Hamlet: drama em cinco actos/Acto segundo/Cena I
Rinaldo, entrega a meu filho este dinheiro e estas letras.
Sim, meu senhor.
Mas antes de o procurar, obrarás assisadamente tomando informações a seu respeito.
Era essa a minha intenção.
Perfeitamente, senhor.
De todo não me é desconhecido, pódes acrescentar. Conheço-o pouco é verdade, comtudo aquelle de quem fallo é um dissipador com todos os seus defeitos; imputa-lhe então todos os vicios que te parecer, excepto aquelles que podem deshonrar um homem, toma conta n'isso; só as loucuras e imprudencias proprias de um joven que se sente livre de todo o constrangimento paterno.
O jogo, talvez?
Bem, e as bebidas, a esgrima, as pragas, o genio buliçoso, a convivencia do prostibulo, é até onde te auctoriso que chegues.
Actos são, na verdade, que não deshonram.
Sabes bem como te deves haver fazendo estas imputações. Não aggraves os factos accusando-o de devassidão continua e habitual; não pretendo tal; censura-o mas com discrição; exprime-te como se attribuisses as suas faltas aos defeitos inherentes á mocidade, ao abuso da liberdade, ao arrebatamento de um espirito fogoso, á effervescencia de um sangue ardente.
Mas, senhor?
Porque será conveniente obrar assim.
Para lh'o perguntar estava eu.
É onde eu queria chegar, e na minha opinião é um ardil sem igual. Depois de teres imputado a meu filho esses ligeiros defeitos, que se podem considerar quando muito como imperfeições n'uma bella obra; se o teu interlocutor, aquelle que queres sondar, notou no joven a que te referes algum dos vicios mencionados, está certo que responderá immediatamente: Meu caro senhor, ou meu amigo — ou meu cavalheiro — segundo o costume do individuo, ou o uso do paiz...
Prosiga, senhor.
Então... que estava eu dizendo? pela santa missa — que queria eu dizer? o que era?
Fallava da resposta...
Que te darão, é isso, e não deixarão de responder: Conheço esse mancebo, vi-o ainda hontem, ou outro qualquer dia, em tal epocha, com estes ou com aquelles, surprehendi-o jogando, ou n'uma orgia ou numa rixa, ou ainda, vi-o entrar n'uma casa suspeita; ou outras cousas similhantes: agora vês como com a mentira se colhe a verdade. É assim que nós, as pessoas entendidas, empregâmos a miudo o embuste e a falsidade para descobrir a verdade. Ahi está o caminho que seguirás para saber o comportamento de meu filho. Percebes agora?
Sim, meu senhor.
O Senhor seja comtigo, boa viagem.
Meu amo!
Observa tu mesmo as suas inclinações.
Fal-o-hei, senhor.
Mas não o distráias da sua vida.
Bem entendo.
Que te traz por aqui, Ophelia?
Meu pae, meu pae, ainda tremo.
Porque? Falla por piedade.
Querido pae, estava no meu quarto trabalhando em costura, quando de repente deparo com o sr. Hamlet, mas em que estado! as vestes em desordem, o cabello em desalinho, as meias caídas arrastavam pelo chão, pallido e branco como uma mortalha, tremiam-lhe as pernas, o rosto tinha a expressão do desespero, qual profugo do inferno mensageiro de novas horriveis.
Enlouqueceria por tua causa?
Não sei, meu pae, mas receio-o devéras.
Que te disse elle, Ophelia?
Tomou-me os pulsos, apertando-os convulsivamente, depois afastando-se á distancia do seu braço, levando a mão á testa, fitou os olhos no meu rosto, como se me quizesse retratar. Assim se demorou por largo tempo, por fim saccudindo-me levemente o braço, levantando e baixando por tres vezes a cabeça, suspirou tão profundamente, que todo o seu corpo estremeceu, parecia o prenuncio da morte. Feito isto, deixou-me, partiu e desviando a cabeça, como um homem que para achar caminho não precisa o auxilio da vista, transpoz a porta; mas então o seu olhar estava fito em mim.
Segue-me, filha, vou procurar o rei. É o delirio do amor; a sua violencia mata-o, e impõe á sua vontade actos de desespero, que nenhuma outra paixão humana excitaria. Peza-me sinceramente. Dize-me, ter-lhe-ías tu dirigido ultimamente alguma palavra cruel.
Não, meu pae; mas obedecendo ás suas ordens, recusei as suas cartas e evitei a sua presença.
Eis o que perturbou a sua rasão. Doe-me de o não ter conhecido melhor: receiei que as suas intenções não fossem serias, e que só pretendesse consummar a tua ruina. Arrependo-me do fundo de alma das minhas desconfianças. Parece que o confiar cegamente na previdencia é o apanagio da minha idade, como o contrario é o defeito da mocidade. Vem, dirijâmo-nos ao rei, convem que elle nada ignore; porque o sigillo d'este amor poderia acarretar mais desgraças do que a sua revelação resentimentos. (Sáem ambos.)