História das Psicoterapias e da Psicanálise/I/III
1) Dois médicos ingleses, Elliotson e Esdaile, tinham aplicado a psicoterapia do método mesmérico com fins anestésicos, para diminuir a dor durante as operações cirúrgicas, tendo conseguido este último mais de duzentas operações de alta cirurgia sem dores em internados dos hospitais da índia, onde tinha sido exilado por prática do mesmerismo. Outro cirurgião, patrício seu, James Braid, em bases de experiências pessoais, tinha qualificado de "transe" aquele estado especial produzido pela "ação magnética" do método mesmérico, afirmando ainda que esse estado era causado simplesmente "pelo excessivo cansaço dos sentidos (os olhos principalmente) depois de prolongado período de concentração e conseqüente esgotamento físico", antecipando-se a interpretação pavloviana de "bloqueio reflexológico". Relacionou o "transe" finalmente com o estado de sono e mudou seu nome para "hipnose", que passou a ser um termo tranqüilizadoramente científico, com a significação mais específica de "neurohipnose".
Segundo a orientação do espírito da medicina moderna de achar nas células e nos tecidos a origem de todas as doenças e sua cura, os fisiologistas, estimulados por Muller, começaram a medir com precisão os fenômenos neurofisiológicos ao mesmo tempo que o neurologista da Universidade de Berlim, Moritz Romberg, dava à neurologia a posição de especialidade médica separada, com a publicação de um tratado sobre esta matéria que se fez célebre. A seguir, outro tratado foi também escrito, na mesma época, sobre psiquiatria por Griesinger, seu discípulo e sucessor, onde se afirmava claramente que "todas as doenças mentais eram originariamente devidas à ação direta de algum elemento interno ou externo sobre as células cerebrais do que resultavam doentes", não fazendo nenhuma distinção entre psicose "orgânicas e funcionais", como tem sido feito nos últimos tempos. Sua opinião era, portanto, a de que o primeiro passo para o conhecimento dos sintomas da insanidade mental era o da localização do órgão doente, e este não podia ser outro que o cérebro, no que foi apoiado irrestritamente pelo psiquiatra inglês Maudsley, que considerava a doença mental como estritamente cerebral. E quase simultaneamente um brilhante discípulo de Griesinger, Hitzig, explorando a estimulação elétrica nos cérebros dos cães, juntamente com o Dr. Frietsch, lançaram as bases da neurofisiologia experimental.
2) De outra banda, nas últimas décadas da primeira metade do século XIX, a ciência médica dedicou-se ao estudo intensivo da anatomia patológica e às investigações bioquímicas. E dentre estas pesquisas, talvez a que mais impressionou os psiquiatras de mentalidade neurológica, foi a descoberta e identificação da sífilis e sua natureza etiológica a respeito a certas paralisias específicas provenientes do cérebro ou da espinha, como a "paresia" que, mais tarde, o médico vienense, Wagner-Jauregg conseguia curar por meio da "febre-malária". Na mesma época Wernicke e outros neurologistas descobriram o paralelismo entre os distúrbios emocionais e as condições psicóticas causadas por certas febres infecciosas e por agentes tóxicos como os entorpecentes e o álcool, ao tempo em que eram identificadas outras perturbações mentais resultantes da deteriorização senil do tecido cerebral, qualificada de "demência senil", incluindo lesões definidas daquele órgão. Assim sendo, o psiquiatra Morel chegara a afirmar que "as degenerações resultavam em desvios do tipo humano normal, que são transmissíveis pela hereditariedade e se deterioram progressivamente no sentido da extinção". Sendo ainda da opinião de que "agentes externos", como o álcool e os narcóticos, ou internos como o comportamento, podiam predispor um indivíduo para a degeneração, inclusive desde a adolescência, chamou essa condição de "demência precoce", conceito que mais tarde outros estenderam não só aos psicóticos mas também aos neuróticos, e mesmo aos criminosos.
Conseqüentemente, segundo pontificavam os neurologistas da época, a melhor terapia para esses doentes degenerados e prematuramente envelhecidos era o repouso no leito, boa alimentação, conforto e ausência de tensões ocupacionais, espécie de "curativos" como os que, no mesmo sentido, foram prescritos pelos sacerdotes dos templos de Esculápio, na antigüidade. Portanto, a cura de repouso e a eletroterapia de Erb, tornaram-se o método de moda da época no tratamento das perturbações mentais.
3) Por esta altura, ao tempo que os neurologistas estavam localizando as lesões para explicar os fenômenos clínicos e os tratadistas agrupavam os sintomas neurológicos em síndromes e finalmente em doenças; os neuropsiquiatras e neurofisiologistas começavam a aplicar princípios semelhantes ao comportamento. Parecia estar chegando a hora de proceder a uma sistematização dos sintomas e das doenças mentais da mesma forma que estavam sendo sistematizadas e classificadas as outras doenças e disciplinas.
