Capítulo X

Os próceres do Romantismo

I. Porto Alegre

Manuel de araújo Porto Alegre nasceu no Rio Grande do Sul em 29 de novembro de 1806 e faleceu, feito Barão de Santo Ângelo, em Lisboa, em 29 de dezembro de 1879. Como crescidíssimo número de literatos brasileiros, era um autodidata. Após os primeiros e forçosamente mofinos estudos preparatórios feitos na sua província natal, veio para o Rio de Janeiro em 1827. Destinava-se à Academia Militar. Não indicava este propósito nenhuma vocação pela carreira das armas. Porto Alegre cedia à necessidade que levou tantíssimos moços brasileiros pobres a procurarem aquela escola para adquirirem economicamente uma instrução que de outro modo não poderiam fazer. Como lhe falhasse a matrícula na Academia Militar, voltou-se para a de Belas-Artes, onde ao cabo do primeiro ano alcançou o prêmio de pintura e arquitetura. O pintor Debret, daquele grupo de artistas franceses que no tempo de D. João VI vieram aqui fundar o ensino artístico, foi um dos seus mestres e por tal maneira se lhe afeiçoou, que regressando à França, em 1831, levou-o consigo. Até o ano de 1837 viajou Porto Alegre pela Bélgica, Itália, Suíça, Inglaterra e Portugal, e nessas viagens completou a sua instrução geral e educação artística. Voltando ao Brasil nesse ano, fundou com outros o Conservatório Dramático e a Academia de Ópera Lírica, e tomou parte ativa e conspícua no movimento literário do Romantismo, colaborando em várias revistas, dirigindo outras, trabalhando no Instituto Histórico e publicando obras diversas. Posteriormente entrou para o Corpo Consular, tornando à Europa, que desde 1859 quase sempre habitou e onde morreu. Em Paris pertenceu ao grupo da Niterói, revista brasileira de ciências, letras e artes ali publicada em 1836, e que serviu de órgão à iniciação da literatura brasileira no Romantismo. Do mesmo grupo eram Magalhães e Sales Tôrres Homem, que a política devia em breve tomar às letras. Nesse período estreou com o poema A voz da natureza, composto em Nápoles, em 1835. Este «Canto sobre as ruínas de Cumas» é naquela época um poema estranho, inteiramente fora dos moldes da poesia contemporânea, alguma coisa que, não obstante fraquezas de inspiração e forma, se aproxima da poesia bem mais moderna da Lenda dos séculos e que tais interpretações poéticas da história. Em 1843, noutra revista que foi parte importante no movimento do nosso Romantismo, a Minerva Brasiliense, deu Porto Alegre à luz as suas primeiras Brasilianas. Muito mais tarde as reuniu em volume com outras composições e este mesmo título, que era de si um programa literário.100 A sua intenção declara-o ele no prefácio, não lhe pareceu ficasse baldada, «porque foi logo compreendida por alguns engenhos mais fecundos e superiores que trilharam a mesma vereda». E em seguida confessa ter desejado «seguir e acompanhar o Sr. Magalhães na reforma da arte, feita por ele em 1836 com a publicação dos Suspiros poéticos e completada em 1856 com o seu poema da Confederação dos Tamoios». O testemunho precioso de Porto Alegre ratifica plenamente o consenso geral dos contemporâneos do papel principal de Magalhães no advento do nosso Romantismo. Porto Alegre é, entretanto, um engenho mais vasto, mais profundo, mais completo que o seu amigo e êmulo. E mais pessoal também, e mais intenso. Não obstante não é, como não era Magalhães, um romântico de vocação ou de índole. Pelo menos nenhum deles o foi como serão os da geração seguinte à sua. Ao Romantismo dos dous preclaros amigos faltam algumas feições, e acaso das mais características, desse importante fato literário, como o extremo subjetivismo e o individualismo insólito. Quase lhes ficou estranho, principalmente a Porto Alegre, o amor, que em Magalhães é apenas o amor comedido, burguês, doméstico, ao invés justamente do que cantavam e faziam os corifeus do Romantismo europeu. Esta falta lhes amesquinhou o estro e a expressão, em ambos sempre mais retórica, mais eloqüente mesmo que sentida. As Brasilianas são uma obra de escola e de propósito, em que a intenção, louvabilíssima embora e às vezes realizada com talento, é mais visível que a inspiração. Estão muito longe da emoção sincera e tocante das Americanas, de Gonçalves Dias, que viriam dar ao íntimo sentimento brasileiro, qual era naquele momento histórico, a sua exata expressão.

A obra capital de Porto Alegre é, porém, o grande poema Colombo, publicado em 1866, em pleno Romantismo, quando a poesia brasileira havia já rompido com a tradição poética portuguesa antiga, e florescia aqui a segunda geração romântica. Entrementes, de 1844 a 1859, escrevera, fizera representar ou publicar várias peças de teatro, libretos de ópera, dramas, comédias e outras obras, que se nenhuma lhe assegura renome como autor dramático, demonstram-lhe todas a versatilidade do engenho e a atividade literária, e serviram para impedir não secasse a corrente iniciada com Magalhães e Martins Pena e para, materialmente ao menos, avolumarem-na. No mesmo período da sua estadia no Brasil antes do Consulado, escreveu em periódicos cujo fundador, diretor ou simples colaborador, foi, viagem, crítica literária e de arte, biografias, pronunciando como orador do Instituto Histórico vários discursos, que são talvez a sua obra mais notável em prosa. Na Revista dessa associação publicou a sua conhecida Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense e artigos de iconografia brasileira. Como a quantos do mesmo gênero escreveu, os inspirava mais a intenção patriótica de exalçar além do legítimo cousas da pátria que discreto senso crítico. Mas era moda louvar descomedidamente, engrandecer sobre posse, tudo o que era nosso, na ingênua esperança de nos valorizarmos. A índole de si mesma entusiasta e pomposa de Porto Alegre cedeu gostosamente à moda.

A obra de prosador de Porto Alegre é menos considerável que a de Magalhães, e não foi, como a deste, jamais reunida em livro. Menos vernáculo como prosador que o seu êmulo, o é muito mais como poeta, no Colombo. Mas sobretudo lhe é superior pela abundância e vigor das idéias, movimento e colorido do estilo, e brilho da forma. Neste, como é muito nosso, freqüentemente excede-se e cai no empolado e no retórico. Magalhães escreve mais natural e simplesmente, sem aliás evitar sempre os extremos, o banal e o inchado. Esta marca do verdadeiro escritor, ter idéias gerais, Porto Alegre é um dos primeiros dos nossos em que se nos depara.

