Hamlet: drama em cinco actos/Acto quinto/Cena I
Ouve-me ainda; a agua está aqui, o homem está acolá; muito bem, o homem vae encontrar a agua e se afoga; forçosamente morre por seu motu proprio; nota isto bem. Mas se, pelo contrario, é a agua que vem encontrar o homem, e elle se afoga, então já não é elle que procura a morte; ergo, aquelle que não é culpado na sua morte, não poz termo voluntariamente á vida.
Mas será lei?
É a lei que preside ao inquerito do magistrado.
Queres que te diga o que penso? Se a defunta não fosse senhora de qualidade, de certo não a enterravam em chão sagrado.
É bem verdade o que dizes; é triste que as pessoas de qualidade tenham, a mais dos outros christãos seus iguaes, o direito de se afogarem e de se enforcarem. Vamos sempre cavando! Não ha nobreza mais antiga que a dos jardineiros, lavradores e coveiros; seguem a profissão de Adão!
Pois Adão era nobre?
O primeiro que usou armas!
Deixa-te d'isso, não consta que as tivesse!
Sempre és um pagão! como comprehendes tu então a escriptura sagrada? A escriptura diz que Adão trabalhava o solo; como poderia elle trabalhar sem pá ou enxada? Essas eram as suas armas. Vou fazer-te outra pergunta, se não me responderes com acerto, não és mais que um....
Quem é que construiu mais solidamente que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios?
O constructor do cadafalso, porque sobrevive a innumeros hospedes.
Boa resposta, palavra de honra. Cadafalso é bem achado; mas para quem se fez o cadafalso? para os que fazem o mal; ora, tu fizeste mal em dizer que o cadafalso é mais solido que a igreja, logo merecias o cadafalso. Vamos, procura e responde.
Agora eu! Quem é que construiu mais solidamente do que o pedreiro, carpinteiro e constructor de navios?
Dize tu primeiro, eu cá já sei.
Tambem eu.
Vejamos.
Nada, não atino.
Basta de tratos ao teu cerebro; escusas de pensar mais, ficas sempre na mesma. Quando alguma vez te fizerem essa pergunta, responde: «É o coveiro; as moradas que construe duram até ao dia de juizo». Agora vae a casa de Vaughan e traze-me um copo de licor.(O segundo coveiro sáe, cantando.)
Quando eu era mancebo e quando amava
Tudo era para mim rapido goso,
Sómente noite e dia andava ancioso
Por o tempo matar que me matava.
O habito tudo póde.
E verdade, a mão pouco afeita ao trabalho tem o tacto mais delicado!
Mas a idade chegou, passo furtivo
Nas gastadoras garras me ha tomado,
E assim, mau grado meu, me ha condemnado
A viver entre a morte, morto-vivo. (Desenterra uma caveira.)
Houve tempo em que esta cabeça tinha uma lingua e cantava; agora este rustico fal-a rolar pelo solo, como se fosse a mandibula de Caim, o primeiro homicida. O craneo que este imbecil trata com tão pouco respeito, era talvez de algum profundo politico, que se julgava até capaz de impor a sua opinião o proprio Deus, não é verdade?
Tudo póde ser, senhor.
Ou talvez de algum cortezão cujo prestimo unico fosse repetir: «Deus seja comvosco, como está, meu senhor?» É talvez o craneo do sr. fulano, que gabava o cavallo do sr. cicrano, com a idéa que este lh'o désse, não é verdade, Horacio?
Sim, meu senhor!
Deve assim ser! Agora pertence aos vermes; não tem nem pelle, nem sangue, nem carne, e este coveiro fende-o com a sua enxada. Eis uma estranha revolução, assim a comprehendessemos bem. Joga-se a bola com esses ossos, como se nada tivessem custado a formar. Sinto estalar os meus só pensando-o.
Uma enxada e uma pá logo em seguida,
Um lençol que amortalha o corpo todo,
Um buraco depois feito no lodo,
Eis ao que se reduz a humana vida. (Desenterra outra caveira.)
Eis um outro craneo; quem sabe se não seria de um jurisconsulto. Agora acabaram as trapaças, as distincções subtis, as causas, as auctoridades legaes e as finuras. Em vida, de certo não consentia sem um processo que este imbecil lhe percutisse o craneo com a enxada. Porque não lhe intenta agora uma acção por vias de facto e sevicias? Quem sabe, talvez fosse um nedio comprador de bens immoveis, com os seus direitos, rendas, privilegios, hypothecas e contratos. Eil-o agora elle mesmo hypothecado, tem o privilegio commum a todos os mortaes, de ver a sua cabeça coberta de pó e terra. Pois que! todas as acquisições tão bem garantidas, não terão outro complemento senão assegurar-lhe um espaço apenas igual á superficie de dois contratos de venda? Todos os seus titulos mal caberiam n'este cofre, e comtudo é hoje a sua unica propriedade. Ah!
