Hamlet: drama em cinco actos/Acto quinto/Cena II
Basta sobre esse assumpto; passemos ao outro, recordas-te bem de todas as circumstancias?
Se me lembro, meu senhor!
Uma especie de lucta apoderára-se do meu coração, vedava-me o somno, sentia-me peior que um facinora acorrentado! Adoptando comtudo uma resolução temeraria, achei na temeridade a minha força; lembremo-nos sempre, Horacio, que a imprudencia é muitas vezes o nosso prestante auxiliar, quando os nossos mais profundos calculos são impotentes, e isto deve-nos ensinar que ha uma Providencia que aperfeiçoa e completa os projectos que imperfeitamente esboçâmos.
Não ha cousa mais certa!
Saí pois do meu camarote a bordo, e coberto com as roupas de viagem procurei e encontrei pelo tacto, ás escuras, a sua mala; abri-a e revolvi-a toda, em seguida recolhi-me ao meu aposento; então o perigo baniu todo o escrupulo, abri o despacho rompendo o sêllo real! Escuta o que li, Horacio. Oh! perfidia real! Apoiando-se em differentes motivos, a salvação da Dinamarca e da Inglaterra, e o perigo que para elle havia em eu continuar a viver, o rei ordenava expressamente, que depois da leitura d'essa carta, sem demora alguma, nem mesmo a necessaria para afiar o cutello, eu fosse decapitado.
Será possivel?
Aqui tens a carta, lê-a á tua vontade. Mas queres tu saber o que eu então fiz?
Diga, senhor; que foi?
Para saír salvo dos laços d'esta infame traição, appellei para a minha intelligencia, e depressa formei o meu plano. Sentei-me, e redigi um despacho com a melhor letra que pude fazer. Antigamente, assim como os nossos homens d'estado considerava uma vergonha ter boa letra; e se soubesses quanto eu desejei perdel-a! mas n'esta occasião foi-me maravilhosamente util. Queres saber o que escrevi?
Com todo o gosto, senhor.
Dirigindo-se ao monarcha inglez como seu fiel tributario, dizia-lhe o rei de Dinamarca, se queria que se conservasse virente a palma da amisade, a paz se coroasse de espigas e se estreitassem os laços de uma união duradoura, lhe ordenava que, finda a leitura da sua carta, sem outro exame, sem lhes dar tempo de se confessarem, fizesse suppliciar os portadores do despacho.
Mas com que sêllo fechou esse escripto?
A Providencia não me desamparou ainda n'essa occasião; tinha na minha bolsa o sêllo de meu pae, reproducção exacta do sêllo do estado. Dobrei pois o meu despacho na fórma do estylo, subscriptei-o e sellei-o, depois colloquei-o no logar em que estava o outro: o engano não foi descoberto. No dia seguinte, em vez de combate sabes o que houve.
Assim, Rosencrantz e Guildenstern, vão receber o seu justo castigo?
Procuraram-n'o por suas proprias mãos; não me peza na consciencia. Só de si se podem queixar. É sempre uma desgraça para vis subalternos acharem-se envolvidos nas contendas de dois poderosos adversarios.
E é rei? meu Deus!
O meu dever está agora claramente indicado. Áquelle que assassinou meu pae, deshonrou minha mãe, que se interpoz entre a escolha da nação e as minhas esperanças, que attentou contra a minha vida traiçoeira e perfidamente, é justiça que o meu braço o puna. E não seria um crime digno da condemnação eterna, deixar continuar esta ulcera no seu trabalho corrosivo?
Mas dentro em pouco saberá de Inglaterra o desenlace de todo este negocio?
Em breve o saberá, é verdade, mas o tempo que até então decorrer, pertence-me, e o fio da vida do homem corta-se em menos tempo do que o preciso para contar até dois. O que me peza, meu caro Horacio, é ter desattendido Laerte, porque eu tambem sinto o que elle deve sentir. Sempre prezei a sua estima; mas a emphatica exaltação da sua dor exacerbou-me.
Silencio, principe; approxima-se alguem.
Alegro-me, principe, que tenha regressado á Dinamarca.
Obrigado, senhor. (A Horacio) Conheces tu esse insecto?
Não, meu senhor.
És pois um homem moral, é um vicio conhecel-o. É verdade que possue muitas e ferteis propriedades, mas é um estupido animal, que tem mando sobre os outros, seguro de achar a sua mangedoura na mesa real; é um ente desprezivel, mas, como disse, é senhor de vastos dominios.
Meu bom senhor, se não incommodo vossa alteza, alguma cousa tinha que lhe communicar da parte de sua magestade.
Escutal-o-hei com prazer. Mas cubra-se já, que o chapéu foi feito para estar na cabeça.
Obrigado, senhor, mas faz muita calma.