É extraordinariamente raro que ainda um homem de grande engenho, como sem dúvida era Porto Alegre, resista às influências e se forre aos preconceitos do seu ambiente espiritual. Em plena pujança das suas faculdades literárias, aos cinqüenta anos e em mais de metade do século que rompera com a tradição clássica das grandes epopéias, compôs e publicou um poema de um prólogo e quarenta cantos com mais de vinte e quatro mil versos, Colombo.

Por mais difícil que se nos antolhe a leitura deste extensíssimo poema, merece ele que vençamos a nossa hodierna repugnância de ler grandes epopéias e o leiamos. Há nele uma realmente assombrosa imaginação e fecundidade de invenção, insignes dons de expressão verbal, como raro se achará outro exemplo na poesia da nossa língua, magnificências de descrições verdadeiramente primorosas, revelando no poeta o artista plástico, um nobre intuito quase sempre felizmente realizado de pensamento, correção quase impecável de versificação, vernaculidade estreme, engenhosas audácias de criação e de expressão, e outras qualidades que o fazem uma das mais excelentes tentativas para reviver na nossa língua, se não nas literaturas contemporâneas, essa espécie de poemas. Mas os gêneros ou formas literárias valem também por sua conformidade com o tempo que os produziu. O poema de Porto Alegre vinha já de todo obsoleto e inoportunamente, com um maquinismo poético apenas suportável na pura lenda e não em uma epopéia de fundo histórico. Representa um em todo caso nobre esforço de vontade de uma inspiração que não podia ser natural e espontânea, por desconforme com tudo quanto constitui a mentalidade e estimula o estro do poeta. O leitor pode admirar o meio sucesso desse ingente esforço. Mas não lhe sente emoção capaz de comovê-lo até lhe fazer aceitar essa nova criação épica. O Colombo é uma obra mais de razão e de inteligência que de instinto e sentimento, como foram os monumentos poéticos que ele anacronicamente procurava continuar.

II. Teixeira e Sousa

Fluminense, como a maior parte dos primeiros românticos, Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa nasceu em Cabo Frio aos 28 de março de 1812 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro em 1.º de dezembro de 1861. Teve algo de romântica a vida do criador do romance brasileiro. Filho legítimo de um português com uma preta, apenas fazia os seus primeiros estudos quando se viu obrigado, pela precária situação econômica da família, a abandoná-los e adotar uma profissão mecânica, a de carpinteiro. Por alguns anos exerceu este ofício no Rio de Janeiro, para onde viera de Itaboraí com o fim de nele aperfeiçoar-se. Cinco anos depois regressou à terra natal. Tinham-lhe morrido os quatro irmãos mais velhos. Aos vinte anos achou-se só no mundo, com escassíssimos bens que lhe herdara o pai. Senhor de si, voltou aos estudos com o mesmo antigo ardor e o mesmo mestre, o cirurgião Inácio Cardoso da Silva, professor régio em Cabo Frio, e também poeta, cujos versos Teixeira e Sousa mais tarde piedosamente reuniu e publicou. Em 1840 voltou ao Rio de Janeiro, onde a simpatia de cor, de engenho poético e de amor às letras facilmente o ligou a Paula Brito.

Francisco Paula Brito (1809-1861) é, na sua situação secundária, uma das figuras mais curiosas e mais simpáticas dessa época literária. Nascido no Rio de Janeiro, de gente de cor e humilde, chegou-lhe a puberdade e juventude em pleno movimento da Independência e estabelecimento da monarquia, e dessa época conservou o ardor patriótico e o desvanecido nacionalismo que a assinalou. De quase nenhumas letras, mas inteligente e curioso, despertou-se-lhe o gosto por aquelas e pelos seus cultores no trato de umas e outros, no exercício do seu ofício de tipógrafo. Mais tarde montou uma imprensa de conta própria, à qual anexou uma loja de livros. Como fosse muito caroável de literatos, a quem com periódicos que fundou, como a Marmota (1849-1861), oferecia a satisfação de se verem publicados e louvados, a sua loja, no antigo Largo do Rossio, tornou-se o prazo dado da mocidade literária do tempo, e, como era igualmente patriota ardente e chefe político de bairro, freqüentavam-no também homens públicos notáveis, doutores e outros letrados. Por ser a sua loja um centro de notícias, palestras e novidades da vida urbana que não seriam sempre de extrema veracidade e antes facilmente mentirosas, deu-lhe o povo a alcunha de «A Petalógica». Foram seus habituados todos os nossos primeiros e ainda muitos dos segundos românticos, de todas as graduações. Desse comércio com letrados, a inteligência aberta e pronta de mestiço de Paula Brito tirou o melhor proveito. Ele também se fez escritor e poeta. Aliás o foi em tudo mediocremente, revelando apenas um generoso esforço e excelentes intenções de servir as letras nacionais, e a mesma sociedade, com publicações de caráter educativo, moralizador e patriótico, edições de obras brasileiras e também com as suas produções em prosa e verso. Mais rico de boa vontade que de bens de fortuna, não só acolheu, apresentou, protegeu os jovens de vocação literária que o procuravam, como festejou, celebrou, preconizou os literados já feitos, mecenas quase tão pobre e desvalido como os seus protegidos, e sequer sem idoneidade para mentor literário, teve entretanto o amável Paula Brito ação apreciável e frutuosa no momento em que a sua loja, se não ele, era o centro da vida literária no Rio de Janeiro.

Teixeira e Sousa foi simultaneamente empregado e colaborador literário de Paula Brito, em cuja célebre loja conheceu, imagina-se com que cândida admiração, os sujeitos mais afamados em letras, a roda literária, habituada da Petalógica. Aí repartia o tempo que lhe deixava a freguesia entre ouvir aqueles personagens e escrever os seus primeiros versos. Começou por composições dramáticas, mas como se lhe não abrissem as portas do teatro, e na doce ilusão de ganhar mais alguma cousa do que lhe podia dar o patrão e amigo, fez romances. Escusa dizer que nem versos nem romances lhe deram fortuna. Era, porém, uma real vocação literária, desajudada embora de gênio e de cultura. Não só não desanimou, mas na constância do engano que lhe acalentava a ambição, e vendo a proteção que recebiam alguns letrados, imaginou compor um poema que lha atraísse. E o compôs numa improvisação rápida, em doze cantos de oitava rima, à moda de Camões. Escritos os seis primeiros, foi com eles, como carta de recomendação, ao ministro da Fazenda solicitar-lhe um emprego. Deu-lhe o prócere o de guarda da Alfândega com 400 mil-réis anuais, o que para o tempo e situação do poeta não seria tão mau como figurou Norberto na biografia de Teixeira e Sousa. O poema é A independência do Brasil, mais um dos muitos pecos rebentos da árvore camoniana, e este de todo mofino. A crítica, com Gonçalves Dias à frente, foi-lhe impiedosa. À vista, porém, da sua condescendência habitual com não melhores frutos da musa indígena contemporânea, é lícito supor que a humildade de condição do poeta fosse parte na justiça que lhe faziam. Desse péssimo poema salvou-se o autor com um verso que, como aquele também único verso da tragédia troçada por Pailleron, é bom, e ficaria proverbial:

Em nobre empresa a mesma queda é nobre.

