História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/II/VII
Toma esta capitania o nome da Bahia por ter uma tão grande, que por antonomásia e excelência se levanta com o nome comum, e apropriando-o a si se chama a Bahia, e com razão, porque tem maior recôncavo, mais ilhas, e rios dentro de si, que quantas são descobertas no mundo, tanto que tendo hoje 50 engenhos de açúcar, e para cada engenho mais de dez lavradores de canas, de que se faz o açúcar, todos têm seus esteiros, e portos particulares; nem há terra que tenha tantos caminhos, por onde se navega.
As ilhas que dentro de si tem, entre grandes e pequenas, são 32, só tem um senão, que é não se poder defender a entrada dos corsários, porque tem duas bocas, ou barras, uma dentro da outra, a primeira a leste da ponta do padrão da Bahia, ou morro de S. Paulo, que é de 12 léguas, a segunda, que é a interior ao sul da dita barra, ou ponta do Padrão, a ilha de Itaparica, que é boca de três léguas.
Está esta Bahia em 13º, e um terço e tem em seu circuito a melhor terra do Brasil; porque não tem tantas áreas como as da banda do norte, nem tantas penedias como as do sul, pelo que os índios velhos comparam o Brasil a uma pomba, cujo peito é a Bahia, e as asas as outras capitanias, porque dizem que na Bahia está a polpa da terra, e assim da o melhor açúcar que há nestas partes.
Também é tradição antiga entre eles, que veio o bem-aventurado Apóstolo São Tomé a esta Bahia, e lhes deu a planta da mandioca, e das bananas de São Tomé, de que temos tratado no primeiro livro; e eles em paga deste benefício, e de lhes ensinar que adorassem e servissem a Deus, e não ao Demônio, que não tivessem mais de uma mulher, nem comessem carne humana, o quiseram matar e comer, seguindo-o efeito até uma praia, donde o santo se passou de uma passada à ilha de Maré, distância de meia légua, e daí não sabem por onde, devia de ser indo para a Índia, que quem tais passadas dava bem podia correr todas estas terras, e quem as havia de correr também convinha que desse tais passadas.
Mas como estes gentios não usem de escrituras, não há disto mais outra prova, ou indícios, que achar-se uma pegada impressa em uma pedra naquela praia, que diziam ficara do santo quando se passou à ilha, onde em memória fizeram os portugueses no alto uma ermida do título, e invocação de São Tomé.
Pela banda do norte parte esta capitania com a de Pernambuco, pelo rio de São Francisco, o qual era merecedor de se escrever não só em bom capítulo particular, senão em muitos, pelas muitas e grandes coisas, que dele se dizem, mas contento-me com passá-las em suma, ou a vulto, como hei passado outras, porque estão todas as do Brasil tão desacreditadas, que não sei se ainda assim o quererão ler.
Está este rio em altura de 10º, e uma quarta, na boca da barra tem duas léguas de largo, entra a maré por ele outras duas somente, e daí para cima é água doce, donde há tão grandes pescarias, que em quatro dias carregam de peixe quantos caravelões lá vão, e se querem navegam por ele até 20 léguas, ainda que sejam de 50 toneladas de porte.
No inverno, nau traz tanta água, nem corre tanto como no verão, e no cabo das ditas 20 léguas, faz uma cachoeira, por onde a água se despenha, e impede a navegação; porém daí por diante se pode navegar em barcos, que lá se armarem, até um sumidouro, onde este rio vem 10 ou 12 léguas por baixo da terra, e também é navegável daí para cima 80 ou 90 léguas, podendo navegar barcos, ainda mui grandes, pela quietação com que corre o rio, quase sem sentir-se, e os índios Anaupirás navegam por ele em canoas.
É gentio este que ainda não foi tratado, e dizem que se ataviam com algumas peças de ouro; pelo que Duarte Coelho de Albuquerque, senhor que foi de Pernambuco, tratou no reino desta conquista, mas nunca se fez, nem o rio se povoou até agora mais que de alguns currais de gado e roças de farinha ao longo do mar, sendo assim que é capaz de boas povoações, porque tem muito pau-brasil e terras para engenhos.
Não trato do rio de Sergipe, do rio Real e outros, que ficam nos limites desta capitania da Bahia, por não ser prolixo, e também porque adiante pode ser tenham lugar.
Desta capitania da Bahia fez mercê el-rei d. João Terceiro a Francisco Pereira Coutinho, fidalgo mui honrado, de grande fama e cavalarias na Índia, o qual veio em pessoa com uma grande armada à sua custa no ano do nascimento do Senhor de 1535, e desembarcando da ponta do Padrão da Bahia para dentro se fortificou; onde agora chamam a Vila Velha, esteve de paz alguns anos com os gentios, e começou dois engenhos levantando-se eles depois, lhos queimaram, e lhe fizeram guerra por espaço de sete ou oito anos, de maneira que lhe foi forçado, e aos que com ele estavam, embarcarem-se em caravelões, e acolherem-se à capitania dos Ilhéus, onde o mesmo gentio, obrigado da falta do resgate que com eles faziam, se foram ter com eles assentando pazes, e pedindo-lhes que se tornassem, como logo fizeram com muita alegria; porém levantando-se uma tormenta deram à costa dentro na Bahia na ilha Itaparica, onde o mesmo gentio os matou, e comeu a todos, exceto um Diogo Alvares, por alcunha posta pelos índios o Caramuru, porque lhe sabia falar a língua, e não sei se ainda isto bastaria pelo que são carniceiros, e ficaram encarniçados nos companheiros, se dele não se namorara a filha de um índio principal, que tomou a seu cargo o defendê-lo, e desta maneira acabou Francisco Pereira Coutinho com todo o seu valor, e esforço, e a sua capitania com ele.