Faz muito frio, não acha? O vento está norte.
Não sei se é effeito de uma predisposição particular, mas acho um calor abrasador.
Não ha duvida, faz tanto calor, que nem posso quasi respirar. Mas, meu senhor, sua magestade encarregou-me de lhe dizer que fez uma aposta consideravel, de que vossa alteza é o motivo.
Faz favor.
Perdão, senhor, mas não me incommoda. Vossa alteza de certo é sabedor que chegou a esta côrte Laerte, um joven mui dextro, dotado das mais raras qualidades, agradavel no trato, um perfeito moço. Para fallar d'elle como merece, póde-se dizer que é o espelho e o almanach do bom tom, porque n'elle estão reunidas todas as qualidades que deve possuir um perfeito cavalheiro.
Senhor, não encareceu o retrato que d'elle fez; não é sufficiente toda a arithmetica da memoria para redigir o inventario especificado de todas as suas perfeições, e ainda assim o juizo ficaria áquem da verdade. Fallando conscienciosamente, tenho-o na conta de um cavalheiro distincto e de raro merecimento; digo-o sinceramente; para achar outro igual, forçoso é que se olhe no seu espelho: os outros não seriam senão a sua sombra.
O principe falla d'elle com a convicção da estima.
De que se trata, pois? Escusâmos embaçar as suas qualidades com o nosso juizo.
Senhor!
Não seria possivel fallar uma lingua mais intelligivel? É-o por certo, senhor.
De Laerte?
Acabou-se-lhe o cabedal; ignora completamente o que ha de responder.
É verdade.
Sei que não ignora...
Queria que assim pensasse a meu respeito; e se assim fosse, fraco elogio para mim seria. Continue agora.
Vossa alteza não ignora a superioridade de Laerte?
É o que não affirmo, com o receio de me comparar a elle. Para conhecer um homem a fundo era necessario vestir a sua pelle.
Quero fallar da sua superioridade em manejar as armas; gosa da reputação de não ter rival.
Quaes são as suas armas de predilecção?
Florete e adaga.
São só duas! prosiga.
O rei apostou seis bellos cavallos da melhor raça, contra seis espadas e seis adagas francezas de Laerte, sem contar os cinturões, talabartes e tudo o mais. Tres dos accessorios sobretudo são dignos da aposta e de um trabalho maravilhoso, no estylo mesmo das armas.
Bem sabia eu que antes de terminar era infallivel algum reparo do principe.
Os accessorios, senhor, são os enfeites dos cintos e talabartes em que se suspendem as espadas.
A expressão seria mais exacta se em vez de espada usassemos um canhão; sirvamo-nos pois do termo cinto na generalidade. Prosiga. Seis bellos cavallos contra seis espadas e seus pertences, incluindo tres cintos, obra prima da arte franceza; é pois a França contra a Dinamarca. Mas qual é o motivo d'esta aposta?
O rei apostou que em doze golpes, Laerte não tocaria o principe senão tres vezes. Laerte apostou que seriam nove em doze. A questão será promptamente decidida se vossa alteza se dignar responder.
E se eu responder negativamente?
Quer dizer, se o principe convier em combater.
Senhor, vou agora passeiar n'esta sala; costumo todos os dias a esta hora, entregar-me a esses exercicios: depois estou ás ordens do rei. Tragam floretes com a annuencia de Laerte; e se o rei persistir no seu empenho far-lhe-hei ganhar a aposta se podér; no caso contrario restam-me os golpes recebidos e a vergonha.
Deverei dar ao rei a sua resposta?
Disse-lhe o meu pensamento: o seu talento saberá completar a resposta.
Muito agradecido, obrigado (a Horacio); fez bem de o dizer elle mesmo, ninguem se encarregava por certo de tal missão.
Finalmente, estamos sós!
Estou certo que ao collo da ama, antes de o sugar, elogiava a alvura do seu seio; similhante a tantas pessoas da sua tempera, que são o encanto dos ignorantes, abraçam as modas do dia, e revestem-se de um falso verniz de polidez, e, graças a essa mascara, são escutados pelos sensatos; mas experimentem-os, são como bolas de sabão, que se desvanecem ao menor sopro.
Senhor! o rei mandou o joven Osrico cumprimentar vossa alteza da sua parte, o qual lhe disse que o principe esperava n'esta sala. El-rei envia-me para saber se é intenção de vossa alteza combater já, ou adiar o combate.
Tomei já a minha resolução, e concorda com os desejos de sua magestade. Se Laerte está prompto, tambem eu o estou; immediatamente, ou quando quizer, comtanto que me sinta sempre tão bem disposto como agora o estou.
Em breve chegarão o rei e a rainha, e toda a côrte.
Bemvindos sejam!