Magalhães o citaria, sem nomear o autor, no seu prefácio dos Fatos do espírito humano, deturpando-o. Um escritor português, com a incoercível antipatia com que quase sempre olharam os escritores seus patrícios para os nossos, chamou-lhe de Camões africano. Esquecia que Camões como Teixeira e Sousa os tem havido em barda na sua terra, como lhe não lembrava que desde o século XV havia uma numerosíssima escravaria negra em Portugal... Auxiliado por amigos e associado a Paula Brito, abandonando o mesquinho emprego, abriu uma oficina tipográfica conjuntamente loja de objetos de escritório. Casou, fez família e maus negócios, fechou a loja e aceitou para viver o lugar de mestre-escola do Engenho Velho com casa e 800 mil-réis anuais, nomeado pelo marquês de Monte Alegre. Sem jeito nem gosto pela ingrata profissão de mestre de meninos, pediu ao Ministro Nabuco lhe desse a escrivania vaga de Macaé. Nabuco fez melhor, nomeou-o para uma escrivania da Corte, o que era para ele quase a abastança: escrivão da Primeira Vara do Juízo do Comércio do Rio de Janeiro. Foi isto em 1855. Mal passados seis anos morria Teixeira e Sousa com 49 anos de idade. Fora carpinteiro, tipógrafo, caixeiro, revisor de provas, guarda da Alfândega, editor, mestre-escola e por fim escrivão do Foro. Mas sobretudo foi, com mal empregada e malograda vocação, homem de letras. E não as tinha de todo más, pois compunha versos latinos e era lido nas literaturas modernas.

Antes do mal sorteado poema da Independência do Brasil, publicara Teixeira e Sousa dous volumes de poesias com o título de Cânticos líricos (1841-1842) e o poema romântico, em cinco cantos, de versos endecassílabos soltos, Os três dias de um noivado (1844), inspirado de uma lenda indígena. Mais de uma daquelas poesias e um ou outro passo deste poema dizem que havia um poeta, que porventura apenas carecia de cultura e polimento, neste desventurado amador das letras. Um soneto seu ao menos, embora o prejudique o amaneirado do estilo, é um dos melhores do tempo e já prenuncia o lirismo da segunda geração romântica, muito mais subjetivo do que o era o da primeira. É este:

Vi o semblante teu, morri de gosto, amei-te e tu regeste a minha sorte; tu foste a minha estrela, e tu meu norte; que mágico poder tem o teu rosto!

Foste ingrata, mudou-se o teu composto, sofri da ingratidão o cruel corte, anelei no meu mal a torva morte; que mágico poder tem o desgosto!

Choras arrependida?... Ó! Não, serena, serena o rosto teu meu doce encanto; que mágico poder tem tua pena!

Resistir aos teus ais... quem pode tanto?! Que te adore outra vez amor ordena; que mágico poder não tem teu pranto!

Não é, porém, como poeta que Teixeira e Sousa tem um lugar nesta geração e nesta História, mas como o primeiro escritor brasileiro de romance, portanto o criador do gênero aqui. O Período Colonial que com Nuno Marques Pereira tivera no Peregrino da América a primeira ficção, essa, porém, de moral e edificação religiosa, nada produziu que se possa chamar de novela ou romance. A renovação literária indicada por Magalhães produzira algumas novelas e contos, publicados geralmente nos periódicos dessa época e muito poucos dados à luz em volume. Daquelas, a mais antiga são As duas órfãs, de Noberto, aparecida em 1841. Romance propriamente, o primeiro é o Filho do pescador, de Teixeira e Sousa, de 1843. Sucessivamente publicou Teixeira e Sousa mais cinco romances, As fatalidades de dous jovens (1846), Maria ou a menina roubada (1859), Tardes de um pintor ou as intrigas de um jesuíta (1847), A providência (1854), Gonzaga ou a conspiração de Tiradentes (1848-1851). Destes, alguns saíram primeiramente em jornais e periódicos, como a Marmota de Paula Brito. Por esta constância de produção num gênero que, antes que Macedo o seguisse em 1844 com A moreninha, era ele o único a cultivar, ganhou Teixeira e Sousa direito inconcusso ao título de criador do romance brasileiro. Os seus infelizmente tornaram-se para nós ilegíveis, tanta é a insuficiência da sua invenção e composição, e também da sua linguagem.

Se houvéramos de aceitar a precedência cronológica como única ou principal indicação de prioridade literária -que antes deve ser julgada pela valia e influxo da obra, a Teixeira e Sousa caberia também a primazia na introdução do nosso segundo indianismo. Com efeito, de parte algumas passageiras referências a assuntos indígenas, ou episódicas apresentações de índios em alguns poemas da fase imediatamente anterior ao Romantismo, é ele o primeiro a fazer do nosso selvagem tema de uma ficção em verso e a tomar índios para suas personagens principais nos Três dias de um noivado, «poema romântico» de que a Minerva Brasiliense publicou fragmentos em 1843 e que veio a lume em 1844. Que o inspirara ou estimulara a invenção de Chateaubriand do indianismo na literatura francesa com a sua Atala, fornece ele próprio um documento na seguinte estrofe do seu poema:

Tu que de ermos ásperos, inóspitos do Grão Meschacebeu viste os arcanos; que debuxaste dos agrestes íncolas a par de usos seus, beleza egrégia na melindrosa virgem das palmeiras, com sublime pincel, bardo sicambro, tua Atala tão gentil, tão pura e meiga, perdoa, inda era menos que Mirília.