Unica, senhor!
Horacio, o pergaminho faz-se de pelles de carneiro, não é verdade?
Tambem de bezerro.
São pois os carneiros e bezerros que fazem fé em taes titulos. Vou interrogar este rustico. A quem pertence essa cova?
A mim!
Um buraco depois feito no lodo,
Eis ao que se reduz a humana vida.
Effectivamente, creio ser tua, pois que estás dentro d'ella.
O senhor está fóra, logo não é sua; mas apesar d'ella não me ser destinada, é comtudo minha.
Mentes, é para um morto, e não para um vivo.
Para que homem cavas essa cova?
Senhor, não é para um homem!
Para que mulher então?
Nem tão pouco para uma mulher!
Quem será pois depositado n'esta cova?
Uma pessoa que foi mulher, hoje é defunta; Deus se compadeça da sua alma.
Que agudeza no seu positivismo! é preciso fallar-lhe com toda a clareza, para não ser por elle enredado. Por Deus, Horacio, que noto ha tres annos que o mundo se torna retrogrado, e o rustico se approxima tanto do cortezão, que quasi se confundem. Ha quanto tempo és coveiro?
Dei-me a este officio desde o dia em que o defunto rei Hamlet venceu a Fortimbraz.
Quanto tempo haverá?
Não o sabe? Pois não ha imbecil que lh'o não diga. Foi no mesmo dia em que nasceu o joven Hamlet, aquelle que enlouqueceu, e foi mandado para Inglaterra.
É isso; e porque o mandaram para Inglaterra?
E porque?
Não será visto aqui, e lá todos são tão loucos como elle.
Como enlouqueceu elle?
De um modo bem estranho, segundo dizem.
Mas de que modo?
É claro, perdendo a rasão.
E qual foi o motivo?
Um motivo dinamarquez, um motivo d'este paiz em que sou coveiro desde a infancia, ha trinta annos.
Dize-me, quanto tempo póde um homem estar enterrado, antes de apodrecer?
Se não está já podre antes de morrer (porque temos n'esta epocha muito corpo gangrenado, que mal supporta a inhumação), póde conservar-se de oito a nove annos; um surrador conserva-se nove annos.
Porque mais tempo que os outros?
O exercicio da sua profissão cortiu-lhe de tal modo a pelle, que fica impermeavel por muito tempo, e de certo sabe que a agua é o mais activo destruidor dos cadaveres. Vê esta caveira? Ficou vinte e tres annos debaixo da terra.
De um typo original; ora, quem lhe parece que seria?
Como posso eu sabel-o?
Leve-o o diabo. Lembro-me ainda do dia em que me vasou sobre a cabeça um frasco de vinho do Rheno. Esta caveira, senhor, era de Yorick, o bobo do rei.
Este craneo?
Sim, este mesmo.
Dá-m'o, deixa-me vel-o. Pobre Yorick! Conheci-o, Horacio, era uma mina inexgotavel de ditos engraçados; tinha uma imaginação viva e fecunda! quantas vezes me levou aos hombros! agora ao pensal-o annuvia-se-me o coração. Aqui estavam os seus labios, em que tantos osculos depuz. Onde estão agora os teus sarcasmos, as tuas replicas, as tuas canções, esses rasgos de alegria, que promoviam a hilaridade de todos os convivas? Que! pois ninguem já póde rir com as tuas facecias? Descarnadas estão as faces. Vae, entra como agora estás, na alcova de alguma beldade da moda; dize-lhe então que arrebique e enfeites nada lhe valem, porque um dia será igual a ti. Fal-a rir, dizendo-lh'o. Dize-me tu, Horacio...
O que, meu senhor?
Julgas tu que Alexandre, depois de enterrado, se parecesse com Yorick?
De certo!
E que tivesse tão mau cheiro? Fóra! (Deita fóra o craneo.)
A que destinos grosseiros é possivel baixarmos, Horacio? Quem sabe se, proseguindo nas suas successivas transformações, as cinzas de Alexandre não estão hoje empregadas em tapar um barril?
Seria entrar n'um exame demasiado minucioso.
Não concordo. Podemos seguir seriamente esse exame, e com probabilidades de obter um resultado. Por exemplo, Alexandre está morto, Alexandre está sepultado, Alexandre tornou-se pó; o pó é terra, da terra tira-se argilla, e quem impede que esta argilla, ultima metamorphose de Alexandre, seja empregada como batoque n'um barril de cerveja? O imperial Cesar, morto, tornou-se pó, e serve talvez para vedar uma fenda e interceptar a passagem do ar; e essa argilla, que espalhava o terror sobre o universo, vae calafetar um muro para impedir que o vento passe. Mas, silencio: afastemo-nos, chega o rei: (Entram processionalmente padres, levando á mão o caixão de Ophelia; segue-se Laerte e o cortejo funebre, mais atrás o rei, a rainha e a côrte) e tambem a rainha! toda a côrte! A quem prestarão os ultimos deveres? De quem será este funeral incompleto? Tudo denuncia um suicidio. Deve porém ser pessoa de categoria! Occultemo-nos e observemos, Horacio. (Afastam-se um pouco Hamlet e Horacio.)