É pedido da rainha que receba cordialmente Laerte, antes de dar principio á contenda.
Receio que o principe perca a aposta.
Não creias tal; depois que elle partiu, tenho-me continuamente exercitado no jogo das armas: com a vantagem concedida a victoria é certa. Se tu soubesse que dor sinto no coração! Não importa.
Comtudo, senhor!
É uma loucura, uma leve apprehensão, que apenas poderia influenciar uma fraca mulher.
Se sente alguma repugnancia no seu espirito, obedeça-lhe. Vou prevenil-os que não venham, que o principe se sente indisposto.
De modo nenhum! Luctarei com os meus presentimentos; a Providencia tem já escripto o meu destino. Se tenho de morrer, nada o evitará, forçoso é obedecer aos seus decretos; que seja hoje ou ámanhã, estou prompto; tenho dito. Poisque o homem não é senhor do seu destino, que importa que seja mais tarde ou mais cedo? Será o que Deus quizer.
Perdoe-me, se o offendi, mas perdoe-me como cavalheiro. Os que nos cercam, sabem-o, e creio que tambem deve saber, que um terrivel desvairamento se apossou de mim. Se alguma cousa fiz que podesse irritar o seu caracter e a sua honra e melindre, proclamo-o bem alto: «Loucura!» Seria ainda Hamlet que offendeu Laerte? Nunca, nunca poderia ser Hamlet. Então não era elle, e não sendo elle, como offenderia Hamlet a Laerte? É claro, não era elle; renego todos esses actos. Quem foi então? a loucura. Sendo assim, Hamlet abraça o offendido; o verdadeiro inimigo do desditoso Hamlet é a sua loucura. Senhor, depois d'esta confissão, em que perante todos renego toda a má intenção, poderá ainda a sua generosidade condemnar-me? É como se inconscientemente despedisse por cima de uma casa um dardo, e fosse ferir um irmão.
Meu coração está satisfeito; era elle que mais me excitava á vingança; mas no campo da honra recuso-me a toda a conciliação, até que arbitros mais idosos e de provada lealdade, me imponham, fundados em precedentes, uma sentença de paz, que ponha o meu nome ao abrigo de toda a suspeita. Até então acceito a amisade que me offerece, e nada farei em seu detrimento.
Acceito francamente essa promessa, e a lucta fraternal que vamos encetar. Venham os floretes, comecemos.
Dêem-me um florete!
Vou ser o seu alvo, Laerte; ao pé da minha inexperiencia vae sobresaír a sua pericia, como um astro brilhante em noite escura.
Zomba de mim?
Juro que não!
Dá-lhes floretes, Osrico, Primo Hamlet, conheces a aposta?
Perfeitamente, senhor; aposta demasiado vantajosa para o mais fraco.
Nada receio; já os conheço ambos, e poisque Hamlet é quem mais avantajado está, a sorte está pelo nosso lado.
Este não, que é muito pesado; outro!
Sim, meu bom senhor. (Collocam-se.)
Ponham os frascos sobre a mesa. Se Hamlet o tocar a primeira e segunda vez, ou se elle aparar o terceiro golpe, que as baterias rompam uma salva geral; beberei á saude de Hamlet, e lançarei na taça uma perola mais preciosa que as que usavam nos seus diademas os quatro reis meus predecessores. Venham as taças. Que os timbales annunciem aos clarins, os clarins aos canhões, os canhões aos céus, os céus á terra que o rei brinda por Hamlet. Vamos, senhores, podem começar, e vós juizes, attenção!
Em guarda!
Em guarda, principe! (Começam.)
Uma!
Não tocou.
Os juizes que decidam!
Tocou, não ha duvida.
Recomecemos.
Esperem, encham as taças. Hamlet, dou-te esta perola, brindo por ti. Offereçam-lhe a taça. (Clarins e salvas.)
Prefiro acabar a contenda, esperem; depois beberei. Vamos, Laerte. Uma! que diz agora?
Fui tocado, confesso-o.
Estás fatigado, falta-te o fôlego. Limpa a fronte com o meu lenço. A rainha bebe á tua victoria, Hamlet.
Minha senhora!
Não bebas, Gertrudes.
Bebo, senhor, desculpe-me, desejo-o.
Era a taça envenenada, já não ha remedio.
Ainda não bebo, mais tarde, senhora.
Deixa-me limpar tua fronte, filho!
Senhor, agora verá.
Já não creio.
E, comtudo, diz-me a consciencia que não.
Vamos, Laerte, a terceira prova; não me poupe, peço-lh'o; desenvolva toda a sua pericia, não me trate como creança.
Que diz? em guarda, pois.
Ainda nada.
Agora toquei. (No encarniçado da lucta trocam os floretes, e Hamlet é ferido e fere Laerte.)