É que, sob a influência do Romantismo europeu, em revolta contra o classicismo, o indianismo se apresentava à nossa mente revoltada contra a hegemonia literária portuguesa, que era o nosso classicismo, como o nosso natural recurso de reação espiritual nacionalista. Foi antes o estímulo político da Independência que a ação de nossos escritores uns sobre os outros que originou aqui o indianismo romântico e o generalizou. Ao mesmo tempo que Teixeira e Sousa escrevia, talvez ainda em Itaboraí, esse poema já indianista de inspiração, assunto e sentimento (1842-43), Gonçalves Dias, segundo informe fidedigno no seu biógrafo A. H. Leal, compunha as poesias americanas que deviam vir à luz em volume no Rio em 1846, e criar pela força de beleza que trazia o indianismo.

III. Pereira da Silva

João Manuel Pereira da Silva nasceu no Rio de Janeiro a 30 de agosto de 1817 e faleceu em Paris a 14 de junho de 1898. Era formado em Direito pela Faculdade de Paris, foi deputado geral, presidente de província e exerceu outras funções públicas igualmente importantes. Escritor abundante, como todos os do grupo de que fez parte, foi historiador político e literário, biógrafo, crítico, romancista e poeta. É o tipo do amador, do diletante, em letras, escrevendo pelo gosto, acaso pela vaidade de escrever, sem no íntimo se lhe dar muito do que escreve e menos de como escreve. Tinha sem dúvida vocação literária, mas sem dons correspondentes que a fecundassem. Escrever era para ele um hábito, como que um vício elegante, qual jogar as armas ou montar a cavalo, um desporto agradável e distinto. Não lhe importava nem a têmpera das armas nem a qualidade do animal, o essencial para ele era jogá-las ou montá-lo. Assim a sua obra copiosa e volumosa, importante pelos assuntos, pouco vale pelo fundo e pela forma. Historiador, escreveu história com pouco estudo, com quase nenhuma pesquisa, sem crítica nem escrúpulos de investigação demorada e paciente; crítico, não passa de um elogiador retórico, com vasta mas superficial leitura das literaturas modernas e mal assimilada conquanto extensa informação literária, sem idéias próprias nem alguma originalidade; poeta, é menos que medíocre, e romancista, carece absolutamente de imaginação. Mas como veio sempre escrevendo desde a inauguração do Romantismo até o pleno modernismo, por mais de cinqüenta anos, dando um exemplo raro de constância no labor literário, o seu nome ganhou em suma certa aura e a sua figura literária ficou até a sua morte em evidência, e, ao menos por aquela virtude, estimada. O exemplo seria demais belíssimo se outro fosse o valor da sua volumosa obra. Desta apenas lhe sobrevive ainda, antes por ser a única no gênero que pelo merecimento que possa ter, a História da fundação do império brasileiro (Paris, 1864-1868), aliás cheia de inexatidões e falhas, como todas as suas obras históricas.

Se Teixeira e Sousa foi o criador do romance que nos habituamos a chamar de brasileiro, isto é, o que representa a nossa vida comum e descreve os nossos costumes, paisagens, tipos, foi entretanto Pereira da Silva quem, precedendo-o, criou o romance de ficção histórica, então em voga com Walter Scott e seus primeiros discípulos. Ufanava-se com motivo no prefácio da primeira edição do seu Jerônimo Corte Real, «crônica do século XVI», de que este era um dos primeiros da literatura portuguesa moderna, pois que viu a luz do dia nos anos de 1839. Realmente só o precedeu em Portugal o Arco de Sant'Ana, de Garrett, que é de 1833. Em 1839 publicou Pereira da Silva o romance histórico O aniversário de D. Miguel em 1825, mas é apenas uma novela de trinta e três páginas, como é apenas uma novela de poucas mais páginas Religião, amor e pátria, saída no mesmo ano. Jerônimo Corte Real também teve a sua primeira publicação no Jornal do Comércio em forma de curta novela, que o autor ampliou em romance, alongando-o aliás com desenvolvimento impertinente, quando a deu em livro de 240 páginas, em 1865. Do mesmo gênero de Jerônimo Corte Real é Manoel de Morais, «crônica do século XVII». Sabendo-se como ele fazia história, avalia-se como faz o romance histórico. Os seus realmente não têm valia alguma como quadro das épocas que presumem pintar, nem qualidades de imaginação ou expressão que lhes atenuem esse defeito. Esta aliás é talvez melhor nestes seus dous romances que no resto dos seus livros, e, em todo caso, é superior à dos de Teixeira e Sousa.

É Pereira da Silva um dos criadores da nossa história literária. Precedeu mesmo Varnhagen nesses estudos, mas de pouco lhe vale essa precedência meramente cronológica, porque o que fez nesse gênero, quer no Parnaso Brasileiro (1843) quer no Plutarco Brasileiro (1847), não tem a originalidade nem a segurança dos trabalhos de Varnhagen. São a repetição sem crítica do já sabido, com muitas novidades de pura invenção ou de falha ou viciosa informação. Acham-se-lhe porém na obra crítica, desde 1842, alguns conceitos que deviam mais tarde ser espalhafatosamente apresentados como originais e inéditos. Tal é o de literatura que aquela data já Pereira da Silva declarava ser «o desenvolvimento das forças intelectuais todas de um povo; o complexo de suas luzes e civilização; a expressão do grau de ciência que ele possui; a reunião de tudo quanto exprimem a imaginação e o raciocínio pela linguagem e pelos escritos». Sem menosprezar-lhe inteiramente as constantes provas do seu gosto das letras e da sua longa persistência em documentá-lo com obras de toda a espécie, os seus contemporâneos, não obstante as sinceras louvaminhas de parceiros, não se enganaram sobre o valor da sua obra, e apenas mediocremente o estimaram como escritor. A história da literatura lhes ratificará este sentimento.

