História das Psicoterapias e da Psicanálise/X/II
1) As bases da psiquiatria. A psiquiatria moderna foi concebida nos hospícios dos alienados, iniciou sua existência através das descobertas dos cirurgiões e neurologistas, como Broca e seus discípulos, e foi-se desenvolvendo nos consultórios médicos através das pesquisas de eminentes clínicos e cirurgiões. é claro que esta ciência, que se baseia no bom ou mau funcionamento da mente-cérebro, ou do cérebro-espírito, não poderia, de modo algum, ter sido desenvolvida até que as principais questões em que se fundamente (que é a mente, como opera, como adoece, como se pode evitar que adoeça, etc.) não fossem resolvidas previamente por eles.
Eis porque a psiquiatria moderna vai encontrar suas bases e fundamentos nas experiências bem sucedidas do eminente cirurgião Paul Broca e seus discípulos e seguidores, entre os quais o conhecido Dr. Vincent. Graças aos estudos cerebrais do primeiro foi possível localizar e conhecer muitos dos "centros cerebrais'", sede de uma porção de faculdades, como o centro da fala, centro da memória visual, da memória auditiva, etc., que passaram a ser conhecidas como "zonas de Broca", e suas relações com as doenças provenientes de empecilhos físicos que impediam seu bom funcionamento. Em base das operações cirúrgicas do segundo, pode-se estabelecer a relação entre a extirpação de um tumor cerebral e a conseqüente sanidade mental de quem a tinha perdido. Antes deles tudo isto era inteiramente desconhecido, mesmo que pressentido.
2) Nascimento da neurologia. Graças a estudos e pesquisas desse tipo, foi possível estabelecer, em primeiro lugar, um mapeamento geral dos centros cerebrais, sede de nossas faculdades mentais, como premissa indispensável para possíveis intervenções cirúrgicas, capazes de remover os agentes perturbadores da sanidade mental, propiciando a sua cura. Foi possível, também, o nascimento da neurologia e o conhecimento geral dos grandes sistemas nervosos, sua localização e seu funcionamento.
Verificou-se a existência de três grandes centros nervosos ou cérebros, controladores de outros tantos sistemas neurológicos, responsáveis por todo o funcionamento do fisiologismo e do psiquismo do nosso organismo.
Primeiro, o cérebro inferior, ou cérebro primitivo, composto da medula espinhal, dos gânglios basais e dos plexos, formando o sistema nervoso autônomo, a controlar as ações biológicas neurovegetativas e as ações automáticas e involuntárias. Tinha-se tirado o cérebro a uma rã, por exemplo, e vira-se que, mesmo sem ele, podia a rã virar-se quando deitada de costas, podia pular e esfregar uma perna irritada. Os pombos sem cérebro ainda podiam voar; um coelho sem cérebro podia dar os seus saltos e correr, ainda que descontroladamente. Em todos estes casos os animais executavam movimentos complicados e ordenados. Ordenados por quem? Pelo cérebro inferior, que dirige o automatismo biológico.
Segundo, o cérebro intermediário ou messo-córtex, ou córtex motor, localizado bem no meio da caixa craniana, o qual controla as ações intermediárias, visto que ficam entre as automáticas e as voluntárias. Trata-se do automatismo psíquico-emocional.
Terceiro, o novo córtex ou cérebro superior, com os lobos frontais situados na ponta anterior do crânio, que controla as ações voluntárias. Compreendeu-se assim, que toda perturbação mental, pela causa que fosse, como é lógico, tinha que manifestar seus efeitos, na área do córtex frontal, sede da consciência e das ações voluntárias e sede também da inteligência consciente ou razão. Conseqüentemente o primeiro resultado é o obscurecimento da razão. A pessoa ficaria esquisita, neurótica.
O segundo passo de deterioração é quando a doença atinge o messo-córtex ou córtex motor, biologicamente mais moço e resistente, portanto, durante mais tempo, conduzindo o doente segundo um nível inferior de comportamento e de inteligência, o automatismo psíquico, o ID psíquico de Freud. E perecendo ele restará apenas um terceiro passo de deteriorização (os psicanalistas lhe chamariam de regressão) o primeiro cérebro, que será atingido no terceiro e último nível, que finalmente também poderá perturbar-se, mergulhando no automatismo biológico e involuntário, o ID biológico freudiano ou inconsciente automático. A não ser que a doença seja detida, sempre o doente irá passando de um estado mais consciente e voluntário, mais racional e controlado, para outro mais inconsciente, irracional e automático, à medida que os níveis inferiores de inteligência sucessivamente vão sendo chamados a assumir a direção.
3) O início da Psiquiatria. Na segunda metade do século passado, com base nas descobertas de Broca, que permitiram localizar grande parte das faculdades mentais, e portanto de suas doenças, com os conhecimentos hauridos do grande neurologista, Hughlings Jackson, o descobridor das grandes comunicações cerebrais e os sistemas nervosos, simpático, autônomo e central, e finalmente, com os resultados obtidos pelos endocrinologistas e a influência dos produtos glandulares, os hormônios, nas operações mentais e do comportamento; tinha a medicina clínica os elementos mais essenciais para iniciar os processos dos tratamentos psiquiátricos.
