História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/II/X
Razão tinha / se tivera perfeito uso dela / o gentio desta capitania para não se inquietar, e inquietá-la com a ausência de Duarte Coelho, pois ficava em seu lugar sua mulher d. Beatriz de Albuquerque, que a todos tratava como filhos, e Jerônimo de Albuquerque seu irmão, que assim por sua natural brandura, e boa condição, como por ter muitos filhos das filhas dos principais, os tratava a eles com respeito. Mas como é gente que se leva mais por temor, que por amor, tanto que viram ausentes o que temiam, começaram a fazer das suas, matando, e comendo a quantos brancos e negros seus escravos encontravam pelos caminhos, e o pior era que nem por isto deixavam de lhes vir a casa com seus resgates, dizendo que eles o não faziam, senão alguns velhacos, que haviam mister bem castigados.
Muito dava isto em que entender a Jerônimo de Albuquerque por não saber que conselho tomasse, e assim chamou a ele os oficiais da Câmara, e outras pessoas que o podiam dar, e juntos em sua casa lhes perguntou o que faria, começou logo cada um a dizer o que sentia, e os mais foram de parecer que os castigassem, e lhes fizessem guerra, mas não concordando no modo dela, se desfez a junta sem resolução do caso, e se foi cada um para sua casa, só ficaram alguns, que melhor sentiam, e entre eles um chamado Vasco Fernandes de Lucena, homem grave, e muito experimentado nesta matéria de índios do Brasil, que lhes sabia bem a língua, e as tretas de que usam, o qual disse ao governador que não era bem dar guerra a este gentio sem primeiro averiguar quais eram os culpados, porque não ficassem pagando os justos pelos pecadores; e que ele / se lhe dava licença / daria ordem e traça com que eles mesmos se descobrissem, e acusassem uns aos outros, e sobre isso ficassem entre si divisos, e inimigos mortais, que era o que mais importava; porque todo o reino em si diviso será assolado, e uns aos outros se destruíram sem nós lhes fazermos guerra, e quando fosse necessário fazer-lha, nos ajudaríamos do bando contrário, que foi sempre o modo mais fácil das guerras, que os portugueses fizeram no Brasil, e para isto mandasse logo ordenar muitos vinhos, e convidar os principais das aldeias, para que os viessem beber, e no mais deixasse a ele o cargo.
Pareceu isto bem aos que ali estavam, e o governador encomendando-lhes o segredo como convinha, mandou fazer os vinhos, e eles feitos mandou chamar os principais das aldeias dos gentios, e tanto que vieram os mandou agasalhar pelos línguas, ou intérpretes, que o fizeram ao seu modo bebendo com eles, porque não suspeitassem ter o vinho peçonha, e o bebessem de boa vontade, e depois que estiveram carregados, lhes disse Vasco Fernandes de Lucena que o governador os mandava chamar porque determinava ir fazer guerra aos Tobayoyas (Tobayáras?), que eram outros gentios seus contrários, o que não queria fazer sem sua ajuda; porém como entre eles havia .alguns velhacos, como eles mesmos confessavam, que ainda em sua presença matavam, e comiam os portugueses, e os seus escravos, que achavam pelos caminhos, se receava que em sua ausência viriam a suas casas a matar suas mulheres e filhos, pelo que era necessário, antes que se partissem, saber quem eram estes para os castigar, e premiar os bons; e como eles / deve de ser pela virtude do vinho, que entre outras tem também esta / nunca falam verdade, senão quando estão bêbados, começaram a nomear os culpados, e sobre isto vieram às pancadas, e flechadas, ferindo-se, e matando uns aos outros, até que acudiu o governador Jerônimo de Albuquerque, e os prendeu; e depois de averiguar quais foram os homicidas dos brancos, uns mandou pôr em bocas de bombardas, e dispará-las à vista dos mais, para que os vissem voar feitos pedaços, e outros entregou aos acusadores, que os mataram em terreiros, e os comeram em confirmação da sua inimizade, e assim a tiveram daí avante tão grande como se fora de muitos anos, e se dividiram em dois bandos, ficando os acusadores com os seus sequazes, que era o maior número, onde dantes estavam, da vila até a mata do pau-brasil, por onde tiveram os portugueses lugar de se alargarem por esta parte, e fazerem seus engenhos, e fazendas, assim na várzea de Capiguaribe, que é a melhor de toda esta capitania, como em todo o espaço, que há até a vila de Iguaraçu; e a gente dos culpados, e acusadores, se passou para as matas do cabo de Santo Agostinho, louvando aos portugueses que haviam feito justiça.
Porém de lá vinham fazer tanta guerra a estoutros nossos amigos de uma grande cerca, que fizeram nos outeiros, que cercam a várzea de Capiguaribe da banda do sul, chamados Guararapes, que foi necessário ao capitão-mor Jerônimo de Albuquerque ir dar nela com os brancos, que pôde ajuntar, e mais de dez mil de estoutros índios, que para isto se lhe ofereceram de boa vontade, e como eram tantos, e os da cerca 600 flecheiros, com muita confiança remeteram a ela, e a acometeram por todas as partes, parecendo-lhes que já a tinham ganhada, mas os de dentro, como andavam mais resguardados, se defenderam, e os ofenderam de modo matando e ferindo tantos, que foi forçado aos capitães, depois de muitas horas de peleja, mandá-los recolher para uma caiçara, ou cerca de rama, que fizeram 25 braças afastada da dos contrários, e houve toda aquela noite grande jogo de pulhas, e bravatas de parte a parte, como costumam: dizendo, todavia, os contrários sempre que não o haviam com os brancos, antes queriam sua amizade, senão com os índios, e assim o mostraram o dia seguinte, porque estando os nossos portugueses, e índios muito descuidados, cuidando que não os viriam buscar, eles com um socorro de duzentos flecheiros, que lhes veio de outra aldeia, saíram com tanta pressa, e os cometeram com tanta fúria, que a muitos não deram lugar para tomar armas, e sem elas, e sem ordem alguma lançaram a fugir, tirado o capitão-mor Jerônimo de Albuquerque, que se foi retirando com os portugueses ordenadamente, mas não tanto a seu salvo que lhe não quebrassem um olho com uma flecha naquela primeira remetida, que depois não quiseram segui-los senão aos negros, que iam fugindo, nos quais fizeram grande destruição, e matança, de que depois se vingaram indo com Duarte Coelho de Albuquerque, que por morte de seu pai veio com seu irmão Jorge de Albuquerque a governar esta sua capitania, e foi dar guerra a este gentio do cabo, como a seu tempo contaremos.