IV. Varnhagen

Cronologicamente pertence também a esta geração um escritor que, sem ter como tal grandes recomendações, foi todavia um dos mais prestimosos da literatura e da cultura brasileira: Francisco Adolfo de Varnhagen. Nasceu em Sorocaba (S. Paulo) em 17 de fevereiro de 1816 de pai alemão, criou-se e educou-se em Portugal, onde passou a infância e juventude. Conquanto houvesse percorrido uma grande extensão do litoral e ainda do sertão brasileiro, em viagens de observação e estudo, nunca propriamente habitou o Brasil, quero dizer, nunca nele se demorou com ânimo de se domiciliar. O fato de sua origem germânica e formação portuguesa e européia, da sua constante ausência e pouca convivência do seu país natal e mais tarde de ter constituído família fora dele, dão a Varnhagen uma fisionomia particular, um todo nada exótico. Da estirpe germânica tirava seu instinto de veneração e respeito dos magnates, dos poderosos, das instituições consagradas e das cousas estabelecidas. É talvez o único brasileiro sem falha neste particular, justamente porque é em suma pouco brasileiro de temperamento, de índole e ainda de sentimento. Levou-o à pia batismal o próprio capitão general da província em que nasceu, o Conde de Palma. Desde aí é com tais próceres que anda. Como historiador, raro acha a censurar nos que têm o mando, ao contrário esforça-se por lhes encontrar sempre razões e desculpas. Do mesmo modo justifica sempre todas as instituições, descobre-lhes ou inventa-lhes virtudes e benefícios. Mal pode esconder o júbilo e a vaidade pela troca feita pelo imperador, seu amigo e protetor, do seu nome já glorioso de Varnhagen pelo de visconde de Porto Seguro. Consagrou toda a sua laboriosa existência a estudar a história do Brasil, e a servi-lo com dedicação e zelo em cargos e missões diplomáticas. Sente-se-lhe, entretanto, não sei que ausência de simpatia, no rigor etimológico da palavra, pelo país que melhor que ninguém estudou e conhecia, e era o do seu nascimento. Não é patriotismo, entenda-se, que lhe desconhecemos, esse o tinha ele, como qualquer outro e do melhor. Faltava-lhe, porém, não lho sentimos ao menos, aquele não sei que íntimo e ingênuo, mais instintivo que raciocinado, sentimento da terra e da gente. Ele não tem as idiossincrasias do país. Por isso Varnhagen não é de fato romântico, senão pela época literária em que viveu e colaborou; de todos os brasileiros seus contemporâneos no período inicial do Romantismo, é talvez o único que além de não ser indianista, isto é, de não ter nenhuma simpatia pelo índio como fator da nossa gente, ao contrário o menospreza, o deprime e até lhe aplaude a destruição. É também o único que altamente estima o português, lhe proclama a superioridade, oculta ou disfarça os defeitos do regime colonial e, propositadamente, lhe adota o pensamento e a língua. Só ele dos seus companheiros a escreveria vernaculamente, sem sequer o incoercível brasileirismo da posição dos pronomes, todos neles indefectivelmente postos à portuguesa. Mas a escreve apenas corretamente, de estudo e propósito, com esforço manifesto, sem espontaneidade, fluência ou elegância, nem os idiotismos por que o verdadeiro escritor revela a sua nacionalidade. Por tudo isto se não achou Varnhagen em simpatia com os seus confrades de geração, nem estes com ele. Enquanto por espírito de camaradagem e muito também de solidariedade na obra que juntos amorosamente faziam, eles se não regateavam mútuos encômios e acoroçoamentos freqüentemente desmerecidos e indiscretos, olvidavam a Varnhagen ou o tratavam como colaborador somenos. Raramente se lhe acha o nome, e ainda assim parcamente elogiado, nos muitos escritos com que reciprocamente se sustentavam e à sua causa. Será porque não compreendessem a importância para esta da obra de erudição que ele fazia? Será porque a esses poetas, que todos sobretudo o eram, essa obra parecesse de pouco alcance literário e pouco gloriosa? No entanto quase todos eles faziam também história, mesmo literária. É verdade que a faziam de palpite, como poetas, sem investigação própria, sem acurado estudo, retórica e declamatoriamente, com a sua imaginação ou repetição do já feito pelos portugueses. Apenas Norberto, mas somente em parte da sua obra, escapa a este reproche.

O primeiro escrito considerável de Varnhagen, já da sólida erudição de que ele seria um dos raros exemplos nas nossas letras, foram as suas Reflexões críticas sobre a obra de Gabriel Soares, publicadas no tomo V da «Coleção de notícias para a história e geografia das nações ultramarinas» pela Academia Real das Ciências de Lisboa (1836). Começando a sua fecunda iniciativa da rebusca e publicação de monumentos interessantes para a nossa história geral, dá, em 1839, à luz, também em Lisboa, o Diário da navegação, de Pêro Lopes.

Em 1840 escreve no Panorama, o célebre órgão da renovação literária portuguesa, uma Crônica do descobrimento do Brasil, que seria o primeiro romance brasileiro se não fosse apenas uma dessaborida crônica romanceada sobre a carta de Caminha, cujo descobridor na Torre do Tombo foi Varnhagen. Sem falar em outros seus escritos de maior interesse português que brasileiro, dos anos imediatamente subseqüentes, enceta em 1845, com os Épicos brasileiros, nova edição prefaciada e anotada dos poemas de Santa Rita Durão e Basílio da Gama, as suas publicações diretamente relativas à nossa história literária, pouco depois prosseguidas com a do Florilégio da poesia brasileira ou coleção das mais notáveis composições dos poetas brasileiros falecidos, contendo as biografias de muitos deles, tudo precedido de um «Ensaio Histórico sobre as Letras do Brasil».

Pelo rigoroso e acurado da sua investigação e estudo e dos seus resultados, pela novidade das suas notícias, pelo inédito e seguro da sua informação, pelo número e justeza de algumas de suas idéias gerais, pela largueza de sua vista, esta obra de Varnhagen lançava os fundamentos, e o futuro provou que definitivos, da história da nossa literatura. Não valem contra este conceito a precedência meramente cronológica de alguns tímidos e deficientíssimos ensaios de Cunha Barbosa, de Pereira da Silva, de Norberto, de Magalhães e outros, que apenas repetiram as conhecidas notícias dos bibliógrafos e memorialistas portugueses, sem lhe acrescentar nada de novo, e ainda errando o que já andava sabido. Neste investigar dos nossos primórdios literários, continuado na sua História geral do Brasil, onde em vários passos se ocupa da nossa evolução literária, e em papéis e memórias diversas publicadas em periódicos e revistas, descobriu, noticiou, editou e fez editar Varnhagem alguns preciosos escritos. Tais foram os Diálogos das grandezas do Brasil, de Gabriel Soares, a Narrativa epistolar, de Cardim, a Prosopopéia, de Bento Teixeira, a História do Brasil, de Fr. Vicente do Salvador, sem contar quantidade de espécies novas para a vida e obra de outros escritores do período colonial.

A obra capital de Varnhagen é, porém, a sua História do Brasil, que ele chamou de Geral por abranger nela todas as manifestações da nossa vida e atividade, ainda a literária e a artística. Publicada primeiro em 1857 e reeditada em 1872, é um livro de primeira ordem, se não pela sua estrutura, ainda assim não de todo defeituosa, pelo bem apurado dos fatos, riqueza e variedade das informações, harmonia do conjunto e exposição geralmente bem feita. Sem imaginação, sem qualidades estéticas de escritor, sem relevo ou elegância de estilo, Varnhagen escreve, todavia, decorosamente. Merece igual apreciação outra considerável obra sua, a História das lutas com os holandeses, publicada já fora do período romântico. Na nossa literatura histórica, as obras de Varnhagen são certamente o que temos de mais notável.