Nessa altura a Psiquiatria moderna, propriamente dita, nasce com Kraepelin, distinto discípulo do grande mestre Griesinger. Kraepelin não foi um pesquisador. Foi antes de tudo um eminente médico clínico das doenças mentais e um grande professor, que com base nos ensinamentos do mestre Griesinger e no estudo de milhares de fichas de seus próprios pacientes, fez uma ótima sistematização do quadro das doenças mentais, que ainda serve como esquema dos estudos psiquiátricos nos cursos de psiquiatria dos nossos dias.
O princípio básico de Kraepelin é o seguinte: não há doenças mentais; há apenas doenças. Algumas das doenças mostram sintomas dominantes na esfera mental, e a estas chamamos mentais; mas na sua raiz, também elas são doenças fisiológicas e orgânicas. Mente e cérebro não são duas coisas separadas. Para todo processo mental, normal ou anormal, há sempre um fundo fisiológico e orgânico. Se a mente está perturbada e em desordem é porque em algum lugar do corpo se esconde um processo patológico que precipitou a desordem; um tecido lesado, uma infecção, uma glândula afetada, uma toxina, uma invasão bacteriológica, um órgão em disfunção. é sempre preciso explorar o corpo até achar a disfunção do cérebro-mente. Só um processo mórbido, de uma ou de outra espécie orgânica, pode explicar a brecha que se abre entre o ser humano normal e o esquizofrênico. A psiquiatria somente pode apoiar-se numa base científica que é a medicina. Para ele a psicologia subjetiva era indigna de crédito por ser anticientífica. A mente não pode adoecer. Quando perturbada tem que depender do corpo ou do cérebro.
De fato, algumas doenças mentais menores iam aparecendo como originadas de causas fisiológicas ou físicas, por traumas, por degeneração dos tecidos nervosos, como na arteriosclerose cerebral provocadora da demência senil; por toxinas, pelo álcool, pelos entorpecentes, etc. é certo que tudo isso abrangia apenas algumas poucas doenças da grande população dos hospícios. Contudo, algum dia seriam descobertas, esta era a sua crença, todas as causas físicas ou fisiológicas de todas as doenças mentais.
4) A teoria e a prática. Os clínicos de todo o mundo, que se viam obrigados a lidar com pacientes portadores de sintomas de doenças mentais, não estavam agora às escuras lidando com fantasmas ou com idéias éticas e filosóficas produtoras de perturbações espirituais ligadas a distúrbios físicos e comportamentais. Após os trabalhos de Broca e os seus seguidores, cirurgiões e neurologistas contavam com uma teoria cientificamente válida. A mente funcionava no cérebro e as faculdades mentais estavam ligadas, funcionalmente, aos órgãos ou centros cerebrais correspondentes. As doenças mentais provinham, portanto, dos desarranjos e perturbações desses mesmos centros cerebrais ou órgãos, visto que a mente não podia adoecer. Uma lesão, uma deteriorização de um tecido neuronal, uma pancada, um tumor, etc., eram naturalmente as causas etiológicas daqueles distúrbios funcionais, que se apresentavam como doenças mentais, o que seria a mesma coisa que DOENçAS CEREBRAIS. Lá estava, por exemplo, a arteriosclerose causadora da demência senil, e certos tipos de epilepsia produzidos, claramente, por algum tumor cerebral.
Dispunha, também agora, de métodos práticos de tratamento. Com base nos ensinamentos de seu mestre Griesinger e num número incalculável de fichas dos pacientes por ele tratados durante cinqüenta anos de prática clínica, podia oferecer a seus colegas um MANUAL onde se sistematizavam e descreviam com todos os seus detalhes os sintomas de cada uma daquelas perturbações ou doenças mentais. Um esquema didático na mão dos clínicos e dos estudantes, que ainda permanece imutável até o dia de hoje, nos cursos de psiquiatria, apesar de muitos conceitos terem variado totalmente, depois das grandes descobertas dos últimos tempos. Bastava-lhes estudar o caso concreto de seu paciente, identificá-lo com algum dos tipos de doença, cujos sintomas ele descrevia, e proceder ao seu tratamento com os métodos, que a experiência de algum colega podia testar como praticamente útil, nos casos que a operação cirúrgica cerebral não se fizesse indispensável. Um pouco de psicoterapia, um pouco de fisioterapia, um pouco de terapêutica ocupacional, que apenas servia para entreter o tempo. Isto, talvez, não fosse lá muita coisa, pois apesar dessa teoria etiológica e dessa teoria didática, faltava ainda uma prática terapêutica condizentemente eficiente. Na realidade, não se conheciam as causas fisiológicas da maioria das doenças, cujos sintomas tinham sido estudados e esquematizados, nem se conheciam os remédios eficientes para tratá-los. Apesar de tudo, isto era uma base de partida, suficientemente segura, que satisfazia o orgulho médico e estimularia novas pesquisas capazes de resolver os muitos enigmas ainda pendentes.