Um dos primeiros a fazê-lo foi o psiquiatra alemão Kahlbaum seguido logo depois de Kraepelin. Partindo da paralisia geral e das noções de "demência senil", "demência precoce", paralisia sifilítica do cérebro ou espinhal e o "delirium-tremens", produzido pelo álcool e pelos narcóticos, Kahlbaun lhes acrescentara termos novos como os de: "complexo de sintoma", "ciclotonia" (ou condição alternada de depressão e de exaltação), "catatonia", (a condição do indivíduo psicótico, que mantém estado de mudez e postura "rígidas" peculiares) e "hebefrenia", um estado de extrema regressão infantil e maneirismos inapropriados e tolos.
Professor de psicologia clínica em Munique e chefe do Instituto de Pesquisas Psiquiátricas, Kraepelin converteu-se na autoridade máxima nas primeiras décadas deste século após a publicação de seu Lehrbuch ou manual, convertido na Bíblia da psiquiatria moderna e ponto culminante daquela época antipsicológica. Nela a nosologia psiquiátrica de Kraepelin incluía parte da terminologia de Kahlbaun, acrescentada de seu novo sistema de psiquiatria descritiva, extraído do exame meticuloso de milhares de casos, o qual ainda é empregado para classificar pacientes com base no comportamento manifesto. A esta lista acrescentou o conceito melhorado de "paranóia" (supermente — "nous"), dando-lhe a significação moderna de "psicose com estados de extrema desconfiança e delírio de perseguição com evidente exaltação intelectual". Precisou assim mesmo a distinção entre a "demência precoce" e a psicose maníaco-depressiva, acreditando que raramente um doente se recupera da primeira ao passo que pode recuperar-se totalmente da segunda. Interessou-se muito também por condições tóxicas como o alcoolismo, nas quais o fator casual químico era evidente, chegando a presumir, no fundo de toda doença mental, "uma perturbação básica do metabolismo corporal". Devido, porém, a sua inclinação organocista e a sua incapacidade de pensar em termos psicológicos, foi impedido de reconhecer que "repetidas experiências psicológicas e emocionais podem ter sobre o funcionamento mental um efeito ainda mais destruidor de seu metabolismo, embora mais sutil do que o do álcool".
Aliás, esta incompreensão de que o conhecimento e a terapia neurofisiológica e psicológica não precisam ser contraditórios, e de que nenhum dos dois pode substituir ou eliminar o outro no pleno conhecimento da personalidade e do comportamento humano, tem sido sempre uma constante perene e inconstrutiva disputa entre neurologistas e psicologistas que ainda presenciamos em nossos dias, entre os psicoterapeutas (ou psicanalistas), que continuam a insistir numa maneira exclusivamente fisiológica ou puramente psicológica de encarar a doença mental.
4) Um dos que mais se esforçaram por essa compreensão mútua foi o pesquisador russo Pavlov, discípulo do grande fisiologista Sechenov, que através de experiências magnificamente provativas, mostrou claramente como os processos reflexológicos incondicionados de ordem fisiológica produzia reflexos condicionados de ordem psíquica e vice-versa. Com base nos fatos experimentais pôde elaborar uma classificação de tipos de personalidade de fundo hipocrática e fundamentada nas maneiras como os indivíduos reagiam aos estímulos fisiológicos irritantes. Assim, pode ele comprovar que reagindo ao mesmo estímulo irritante, uns se tornavam melancólicos, enquanto que outros tornavam-se coléricos com fortes tendências agressivas ou inibitórias; que indivíduos "flemáticos" têm atividades reflexas relativamente "rígidas" enquanto que o tipo "fator rhesus" apresentava sistemas nervosos com reações particularmente instáveis.
Em realidade, a tendência geral de todos os filósofos e médicos psicologistas foi a de provar a seus colegas, os médicos psiquiatras organocistas, que além de um comportamento fisiológico, existe também um comportamento psíquico que obedece a padrões mais elevados e mais complexos que a simples fisiologia.
5) Na época de que nos ocupamos, um dos primeiros a seguir este caminho foi o médico alemão, especialista em anatomia cerebral, Christian Reil, que em 1803 publicou o primeiro tratado sistemático de psicoterapia (psicológica), propondo um método psicoterápico de maneira sistemática e imaginativa. Declaradamente convencido da íntima relação mente-corpo, declarava solenemente: "Sentimentos e idéias, bem como influências psíquicas, são recursos apropriados pelos quais as perturbações do cérebro podem ser corrigidas e sua vitalidade pode ser restaurada". Eis, em síntese, a tese básica de todo o sistema psicoterapêutico de Reil, pelo qual se propunha curar as doenças mentais por influências exclusivamente psicológicas. Seu desejo era que a psicoterapia se tornasse um dia um ramo especial da medicina, tão importante como qualquer outro.