Tentou ele, como vimos, pela sua Crônica romanceada do Descobrimento do Brasil, as obras de imaginação ou de ficção. Carecendo de qualidades de imaginação e fantasia e de estilo, não lhe podia suceder bem. O seu Amador Bueno, «drama épico-histórico-americano» (Lisboa, 1847, Madri, 1858), com o seu Sumé, «lenda mito-religiosa-americana», e o seu Caramuru, romance histórico brasileiro, em redondilhas de seis sílabas, saído primeiro no Florilégio e depois em separado, apenas lhe documentam a incapacidade para essa espécie de literatura. É pela sua obra de historiador e de erudito que Varnhagen merece, e tem, um distinto lugar na história da nossa literatura, da qual foi o criador e permanece o alicerce ainda inabalado.

Varnhagen veio a falecer longe do Brasil, como sempre tinha vivido, em Viena d'Áustria, a 20 de junho de 1878.

A filosofia da História de Varnhagen é a comum filosofia espiritualista cristã do seu tempo, com o pensamento moral e político da sua educação portuguesa. É em história um providencialista, em política um homem de razão de Estado, da ordem, da autoridade e do fato consumado. Depois de narrar as depredações do corsário inglês Cavendish nas costas do Brasil, diz que veio a «falecer no mar, dentro de pouco tempo, provavelmente ralado pelos remorsos» (Hist. geral, I, 391). Os remorsos matarem um corsário do século XVI! Duguay-Trouin, regressando do seu assalto feliz ao Rio de Janeiro, «sofreu temporais que lhe derrotaram a esquadra, como se a Providência quisesse castigar os que os nossos haviam deixado impunes» (ibid. II, 816). Malogrou-se a revolução pernambucana de 1817. «Ainda assim desta vez (e não foi a última) o braço da Providência, afirma seriamente Varnhagen, bem que à custa de lamentáveis vítimas e sacrifícios, amparou o Brasil, provendo em favor da sua integridade» (ibid. 1150, II). Esta filosofia tem ao menos a vantagem de não ser presunçosa e de dispensar qualquer outra. Era aliás a do tempo, e dela se serviram aqui todos os historiadores sem exceção de João Lisboa, o mais alumiado de todos. Varnhagen, porém, com abuso, piorando o seu caso com o carrancismo da sua educação portuguesa se não de seu próprio temperamento literário.

V. Norberto

Joaquim Norberto de Souza Silva nasceu no Rio de Janeiro a 6 de junho de 1820 e faleceu em Niterói a 14 de maio de 1891. Nesta geração de laboriosos homens de letras, foi um dos mais laboriosos, e a alguns respeitos, um dos melhores e mais úteis deles. Ou porque a existência fosse então mais fácil ou porque o amor desinteressado das letras fosse então maior, é certo que nenhuma geração literária brasileira antes ou depois desta trabalhou e produziu tanto como esta. As bibliografias de Norberto enumeram-lhe cerca de 80 obras diversas, grandes e pequenas, desde 1841 publicadas em volume ou em jornais e revistas, afora prefácios, introduções crítico-literárias a obras que editou e outras. No acervo literário encontra-se-lhe de tudo, poesia de vários gêneros, teatro, romance, biografia, ensaios e estudos literários, administração pública, história política e literária e crítica. Como Norberto não tinha nem o talento, nem a cultura, pois era um fraco autodidata, que presume tamanha e tão variada produção, é ela na máxima parte medíocre ou insignificante. Deste enorme lavor apenas se salvam, para bem da sua reputação, os seus vários trabalhos sobre as nossas origens literárias, os seus excelentes estudos sobre os poetas mineiros, a sua grande e boa monografia da Conjuração Mineira e algumas memórias históricas publicadas na Revista do Instituto. Por aqueles trabalhos é Norberto, depois de Varnhagen, o mais prestimoso e capaz dos indagadores da história da nossa literatura, um dos instituidores desta. Como crítico, porém, sacrifica demais ao preconceito nacionalista de achar bom quanto era nosso, de encarecer o mérito de poetas e escritores somenos, no ingênuo pressuposto de servir à causa das nossas letras. Ele as serviu otimamente aliás, menos pelo que de original produziu, que é tudo secundário, ou por esse zelo indiscreto delas que fê-las suas conscienciosas investigações de alguns tipos e momentos da nossa história literária, e publicações escorreitas de algumas obras que andavam inéditas ou dispersas e desencontradiças dos nossos melhores poetas coloniais.

Concorreu mais para avultar grandemente a produção literária do seu tempo e geração. Na esteira de Magalhães fez também poesia americana, cantou os índios, pôs em verso cenas e episódios da nossa história ou das nossas tradições, e, até, com pouco engenho e nenhum sucesso, tentou a naturalização da balada, forma poética por sua singeleza absolutamente antipática à gente, como a portuguesa e a nossa, de alma pouco ingênua e que de raiz ama a eloqüência da poesia. Em Norberto se exagera o espiritualismo sentimental de Magalhães, e o seu maneirismo poético. Além dos portugueses e brasileiros lê o pseudo-Ossian, Lamartine, George Sand (ainda então M.me Du Devant, como a cita), A. de Vigny, Delavingne e Chateaubriand, Lope de Rueda, Victor Hugo, Parny, Ducis, Shakespeare. O alimento romântico não lhe tira toda a substância clássica, e, cedendo-lhe, escreve também uma tragédia em verso, em cinco atos, respeitando deliberadamente as regras aristotélicas: Clitemnestra. Das peças que escreveu Norberto, parece que a única representada, em 1846, e por João Caetano, foi Amador Bueno ou a fidelidade paulistana, em 5 atos. Também se representaram traduções suas do Tartufo, de Molière, e do Carlos VII, de Dumas pai, segundo a informação pouco segura de Sacramento Blake.

