História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/I/XI
Inopem me copia fecit, disse o poeta, e disse verdade, porque onde as coisas são muitas é forçado que se percam, como acontece ao que vindima a vinha fértil e abundante de fruto, que sempre lhe ficam muitos cachos de rebusco, e assim me há sucedido com as coisas do mar e terra do Brasil, de que trato. Pelo que me é necessário rebuscar ainda algumas, que farei neste capítulo, que quanto todas é impossível relatá-las.
Faz-se no Brasil sal não só em salinas artificiais, mas em outras naturais, como em Cabo Frio, e além do Rio Grande, onde se acha coalhado em grandes pedras muito, e muito alvo. Faz-se também muita cal, assim de pedra do mar, como da terra, e de cascas de ostras, que o gentio antigamente comia, e se acham hoje montes delas cobertos de arvoredos, donde se tira e se coze engradada entre madeira com muita facilidade.
Há tucum, que são umas folhas quase de dois palmos de comprido, donde só com a mão sem outro artifício se tira pita rijíssima, e cada folha dá uma estriga. Outra planta há chamada caraguatá, da feição da erva babosa, mas cada folha tem uma braça de comprido, as quais deitadas de molho e pisadas, se desfazem em linho de que se fazem linhas, e cordas, e se pode fazer pano.
Há árvores de sabão, porque com a casca das frutas se ensaboa a roupa, e as frutas são umas contas tão redondas e negras, que parecem de pau evano torneado, e assim não há mais que furá-las, enfiá-las, e rezar por elas.
Há muita erva de anil, e de vidro, que se não lavra. Há muitas fontes, e rios caudalosos, com que moem os engenhos de açúcar, e outros por onde entra a maré, mui largos e fundos, e de boas barras e portos para os navios.
Quis um pintar uma cidade mui bastecida e abastada, e pintou-a com as portas serradas, e ferrolhadas, significando que tudo tinha em si, e não era necessário vir-lhe alguma de fora, que é a excelência; porque diz o Psalmista que louve a celestial cidade de Jerusalém ao senhor / Lauda Hierusalém dominum, lauda Deum tuum, Sion, quoniam confortavit seras portarum tuarum/. Mas não faltou logo quem contrafizesse e pintasse outra com as portas abertas, e por elas entrando carretas carregadas de mantimentos, dizendo que aquela era mais bastecida e abastada, nem lhe faltou outra autoridade com que a confirmar do mesmo Psalmista, o qual diz que ama Deus muito as Portas de Sion / diligit dominus portas Sion super omnia tabernacula Jacob/ e isto não porque as têm fechadas, senão abertas a naturais, e estrangeiros, a brancos e negros, que todos têm seu trato e comércio / Ecce alieniginae et Tiros et populus Ethiopum hi fuerunt illic /. Conforme a isto digna é de todos os louvores à terra do Brasil, pois primeiramente pode sustentar-se com seus portos fechados sem socorro de outras terras: Senão pergunto eu; de Portugal vem farinha de trigo? a da terra basta. Vinho? de açúcar se faz mui suave, e para quem o quer rijo, com o deixar ferver dois dias embebeda como de uvas.
Azeite? faz-se de cocos de palmeiras. Pano? faz-se de algodão com menos trabalho do que lá se faz o de linho, e de lã; porque debaixo do algodoeiro o pode a fiandeira estar colhendo, e fiando, nem faltam tintas com que se tinja.
Sal? cá se faz artificial e natural como agora dissemos. Ferro? muitas minas há dele, e em S. Vicente esta um engenho onde se lavra finíssimo. Especiaria? há muitas espécies de pimenta e gengibre. Amêndoas? também se escusam com a castanha de caju, et sic de caeteris.
Se me disserem que não pode sustentar-se a terra, que não tem pão de trigo, e vinho de uvas para as missas, concedo, pois este divino Sacramento é nosso verdadeiro sustento, mas para isto basta o que se dá no mesmo Brasil em S. Vicente e Campo de S. Paulo, como tenho dito no capítulo nono, e com isto está, que tem os portos abertos e grandes barras, e baías, por onde cada dia lhe entram navios carregados de trigo, vinho e outras ricas mercadorias, que deixam a troco das da terra.