Que ceremonias falta cumprir?
Olha, é Laerte, um nobre mancebo.
Ha mais alguma cousa que fazer?
Fizemos já para o seu funeral tudo quanto nos era licito fazer; a sua morte tinha um caracter suspeito, e se ordens superiores não tivessem imposto silencio aos canones da Igreja, teria sido sepultada em chão profano, onde teria ficado até que a acordasse o clarim do juizo final. Em vez de orar por ella, teriamos lançado sobre o seu corpo tições, entulho e pedras; e comtudo coroaram-n'a como virgem, e flores cobriram a sua campa, e o tanger do bronze sagrado acompanhou-a á sua ultima morada.
Então nada mais se póde fazer?
Mais nada; profanariamos o rito sagrado se entoassemos um requiem, ou se implorassemos para ella o repouso destinado ás almas que voaram ao céu santamente.
Seja pois o seu corpo depositado na campa, e possam d'elle e da sua carne, pura e sem manha, desabrochar violetas! Sou eu que t'o digo, padre sem alma, minha irmã gosará no céu a bemaventurança eterna, emquanto que tu extorcer-te-has no inferno nas convulsões do supplicio dos condemnados.
Que? É pois a bella Ophelia?
Flores para esta joven flor. Adeus! Esperava ver-te esposa do meu Hamlet; contava, encantadora donzella, enfeitar o teu leito nupcial; nunca pensei espargir flores sobre a tua sepultura.
Oh! que uma triplice e dez vezes triplice maldição cáia sobre a cabeça do scelerado que commetteu tão negra acção, e provocou a perda da sua rasão. Esperem que, antes que a terra a cubra, a estreite mais uma vez nos meus braços (salta para dentro da cova). Agora enterrem conjunctamente vivos e mortos, elevem sobre nós uma montanha que exceda em altura o antigo Pélion, ou o azulado Olympo, cujo cimo vem beijar as nuvens.
O inferno se apodere da tua alma!
É um abominavel desejo: larga-me a garganta, retira as mãos, abaixo, aconselho-t'o eu; não sou nem mau, nem arrebatado, mas é perigoso excitar-me, e obrarás assisadamente pensando assim. Abaixo as mãos!
Separem-os.
Hamlet! Hamlet!
Senhores!
Contenham-se.
Por um tal motivo sinto-me capaz de combater com elle até ao ultimo alento.
Meu filho, qual é o motivo?
Amava Ophelia, e as affeições juntas de quarenta mil irmãos não poderiam igualar a minha; (a Laerte) e que serias tu capaz de fazer por ella?
Deixa-o, Laerte, está louco.
Pelo amor de Deus, não faça caso das suas palavras.
Vamos, dize-me, que tencionas tu fazer? Prantear, combater, jejuar, rasgar tuas proprias carnes, beber o Issel todo, devorar um crocodilo? Tudo farei. Vieste aqui para te lamentar, para me desafiar, precipitando-te dentro da sua cova; enterra-te vivo com ella, outro tanto farei; e já que fallaste em montanhas, accumulem ellas sobre nós tanta terra, que o cume da nossa pyramide tumular toque a zona ardente, e ao pé d'ella o monte Ossa não pareça mais que uma verruga. Pódes encolerisar-te, que não me assustam os teus furores.
É um accesso de loucura que durará algum tempo; depois, similhante á meiga pomba acalentando os filhinhos, ficará silencioso e immovel.
Dize-me, porque me tratas assim? Sempre fui teu amigo. Mas não importa. Aindaque Hercules se oppozesse, se o gato miasse, o cão havia de ladrar (afasta-se).
Siga-o, peço-lhe, meu caro Horacio. (Horacio segue Hamlet) (a Laerte) Tem paciencia, lembra-te da nossa conversação de hontem, (Á rainha) Querida Gertrudes, faça com que velem sobre Hamlet; (á parte) é preciso dar como monumento a este tumulo uma victima humana. Cedo estarei descansado; até então, paciencia! (Sáem todos.)
Basta sobre esse assumpto; passemos ao outro, recordas-te bem de todas as circumstancias?
Se me lembro, meu senhor!
Uma especie de lucta apoderára-se do meu coração, vedava-me o somno, sentia-me peior que um facinora acorrentado! Adoptando comtudo uma resolução temeraria, achei na temeridade a minha força; lembremo-nos sempre, Horacio, que a imprudencia é muitas vezes o nosso prestante auxiliar, quando os nossos mais profundos calculos são impotentes, e isto