Entre outros métodos de tratamento aconselhava Reil a terapia ocupacional, terapia musical, e terapia teatral. Por meio desta última tentava modificar padrões habituais de sentimento e de ação em seus pacientes, fazendo com que assistissem a uma peça de teatro, antecipando-se ao moderno psicodrama. Reconheceu também claramente o papel da excitação sexual nas perturbações mentais referindo-se a mulheres histéricas que ficaram perturbadas devido à sua incapacidade de ter filhos e que, como resultado da frustração de seu instinto reprodutor, adquiriram delírios de gravidez. Para este tipo de doenças mentais causadas por problemas sexuais Reil recomendava as relações sexuais. Aconselhava também expor o paciente silencioso a altos ruídos ou colocar o paciente excitado em ambiente escuro e silencioso, etc.
5) Na França, um excelente discípulo de Pinel, Jean Esquirol, publicou um tratado de psicoterapia que foi um texto básico durante mais de meio século, dando à doença mental o nome de "alienação mental" e aos médicos que tratavam dela o de "alienistas". Pela primeira vez apontou a diferença entre alucinações e delírios; as primeiras foram descritas como "impressões sensoriais de estímulos que não existem e que são produtos inteiramente imaginários; e delírios são falsas impressões baseadas na falsa interpretação de um estímulo real". Seu discípulo Moreau de Tours foi muito mais explícito no estudo dos sintomas mentais como manifestações de perturbações da personalidade inteira.
Antecipando-se a Freud, Moreau salientou pela primeira vez que os sonhos oferecem a verdadeira pista (estrada régia) para o conhecimento das funções mentais perturbadas. "Os sonhos, afirmava ele, estão feitos do mesmo material que as alucinações e assim oferecem um elo de ligação entre a pessoa sadia e o insano. O sonhar representa a psicopatologia transitória da pessoa normal. A pessoa insana sonha acordada e o delírio e o sonho, mais que análogos, são absolutamente idênticos". Interessante é também a sua comparação entre gênio (ou paranormalidade) e insanidade, cuja origem colocava na "superatividade" da mente. Se daí resultasse num funcionamento mais intensivo e lúcido, aparecia a qualidade de gênio; se resultasse uma maior confusão, aberração e perturbação, ocorria a insanidade.6) Teórico e prático ao mesmo tempo, de profundo senso religioso e médico psiquiatra, o alemão Heinrot foi um dos mais profundos psicologistas de sua época. "Corpo e psique são dois aspectos da mesma coisa, que aparece externamente no espaço como corpo e interiormente como psique". Tal é a tese principal de Heinrot, não sendo de admirar que fosse o primeiro a usar o termo psicossomático, aplicado às doenças corporais. Quanto à origem da doença mental centralizou-a no conflito entre os impulsos instintivos inaceitávies (o ID) e a consciência individual como reflexo da formação moral (superego). Expressava, assim, em terminologia religioso-moralista o conceito central da psicanálise moderna, o do "conflito interior". Daí que sustentasse ser o pecado a causa fundamental da perturbação mental. Mas pecado significava para ele egoísmo e luta interior entre as tendências do instinto malévolo (ID) e a LEI moral (superego) reconhecível em si pela própria consciência individual (sentimento de culpa segundo a expressão atual).
Antecipando-se a Freud nos conceitos psicanalíticos, Heinrot considerava os processos psicológicos como divididos em três níveis de funcionamento. O nível mais baixo representava as forças instintivas e sentimentos egoístas (impulsos do ID) cuja finalidade é o prazer. à segunda fase deu o nome de EGO que funciona sob a orientação do intelecto (consciência). O objetivo do ego, que é inteiramente egocêntrico, é a "segurança em relação ao mundo exterior" (princípio de realidade) e o "gozo" da vida" (princípio do prazer). Sua principal característica é a "autoconsciência" ou autoconhecimento dos processos internos. Ao terceiro e mais alto nível do funcionamento mental dava ele o nome de "consciência", algo alheio ao ego e que se opõe aos esforços egocêntricos do ego. Uma força mais alta, que sendo uma parte do ego produz um conflito dentro do ego, basicamente egocêntrico, e uma orientação "altruística" mais alta, que chamou de "supernós" (ou superconsciência — superego).
