, á Avê-Maria,
na tarde enxuta
e fria,
enquanto o vento remurmura, meigo e brando,
mulheres de Millet, robustas e curvadas,
irão glanando, irão glanando...
Tudo será colheita e riso. – Então,
depois de tantas fomes e misérias,
de tantas alegrias apagadas,
de tantas raivas deletérias,
os celeiros de novo se encherão.
Mas o trigo abastoso dos celeiros
relembrará o sangue, a vida,
os penosos momentos derradeiros
duma geração toda destruida...
Olhai! hoje o trigal é mais verde e mais forte!
O chão foi adubado a carne e sangue...
Que importa haja caido um exército exangue,
se deu a vida ao trigo tanta morte!
Êste é o trigo que é pão e alento!
Vós que matastes com luxúria e sanha,
vinde buscar o prêmio: é o alimento...
Ei-lo: em raudal, em nuvem, em montanha!
Este é o trigo que nutre e revigora!
É para todos! Basta abrir as mãos!
Vinde buscá-lo!... – Vamos ver agora,
quem comerá a carne dos irmãos!