Hamlet: drama em cinco actos/Acto primeiro/Cena II
Entram o REI e a sua comitiva, a RAINHA, HAMLET, POLONIO, LAERTE, VOLTIMANDO, CORNELIO e CORTEZÃOS
A morte de Hamlet, nosso amado irmão, ainda é tão recente, que pareceria justo, que nossos corações estivessem immersos na tristeza e saudade, e que uma nuvem de dor cobrisse o solo d'este reino; comtudo, a rasão combateu os impulsos da natureza, tanto que enfreámos a nossa dor, e embora ainda esteja bem viva a recordação, pensâmos tambem em nós. Portanto, com um prazer incompleto, confundindo os sorrisos com as lagrimas, a alegria com o luto; unindo o dobrar dos sinos aos canticos nupciaes, tomámos por esposa aquella que outr'ora era nossa irmã, e fizemol-a compartir comnosco a corôa d'este bellicoso paiz. N'esta conjunctura ouvimos primeiro os vossos illustrados conselhos, livremente enunciados. Somos-lhes gratos. Quanto ao joven Fortimbraz, fazendo seguramente uma fraca idéa do nosso poder, ou imaginando que a morte de nosso chorado irmão lançasse o estado na dissolução e na anarchia, embalando-se em chimerica esperança, ousou mandar-nos mensagem após mensagem, intimando-nos a restituir-lhe o territorio perdido por seu pae, e legalmente adquirido por nosso valoroso irmão; isto por o que lhe respeita. Fallemos agora de nós e do motivo d'esta reunião. O motivo é este. Pelas presentes escrevemos ao rei de Noruega, tio do joven Fortimbraz, que jazendo enfermo n'um leito, mal conhece os projectos de seu sobrinho, pedindo-lhe que ponha o seu veto á empreza, porque é de entre os seus subditos que se fazem as levas de soldados e os alistamentos. Encarregámo-vos, Cornelio e Voltimando, de apresentar as nossas saudações ao idoso monarcha norueguez, e é nossa vontade, que nas negociações vos conformeis adstrictamente ás instrucções que junto com a nossa carta recebereis. Adeus; a celeridade do resultado prove a dedicação dos negociadores.
Nem o duvidâmos. Recebam um cordeal adeus. (Cornelio e Voltimando sáem.) Agora, tu, Laerte, que pretendes? Disseram-nos que nos querias fazer uma supplica? Qual é? Tu não podes fazer ao monarcha dinamarquez um pedido que não seja rasoavel, e não recorres a elle em vão. Que poderias desejar, Laerte, a que não estejamos promptos a annuir, mesmo antes de conhecer a pretensão. A cabeça não é mais sympathica ao coração, a mão não é mais prompta em servir a bôca do que o throno de Dinamarca é dedicado a teu pae. Que desejas pois, Laerte?
Meu augusto soberano, a vossa licença e o vosso consentimento, para voltar a França. Gostosamente vim a Dinamarca para assistir á vossa coroação, mas, cumprido esse dever, confesso-o, os meus desejos e a minha vontade me chamam a França, e supplico a vossa magestade que me conceda partir.
Já alcançaste o consentimento de teu pae? o que diz Polonio?
Arrancou-me o meu consentimento, tanto me importunou; acabei por ceder, mau grado meu, aos seus desejos. Supplico-lhe, pois, senhor, que lhe conceda a licença pedida.
Podes partir quando te aprouver, Laerte; deixo-te a liberdade de dispores do teu tempo e da tua pessoa. Então, Hamlet, meu primo, meu filho?
Aindaque mui proximos parentes não somos primos.
Porque essas nuvens que pesam sobre a tua fronte?
Engana-se, senhor, como póde haver nuvens, quando brilha o sol.
Querido Hamlet, despe essas roupas de dó, e lança um olhar amigavel para o rei de Dinamarca. Descrava os teus olhos do chão; pareces procurar as pegadas do teu glorioso pae. Sabes bem que é um destino invariavel; tudo quanto vive ha de morrer, e este mundo é uma ponte para a eternidade.
Sim, senhora, é um destino commum.
Se é assim, o que te parece a ti tão extraordinario?