Noberto foi mais o criador, se não do romance brasileiro da ficção novelística em prosa aqui. A sua novela, aliás por ele mesmo chamada de romance, As duas órfãs, foi publicada em 1841 (8.º, 35 págs.), dois anos portanto antes do Filho do pescador, de Teixeira e Sousa, que é de fato pelo desenvolvimento e volume o primeiro romance brasileiro. Em 1852 reuniu Norberto essa e mais três novelas sob o título, impróprio quanto ao primeiro termo, de Romances e novelas, num volume em oitavo de 224 páginas. São todas de assunto e inspiração nacional. A intuição que Norberto tinha do romance acha-se expressa na sua notícia sobre Teixeira e Sousa: «expandir-se pelas minuciosidades das descrições dos quadros da natureza, perder-se em reflexões filosóficas e demorar-se nas trivialidades de um enredo cheio de incidentes para retardar o desenlace da ação principal».

Certamente Teixeira e Sousa nos seus longos romances cumpriu mais à risca este programa, aliás da sua índole e gosto; Norberto, porém, ainda nas suas novelas o seguiu.

Norberto publicou várias coleções de poesias, quatro ou cinco pelo menos, além de numerosos poemas que em tempos diversos saíram em períodicos e não foram jamais reunidos. Embora muito apreciados no seu tempo, nenhum só desses poemas viveu na nossa memória ou sobreviveu ao poeta. A história literária é uma impertinente e implacável desconsoladora da vaidade literária, patenteando a do próprio trabalho das letras e o efêmero e precário da glória contemporânea. Mas no seu tempo, ao menos, não foi de todo vão esse ímprobo labor dos Norbertos, dos Teixeiras e Sousas e de outros companheiros seus na criação da nossa literatura. Eles trouxeram a pedra que por oculta e desconhecida nem por isso deixa de ter servido para levantar o edifício.

Não obstante haver compilado um volume de estudos alheios da língua portuguesa, o que faria supor-lhe particular estudo dela, Norberto não escreveu bem. Como os escritores seus confrades de escola e companheiros de geração, não teve mesmo a nossa preocupação de bem escrever, com acerto e elegância. É geralmente natural desataviado, mas não raro também incorreto. Quando se quer elevar a um estilo mais castigado, guinda-se e cai no empolado e no difuso. Perpetra menos galicismos do que hoje e do que o vulgo dos escritores portugueses seus contemporâneos. Aliás os da sua geração incorriam menos nesse defeito que os posteriores.

A sua obra capital em prosa é a História da Conjuração Mineira, nada obstante a opinião que dela possa fazer o nosso sentimentalismo político, uma das boas monografias da nossa literatura histórica. E mais bem ordenada e composta do que é comum em livros tais aqui escritos. Além disso, o que também não é aqui vulgar, uma obra original, feita principalmente com pesquisas próprias e de estudo pessoal.

VI. Macedo

Joaquim Manuel de Macedo nasceu em Itaboraí, na província do Rio de Janeiro, em 24 de junho de 1820, e morreu na cidade do Rio de Janeiro em 11 de abril de 1882. Foi historiador, poeta, romancista, corógrafo, dramaturgo e comedista, além de jornalista político e literário. Nem pelo vigor do pensamento, nem por qualidades de expressão literária, se abaliza como escritor. É como criador, com Magalhães e Teixeira e Sousa, e mais eficaz do que estes, do romance brasileiro, como um dos principais fomentadores do nosso teatro, e porventura o seu melhor engenho, como autor de um poema romântico, no gênero um dos melhores produtos literários dessa época, e enfim pela influência que, principalmente como romancista, exerceu, que Macedo é um dos tipos mais vivos da nossa literatura. Foi um dos escritores mais fecundos que temos tido, talvez o mais fecundo. Deixou mais de vinte romances, quase outras tantas peças de teatro, poesia e aquele poema romântico em seis cantos, livros de história e corografia do Brasil, quatro grossos volumes de biografia, obras didáticas, discursos acadêmicos e políticos, além de estudos históricos, e folhetins e artigos diversos de sua colaboração em jornais e revistas. Afora os romances, o teatro e aquele poema, o resto é de somenos valor. Macedo fazia história como fazia romance, descuidadamente, ao correr da pena, sem nenhum escrúpulo de investigação e de estudo. Os seus grossos tomos de biografia são totalmente sem préstimo.

A sua primeira obra em livro é o romance A moreninha, de 1844. Seguem-se-lhe, no ano seguinte, O moço loiro (2 vols. In-8.º), em 1848, Os dois amôres (2 vols. In-8.º), em 49 Rosa e, a breves trechos, Vicentina, O forasteiro (aliás escrito antes de todos estes), O culto do dever, A luneta mágica, O Rio do Quarto, Nina, As mulheres de mantilha, Um noivo e duas noivas, e outros, sem contar as novelas colecionadas sob vários títulos. A maior parte tem mais de um tomo.

A moreninha foi um acontecimento literário e popularizou-se rapidamente. A crítica exultou com o seu aparecimento. Dutra e Melo, na Minerva Brasiliense, do mesmo passo que o celebra com grandes gabos, expõe a teoria do romance como devia ser e era aqui praticado. Preconiza o romance histórico e o romance filosófico, que ainda ninguém aqui fizera, contanto que neste se não sigam «os delírios da escola francesa, um Louis Lambert por exemplo». Se bem cair no preceito do Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci, deve esse romance tornar-se moralizador e poético. Reconhece que «autores de merecimento, poetas distintos (aludiria certamente a Magalhães, Teixeira e Sousa e Noberto) se tinham já ocupado do romance sentimental produzindo belas páginas». De todo esse artigo de escritor então muito conceituado, deduz-se que o romance devia ser poético, sentimental, moralizador. Foi assim realmente que mais ou menos o fizeram os romancistas dessa geração e ainda da seguinte.

A moreninha consagrou definitivamente o autor que até a sua morte foi conhecido como «o Macedo d'A moreninha» ou também pelo apelido familiar de «o Macedinho». Esse romance, ainda hoje muito lido, é talvez o que maior número de edições e republicações tem tido no Brasil.

