Naquele dia fazia anos Estácio, e D. Úrsula assentara receber algumas pessoas a jantar, e outras mais à noite, em reunião íntima. Ela e Helena tomavam a peito fazer que a pequena festa de família fosse digna do objeto. Estácio opinou pela supressão do sarau; mas era difícil alcançar a desistência de corações que o amavam.
Logo de manhã, como ele se levantasse cedo, encontrou Helena que o convidou a segui-la à sala de costura.
— Quero dar-lhe o meu presente de anos, disse ela.
Ali entrados, abriu a moça uma pasta de desenhos, na qual havia um só, mas significativo: era uma parte da estrada de Andaraí, a mesma por onde eles costumavam passear, mas com algumas particularidades do primeiro dia. Dois cavaleiros, ele e ela, iam subindo a passo lento; ao longe, e acima via-se a velha casa da bandeira azul; no primeiro plano desciam o preto e as mulas. Por baixo do desenho uma data: 25 de julho de 1850.
Estácio não pôde conter um gesto de admiração, quando a moça retirou de cima do desenho a folha de papel de seda que o cobria. Apertou a mão de Helena e examinou o trabalho. Notou a firmeza das linhas, a exação das circunstâncias locais, as impressões de uma hora fugitiva que o lápis da irmã tivera a arte de fixar no papel.
— Não podia fazer-me presente melhor, disse ele; dá-me uma parte de si mesma, um fruto de seu espírito. E que fruto! Não há muita moça que desenhe assim. Era talvez por isso que você saía algumas vezes sozinha com o pajem?
Estácio contemplou ainda instantes o desenho; depois levou-o aos lábios. O beijo acertou de cair na cabeça da cavaleira. Foi o original que corou.
— Andavam a gabar os meus talentos, disse Helena após um instante; tive a vaidade de dar uma pequena amostra...
— Excelente amostra! Não acha, titia? disse o moço a D. Úrsula, que nesse instante aparecera à porta, trazendo o seu presente, numa bocetinha de joalheiro.
D. Úrsula não tinha, decerto, o instinto da arte; mas o amor da família lhe ensinara uma estética do coração, e essa bastou a fazê-la admirar o trabalho de Helena.
— Mas que digo eu todos os dias? exclamou D Úrsula. Esta pequena sabe tudo!
— Quase tudo, emendou Helena; ignoro, por exemplo, como lhes hei de agradecer...
— O quê, tontinha? interrompeu a tia. Algum disparate, naturalmente, impróprio em qualquer dia, mas muito mais ainda no dia de hoje.
Enquanto as duas senhoras foram tratar das disposições do dia, Estácio mandou selar o cavalo e saiu. Queria comparar ainda uma vez o desenho de Helena com o sítio copiado. A fidelidade era completa, e o quadro seria absolutamente o mesmo, se se dessem algumas circunstâncias da primeira ocasião. Helena não ia ao lado dele; mas a vinte braças de distância flutuava a bandeira azul da casa do alpendre. Estácio afrouxou o passo do cavalo, como saboreando as recordações da primeira manhã, quando Helena se lhe mostrara tão singularmente comovida. Volveu a refletir na situação dela, e na paixão que lhe confessara, dias antes, com tamanha veemência. Se se tratava de uma felicidade possível, embora difícil, Estácio prometeu a si mesmo alcançar-lha. Não era isso servir o sangue do seu sangue?
A casa do alpendre, até ali indiferente a Estácio, criava agora para ele um interesse especial. À medida que se aproximava, ia achando no edifício a fiel reprodução do desenho. Este não apresentava todas as particularidades da vetustez; mas continha as mesmas disposições exteriores, como se fora feito diante do original.
A uma das janelas estava um homem, com a cabeça inclinada, atento a ler o livro que tinha sobre o peitoril. Nessa atitude não era fácil examiná-lo; afigurava-se, entretanto, uma criatura máscula e bela. A duas braças de distância, o indivíduo levantou a cabeça, e cravou em Estácio um par de olhos grandes e serenos; imediatamente os retirou, baixando-os ao livro.
— Mal sabes tu, filósofo matinal, disse Estácio consigo, mal sabes tu que a tua casa teve a honra de ser reproduzida pela mais bela mão do mundo!
O filósofo continuou a ler, e o cavalo continuou a andar. Quando Estácio regressou daí a alguns minutos, achou somente a casa; o morador desaparecera; circunstância indiferente, que escapou de todo à atenção do moço. Nem ele pensava mais naquilo; o espírito trotava largo, à inglesa, como o ginete, e ambos bebiam o ar, como ansiosos de chegar ao ponto da partida.