A doença mental decorre, portanto, do conflito do "ego" impelido pelos instintos perversos e controlado por essa consciência diretora. E a saúde mental deve consistir na plena aceitação e assimilação dos princípios dessa consciência dentro do ego. Conseqüentemente a psicoterapia de Heinrot foi mais o método reeducativo da consciência e princípios morais (reeducação da personalidade) como o aconselha a moderna psicanálise, com a qual se identificou intuitivamente mais que qualquer outro pré-psicanalista. Seu arsenal terapêutico incluía, praticamente, todos os métodos tradicionais de tratamento físico e psicológico. Recomendava eletricidade, calor, sangria, fisioterapia, dieta, regulamentação das funções digestivas, etc. No método psicológico, recomendava correção cognitiva para as perturbações da volição. Usava coação física e castigo, mas também recomendava relaxamento, diversões e viagens, ou também, ocupação continuada (laborterapia). Aumento ou eliminação da estimulação, incluindo até a privação do sono, segundo o caso, de excitados ou depressivos, etc.
8) "A chave para a compreensão da essência dos processos mentais conscientes reside na reação do INCONSCIENTE", lemos na introdução de uma obra de aparência moderna, mas escrita em 1846 por Gustav Carus, outro teórico da psicanálise pré-freudiana, a Psiche. O eixo central da psicologia deste médico obstetra, como o da de Freud, é o conceito do inconsciente, que Carus equiparava à força vital criadora de Stahl, em tudo semelhante ao Eros de Freud. O inconsciente de Carus é equivalente, praticamente, a todo o processo vital, tanto biológico como psíquico. Ele anima todos os processos fisiológicos, e todas as doenças orgânicas ou psíquicas se acham enraizadas na mente inconsciente. Mesmo as doenças orgânicas se derivam de idéias estranhas e "parasitárias", enquistadas na mente e sobrepostas ao sadio plano inconsciente de auto-realização do organismo (instinto de morte). O conflito entre o sadio plano organizacional original do inconsciente e essas idéias estranhas constitui a essência da doença. Enquanto este conflito não atinge a mente consciente, lidamos com as doenças orgânicas; quando esse conflito penetra na mente consciente, aparecem as perturbações mentais. O primeiro objetivo da ciência da psicologia deve ser, segundo Carus, determinar a maneira de a mente humana poder descer às profundezas do inconsciente e compreender sua obscura psicodinâmica e psicofisiológica.
9) Não ficaria completo o quadro dos psicoterapeutas pré-freudianos se não voltarmos a examinar a dupla personalidade de Griesinger, já estudada antes como psiquiatra e que precisamos estudar agora como psicoterapeuta. De fato, apesar de o seu princípio teórico de psiquiatra ser no sentido de que os mecanismos patofisiológicos cerebrais eram exclusivamente responsáveis pela doença mental", ele declarou explicitamente que os métodos terapêuticos, psíquico e somático, têm, na prática, o direito ao mesmo grau de atenção máxima quando "a experiência cotidiana demonstrou que quase nenhuma recuperação mental pode ser perfeita sem o uso de remédios psíquicos (trabalho, disciplina, etc.)". "Conversações, prelações, passeios, jogos, chás, etc., também servem para absorver e divertir o paciente".
Teoricamente o "psicologista" Griesinger tratou do conceito do "ego" e referiu-se aos efeitos perniciosos da "repreensão" na doença mental. "A recuperação de um EGO completamente viciado, corrompido e falsificado de todos os lados por idéias mórbidas e falsas... ou quando completamente reprimido no grupo de percepções interiores (ID e Superego), torna-se quase impossível a não ser, em raros casos, através de excitação de uma violenta emoção..." (Katarsis...)
Genialmente intuitivo, Griesinger notou também com precisão a estreita relação existente entre os sintomas da doença mental e os processos dos sonhos. Reconheceu assim mesmo que na doença mental o problema do indivíduo está intimamente relacionado com sua perda de auto-estima e seu "alheiamento de si próprio", e que "os sentimentos de arrependimento do paciente (complexo de culpa) colidem diretamente com seu desejo de satisfazer seus impulsos instintivos (ID)", etc...
10) Seu maior desejo e esperança, como o de todos os psicologistas, consistia em que a psicologia médica ou psicoterapia se tornasse, um dia, uma sólida disciplina médica, de modo que pudesse andar de mãos dadas com as outras especialidades, sem precisar mais esconder a cabeça como enteada da medicina.
O ambiente estava suficientemente preparado, enfim, como tudo parece indicar para que ao finalizar a primeira metade do século XIX o sistema psicanalítico de Freud nascesse, vingasse e desse o impulso final e decisivo à psicoterapia hoje concretizada e quase confundida com os métodos psicanalíticos. Pode ser que Freud não estivesse familiarizado e não fosse influenciado pelo pensamento brilhante destes homens que o precederam e precisasse encontrar intuitivamente a sua própria orientação psicobiológica. De fato, as brilhantes conquistas da medicina e da psiquiatria organocista eclipsaram por completo as idéias psicodinâmicas desses geniais psicologistas depois de meados do século XIX, a ponto das contribuições de Freud pareceram a seus contemporâneos inteiramente novas.