Hamlet: drama em cinco actos/Acto quarto/Cena III
Mandei chamar Hamlet e procurar o cadaver. Que perigo deixar livre um tal homem; mas não podemos fazer pesar sobre elle todo o rigor das leis. A multidão insensata estima-o, decidindo-se mais pela vista do que pela rasão; n'estas circumstancias o que devemos pensar é o castigo dos culpados, nunca o crime só por si. Para prevenir qualquer descontentamento é forçoso que este precipitado exilio pareça consequencia de madura reflexão. Para males desesperados remedios energicos, ou nenhuns. (Entra Rosencrantz.) Então que aconteceu?
Nada podemos saber da sua bôca relativamente ao cadaver.
Onde está Hamlet?
No quarto vizinho, esperando debaixo de segura guarda as ordens de vossa magestade.
Que venha á nossa presença.
Olá, Guildenstern. Conduze Hamlet a este aposento. (Entram Hamlet e Guildenstern.)
Hamlet, onde está Polonio?
N'um banquete.
N'um banquete?! onde?
Onde não come, mas é devorado. Uma multidão de vermes politicos disputa o seu cadaver. O verme é o monarcha dos comedores. Engordâmos todas as creaturas para nos engordarmos, e engordâmo-nos para pasto dos vermes. Um rei gordo e um mendigo magro são duas iguarias differentes, comtudo hão de ser servidas á mesma mesa. Esta é a verdade.
Infelizmente assim é!
É possivel que se pesque, com um verme creado em cadaver real, um peixe, e que se coma depois o peixe que enguliu o verme.
Nada; apenas as transformações pelas quaes póde passar um rei para penetrar nos intestinos do pobre.
Onde está Polonio?
No céu. Mande ali o seu mensageiro procural-o, e se não o achar, procure-o então o rei no sitio opposto. Em todo o caso se não o acharem até d'aqui a um mez, o olfato o denunciará junto á escada da galeria.
Procurem-o já.
Esperal-os-ha com certeza. (Sáe a comitiva do rei.)
Hamlet, no interesse da tua saude, que nos é tão cara, quanto dolorosa a acção que commetteste, é forçoso que partas com a maior brevidade; vae, pois, preparar-te. O navio está prompto e o vento sopra propicio; os teus companheiros esperam-te, e tudo está disposto para a tua viagem a Inglaterra.
A Inglaterra?
Sim, Hamlet.
Está bem.
O mesmo dirias conhecendo todos os meus projectos.
Descubro um anjo que os vê. Mas partâmos para Inglaterra. Adeus, minha querida mãe.
E teu pae que te estremece?
Não, minha mãe; pae e mãe são marido e mulher, marido e mulher são uma e mesma carne. Assim, pois, adeus, minha mãe. Vamos para Inglaterra. (Sáe.)
Sigam-o passo a passo, façam-o embarcar promptamente, não ha tempo que perder. Quero que já esta tarde esteja afastado d'estes sitios. Vão! Tudo quanto respeita a este negocio foi já expedido e sellado com as nossas armas. Aviem-se, peço-lh'o. (Sáem.) (Continuando) Rei de Inglaterra, sabes até onde chega o meu poder; as feridas infligidas pelo ferro dinamarquez ainda sangram, e teu respeito nos presta livre homenagem. Se, pois, prezas a minha benevolencia, não receberás friamente as ordens soberanas contidas nas minhas cartas e que exigem a morte de Hamlet. Obedece-me, rei de Inglaterra, porque Hamlet é febre que requeima o meu sangue, e tu é que me deves curar d'ella. Não terei um dia de prazer e descanso emquanto não souber a completa execução das minhas ordens, aconteça o que acontecer. (Sáe.)