Os romances de Macedo são todos talhados por um só molde. São ingênuas histórias de amor, ou antes de namoro, com a reprodução igualmente ingênua de uma sociedade qual era a do seu tempo, chã e matuta. Cuidando aumentar-lhes o interesse, e acaso também fazê-los mais literários, carrega o autor no romanesco, exagera a sentimentalidade até à pieguice, filosofa banalidades a fartar e moraliza impertinentemente. São romances morais, de família; leitura para senhoras e senhoritas de uma sociedade que deles próprios se verifica inocente, pelo menos sem malícia, e que, salvo os retoques do romanesco, essas novelas parece retratam fielmente. A sua filosofia é trivial, otimista e satisfeita, conforme o espírito da época romanceada. A sua moral, a tradicional nos povos cristãos, sem dúvidas, nem conflitos de consciência, a moral de catecismo para uso vulgar. Nem a prejudica o abuso de namoro, ou alguns casos de amor romanesco, pois tudo não aponta senão ao casamento e acaba invariavelmente nele, para completa satisfação dos bons costumes. Pouco variam as situações e tipos dos romances de Macedo. Ou eram de fato uma e outros constantes na sociedade de que Macedo escreveu o romance, ou ao romancista faltou a arte de lhes descobrir as forçosas variações. São infalíveis neles certas categorias de personagens, a moça apaixonada, amorosa ou namoradeira, a intrigante ou invejosa que contra esta conspira, o galã, ora fatal e irresistível, ora apenas simpático e galanteador, a velha namoradeira e ridícula, o velho azevieiro e grotesco, o estudante engraçado, divertido e trêfego, o traidor que maquina contra o galã e a sua amada, o ancião (o ancião de Macedo é um homem de 50 anos, como as suas jovens amorosas não têm nunca mais de dezesseis) experiente, amigo certo e conselheiro avisado e mais o gracioso ou jocoso da comédia. Vem a pêlo a terminologia teatral, porque Macedo é em muito autor dramático, e os seus romances deixam por mais de uma feição rever este conspícuo feitio do seu engenho. Ao invés dos escritores nossos patrícios dessa fase e ainda dos das subseqüentes, Macedo é um escritor alegre e satisfeito, porventura o único da nossa literatura. A sua arte lhe é um divertimento, e o seu objeto, praticando-a, divertir os seus contemporâneos, sem talvez se lhe dar dos vindouros. Diverti-los moralizando-os, risonhamente, despreocupadamente, sem outro propósito mais alto, tal parece ter sido o seu intuito literário.

A atividade dramática de Macedo vai de 1849 aos últimos anos de 60 ou aos primeiros de 70. É justamente o período de maior florescimento do nosso teatro, que então realmente existiu com autores e atores nacionais, queridos e estimados do público. Entre os últimos havia-os, é certo, portugueses, mas esses, quase todos domiciliados aqui, achavam-se de fato nacionalizados. Macedo concorreu para esse teatro com mais de uma dúzia de peças, dramas em prosa e verso, comédias, óperas, que são o moderno vaudeville, e farsas, mostrando em tudo vocação decidida para o gênero fácil e boa veia cômica. Como esta lhe vinha mais do natural que a dramática, valem as suas comédias mais do que os seus dramas. Na comédia acha-se ele melhor, em um mundo mais natural, mais espontâneo e que lhe é mais familiar e conhecido que o dos seus dramas. Na inspiração e feitura destes, sente-se a influência da dramaturgia francesa contemporânea, como em Lusbela, por exemplo, a da Dame aux Camélias, ou de quejandos modelos. Demasiado românticos de assunto, excessivamente romanescos de composição e estilo, falham mais os seus dramas do que as suas comédias na representação que presumem ser da nossa vida. Não logram também atingir por qualidades superiores de invenção e expressão a generalidade da representação humana que supra ou exceda aquela. Há, porém, neles condições de teatralidade e arte de desenvolvimento e exposição. O principal defeito do nosso teatro, o que mais nos afronta com a sua desnaturalidade, é o diálogo geralmente falso ou em desacordo com o que ouvimos na rua ou na sala. A nossa sociedade, de fato ainda não de todo perfeitamente policiada, se não criou já uma sociabilidade, com fórmulas dialogais e de tratamento mútuo entre os interlocutores, que o escritor de outras línguas quase não faz senão reproduzir. Esse tratamento no nosso teatro mostra afrontosa incoerência, que é aliás a mesma dos nossos hábitos de conversação. Querendo evitá-la, Macedo e muitos dos nossos escritores de teatro ainda hoje recorrem ao tratamento da segunda pessoa do plural, que fora do estilo oficial ou do verso, de todo não usamos. E como o ridículo é um pouco o insólito, essas formas ridiculizam as peças que as empregam. O teatro romântico na comédia popular de Pena, de Macedo, de Alencar e de autores de menor nome, deu da sociedade do tempo uma cópia em suma exata. Desmerece, porém, essa representação no drama ou na comédia da nossa alta vida. Esta a viram sempre através de suas impressões de romântica francesa. Daí a pouca fidelidade na pintura dela e nos sentimentos que lhe atribuem. Nunca houve de fato na nossa sociedade preconceitos de raça ou de casta bastante generalizados e profundos, capazes de determinar as situações como a de Lusbela, de Macedo.

Num momento de feliz inspiração escreveu Macedo A nebulosa, poema não só romântico de intenção e de escola, mas nimiamente romanesco. Não obstante a sua sensibilidade lamurienta, e o aparelho ultra-romântico da ação, cheia de maravilhas de mágica, há neste único poema de Macedo grandes belezas de poesia e expressão. Mais de um trecho seu ainda nos impressiona pela força de emoção que lhe pôs o poeta. Mas ainda para o tempo desmasiava-se o poema em indiscretos apelos ao patético e sentimentalidade que fazem que hoje não o leiamos sem enfado.

Concomitantemente com estes principais representantes da nossa primeira fase romântica, poetaram aqui outros muitos sujeitos, como os fluminenses Joaquim José Teixeira (1822-1884), José Maria Velho da Silva (1811-1901), Antônio Félix Martins (1812-?), José Maria do Amaral ( 1812-1885), Firmino Rodrigues Silva (de Niterói, 1816-1879); os mineiros Cândido José de Araújo Viana (marquês de Sapucaí - 1893-1875) e Antônio Augusto de Queiroga (1812-1855); o baiano Francisco Moniz Barreto (1804-1868), e o pernambucano Antônio Peregrino Maciel Monteiro (1804-1868).

Publicistas, políticos, diplomatas, advogados, médicos, funcionários públicos, poetas o são apenas ocasionalmente, inconseqüentemente, mais de recreio que de vocação, e a sua obra de amadores sobre escassa, o que lhes revê a inópia do estro, é em suma insignificante. Vale somente como indício de uma inspiração poética que se não limitava aos próceres do movimento romântico.

Havia no entanto entre eles um bom, um verdadeiro poeta, José Maria do Amaral, antes um árcade retardatário do que um puro romântico, mas um árcade todo impregnado do lirismo garretiano. Os seus sonetos, nunca reunidos em volume, são talvez como tais, e como poesia subjetiva, o que melhor deixou essa geração. A fama de que gozou Moniz Barreto, devida ao seu singular talento de improvisador, qualidade então apreciadíssima, não a confirma agora a leitura da sua obra, reflexo demasiado apagado do dessorado elmanismo.