Senhora, não me parece, é-o na verdade. O parecer para mim nada vale. Minha mãe, não são nem esta capa negra, nem estas vestes obrigadas nos lutos solemnes, nem os suspiros que mal póde soltar um peito opprimido, nem torrentes de lagrimas, nem o semblante macerado, nem todas as manifestações de uma dor pungente, que podem exprimir e revelar o que eu sinto. Todos estes signaes podem parecer dor; é um papel facil de representar, mas não são verdadeira dor, são como o fato para o comediante; mas eu (pondo a mão sobre o coração) sinto aqui, o que não ha palavras que o expressem.
Nada ha na verdade, Hamlet, mais commovente e louvavel do que os deveres funebres prestados á memoria de um pae. Mas lembra-te que teu pae já perdêra o seu, e que esse tambem já perdêra o pae. E para o sobrevivente um dever de piedade filial, dar durante um certo praso provas de uma dor respeitosa; mas perseverar n'uma afflicção obstinada, é mostrar uma teima impia; é uma dor cobarde, é a prova de uma vontade rebelde aos decretos da providencia, de um coração sem energia, de uma alma incapaz de resignação, de uma intelligencia pobre e limitada. Porque nos deve impressionar a tal ponto um acontecimento, que sabemos ser uma necessidade, e que se repete tão frequente, quanto as occorrencias mais vulgares; é uma triste indocilidade. Que!! É uma offensa a Deus, uma offensa aos finados, uma absurda offensa á natureza, que não tem em seus fastos mais vulgar acontecimento, que a morte de um pae; a qual, desde o primeiro cadaver até ao homem que hoje se finou, nunca deixou de nos clamar: Assim estava escripto. Supplico-te, portanto, abandona essa afflicção impotente, e vê em nós um segundo pae; porque queremos que todos saibam que tu és o mais proximo ao nosso throno, e que a affeição mais terna que um pae tem a seu filho, tenho-a eu a ti. Quanto á tua intenção de voltar a Wittemberg, para continuares os teus estudos, nada ha mais opposto aos nossos desejos; conjurâmos-te que fiques aqui, sê o prazer de nossos olhos, o primeiro da nossa côrte, nosso sobrinho, nosso filho.
Hamlet, far-te-ha tua mãe uma supplica baldada? peço-te fica comnosco, não vás para Wittemberg.
Farei o que podér, para em tudo vos provar obediencia.
Eis emfim uma resposta affectuosa e comedida. Serás na Dinamarca um segundo Eu. (Á rainha) Venha, senhora, este acto de deferencia de Hamlet, cumprido tão naturalmente e sem esforço, enche de jubilo o meu coração. Para o celebrar o rei de Dinamarca não libará uma taça, sem que a voz do canhão o transmitta ás nuvens. A cada taça quero que o céu o annuncie, repercutindo o estrondo dos raios da terra. Vamos agora. (Todos sáem excepto Hamlet.)
Ah! porque não poderá esta carne tão solida fundir-se e tornar-se orvalho. Ah que se o Eterno não tivesse fulminado como reprobo o suicida... Senhor Deus, meu Deus, como são insipidos, fastidiosos e vãos os gosos do mundo. Que pena! Elle é um jardim inculto que só tem plantas grosseiras e maleficas. Pois será possivel que ousassem tanto? Morto ha dois mezes! que digo? Nem dois mezes ainda. Um rei tão bom, que tanta similhança tinha com este como Hyperion com um Satyro, todo ternura para minha mãe, a ponto de não querer que uma brisa mais fresca açoutasse o seu rosto! Céus e terra! e deverei eu recordar-me? Parecia que a vida de um era a vida do outro! Comtudo, passado apenas um mez — não posso nem quero pensal-o — , fragilidade é synonymo de mulher. Só um mez, sem ainda ter gasto o calçado que usava acompanhando o feretro do marido, banhada em lagrimas como uma Niobe, ella mesma, essa mulher, oh céus! um animal privado do soccorro da rasão teria prolongado o seu luto; essa mulher desposou meu tio, o irmão de meu pae, mas que tem tanto de meu pae como eu de Hercules. No fim de um mez, antes que seccassem as suas hypocritas lagrimas, casou. Oh criminosa precipitação! Voar com tanto afan a um leito incestuoso, é horrivel! E será possivel que o céu o tolere? Despedaça-te coração, já que forçoso é calar.
Deus guarde a Vossa Alteza.