Não, recomecemos. (A rainha cáe)
Acudam á rainha; acudam!
Feridos ambos!! que é isto, senhor?
Como está Laerte?
Colhido no meu proprio laço, morro pela minha traição.
Que tem a rainha?
Desmaiou á vista do sangue.
Não, não! a bebida, a bebida! meu Hamlet, a bebida! a bebida! envenenada... (Morre.)
Oh! infamia! fechem as portas, traição! quero conhecel-a.
Eu t'o digo, é esta: Hamlet, morres assassinado, nada te póde salvar; meia hora, quando muito, te resta de vida, na tua mão ainda conservas a arma da traição afiada e envenenada; tambem sou victima da minha perfidia. Escuta, já sinto a morte, tua mãe envenenada... morro, Hamlet! o rei... só o rei culpado... (Desfallecendo.)
A ponta envenenada! veneno, cumpre o teu dever. (Fere o rei.)
Traição! traição!
Bebe os restos d'esta taça, incestuoso assassino, damnado dinamarquez. Procura a perola, achal-a-has seguindo minha mãe. (Vasa á força o resto da taça pela bôca do rei, que cáe e morre.)
É justo o castigo; morre pelo veneno que preparáras. Hamlet, perdoemo-nos mutuamente, e livres de qualquer reciproco remorso subam nossas almas abraçadas ao céu. (Morre.)
Absolva-te o céu, como eu te perdôo; sigo-te, Laerte (a Horacio) morro, Horacio. Rainha desgraçada, adeus. A vós todos, que ao ver esta catastrophe empallideceis, mudos espectadores d'este drama, se tivesse tempo ainda, se esta ancia terrivel não m'o vedasse, poderia dizer... agora, resignação. Eu morro, Horacio, tu viverás, justifica-me, explica o meu odio aos que o ignoram.
Isso nunca! sou mais romano que dinamarquez, e n'esta taça ainda ha liquido.
Se és homem, dá-m'a; larga-a, por Deus, quero-a. Vive para revelar um tão infame crime. Se alguma vez foste meu amigo, não apresses a tua felicidade celeste e permanece n'este mundo odioso, conta a minha historia. (Ouve-se uma marcha) Que rumor marcial é este?
É o jovem Fortimbraz, que regressa victorioso da Polonia, e que saúda os embaixadores de Inglaterra com esta salva guerreira. (Ouvem-se tiros.)
Morro, Horacio, triumpha o veneno poderoso; nem já as noticias de Inglaterra me é dado saber, mas predigo que Fortimbraz ha de reinar; morrendo, voto por elle; conta-lhe mais ou menos os pormenores da causa da minha morte. O resto... é... silencio... (Morre)
Que vejo?
Vae sabel-o. Desgraça ou prodigio, está patente a seus olhos.
Que hecatombe, que horror! Oh! morte, que festim cruento preparavas tu, para precisar de uma só vez tanto sangue real?
Que horrivel espectaculo! tarde chegâmos de Inglaterra. Já não nos póde ouvir aquelle de cujas ordens annunciavamos o cumprimento, trazendo a nova da execução de Rosencrantz e Guildenstern. Quem nol-o agradecerá agora?
Elle não, que os seus labios agora gelidos nunca o ordenaram. Mas, poisque vindes de Inglaterra e de Polonia e presenceaes esta crise sangrenta, ordenae que bem alto, á vista de todos, sejam collocados estes corpos, e eu lhes direi a causa d'estes factos, poisque a ignoram. Então soarão aos seus ouvidos actos carnaes, incestos, sangue, expiações, assassinios fortuitos, mortes causadas pela perfidia ou por força maior, e para desfecho traições que feriram os proprios auctores; eis a minha narração, e juro que é verdade.
Ouçâmol-o promptamente, convoquemos os nobres: dolorosamente acceito o meu novo encargo, pois tenho sobre este reino direitos incontestaveis, que é meu dever reivindicar.
Missão tenho de lhe fallar a esse respeito, da parte d'aquelle que vivo teria tido os suffragios do povo. Seja pois rapida a decisão, antes que os espiritos preplexos sejam dominados por alguma conspiração ou engano que causem novas desgraças.
Sejam por quatro capitães levados os restos mortaes de Hamlet: façam-se-lhe todas as honras militares. Se vivesse teria sido um grande rei. Quando passar, salvem os canhões. Levem os cadaveres, esta vista é só propria dos campos de batalha; aqui causa horror! Executem as minhas ordens, rompam as salvas de canhões e as descargas de fuzilaria, e as marchas funebres. Morreu o que havia de ser rei de Dinamarca. (Desfilam todos com os cadaveres: ouvem-se salvas de artilheria, descargas de fuzilaria e marchas funebres. Cae o panno.)