Quanto folgo de te ver de boa saude. És tu, Horacio, não me engano.
Eu mesmo, o vosso servo fiel até á morte.
Queres dizer amigo; de hoje em diante dar-te-hei este nome. Mas que fazes tu longe de Wittemberg, Horacio? Marcello.
Meu principe!
Alegro-me de te ver, bons dias. (A Horacio.) Mas, francamente, que motivo te obrigou a voltar de Wittemberg?
Tudo dissipei.
Senhor, vim prestar a ultima homenagem a seu augusto pae.
Peço-te, meu camarada de estudos, que não zombes; creio antes que vieste assistir ao casamento de minha mãe.
Verdade é que não houve quasi intervallo.
Por alvitre economico, Horacio. O banquete funerario ainda subministrou as iguarias e as viandas para o festim nupcial. Antes quizera encontrar no céu o meu mais encarniçado inimigo, do que ter visto despontar um tal dia, Horacio. Meu pobre pae, parece-me que o estou vendo!
Onde, senhor?
Na minha imaginação, Horacio.
Recordo-me de o ter visto, era um grande rei.
Era um homem que, bem considerado, não tinha rival na terra.
Julgo tel-o visto a noite passada.
Viste, quem?
Alteza, vi o rei seu pae.
O rei meu pae?
Falla, pelo amor de Deus, sou todo ouvidos.
Durante duas noites consecutivas, no meio das trevas e do silencio, emquanto estes senhores estavam de sentinella, eis o que lhes aconteceu. Uma figura parecida com seu pae, armada da cabeça aos pés, lhes appareceu caminhando lenta e magestosamente. Tres vezes, atemorisados e attonitos, o viram passar á distancia do bastão de commando que empunhava, emquanto elles, fulminados pelo terror, ficaram mudos, nem ousaram fallar. Confiaram-me, debaixo de segredo, tremulos ainda, o que tinham presenceado. Na noite seguinte entrei com elles de sentinella, e confirmando a verdade das suas palavras, á hora por elles indicada, debaixo da fórma por elles descripta, voltou a apparição. Reconheci seu pae; as minhas duas mãos não são mais parecidas.
Mas em que sitio appareceu?
Senhor, na explanada, onde estavamos de sentinella.
Fallaram-lhe.
Fallámos, mas não respondeu. Comtudo uma vez pareceu-me que movia a cabeça, como quem quer fallar; mas n'esse momento cantou o gallo matinal; ao som do canto afastou-se o espectro apressadamente, e nós perdemol-o de vista.
Na verdade é incomprehensivel.
Senhor, juro-lhe pela minha vida que é verdade, e julgámos nosso dever informar Vossa Alteza.
Sim, Alteza.
Armado, disseram?
Armado, meu senhor.
Da cabeça aos pés?
Tal qual.
Viram-lhe as feições?
Vimos, tinha a viseira levantada.
Tinha physionomia carregada?
A expressão era antes triste que colerica.
Pallido ou córado?
Muito pallido.
O seu olhar fixou-se em algum de vós?
Constantemente.
Queria lá ter estado.
O seu espanto teria sido igual ao nosso.
É mais que provavel. Demorou-se muito?
Muito mais, muito mais.
Não a vez que o vi.
A barba era grisalha, não é verdade?
Era, como em sua vida, de um negro prateado.
Velarei tambem esta noite, talvez que volte.
Sem duvida alguma.
Se se me apresentar debaixo da figura de meu pae, fallar-lhe-hei, embora o inferno me ordenasse o silencio, pelas suas horrendas fauces. Peço-vos, portanto, que se até hoje tendes guardado um segredo tal a respeito da apparição, de hoje em diante sejaes ainda mais cautelosos em conservar o sigillo; e aconteça o que acontecer esta noite, reflexão e silencio: serei grato a esta prova de affeição. Assim, pois, adeus, encontrarme-hei comvosco na explanada entre as onze horas e a meia noite.
Os nossos respeitos, principe.
Sempre amigos, adeus. (Horacio, Marcello e Bernardo sáem.) (Continuando.) A sombra de meu pae, porque apparece armada? Haverá algum perigo. Suspeito alguma traição. Espero impacientemente a noite. Até então, socega coração. Não ha crimes tão occultos, que o homem não possa descobrir. (Sáe.)