História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/IV/XIII

No fim de fevereiro seguinte vieram cartas ao ouvidor-geral Martim Leitão de haver por bem servido no que fazia na povoação da Paraíba, e ordem para que se pagassem todos os gastos, as quais trouxe um capitão espanhol coxo chamado Francisco de Morales, com cinqüenta soldados também espanhóis, e para recolher a si os que cá ficaram de Francisco Castejon, que foi grande bem ainda, que disso se não conseguiu efeito pelo capitão ser em tudo de mui pouco, o qual se partiu de Pernambuco a 2 do mês de abril seguinte para na Paraíba haver de estar a obediência de João Tavares, capitão do forte, conforme a sua patente, e todos a do ouvidor-geral; mas o coxo tanto que lá chegou deitou João Tavares fora do forte, e os portugueses, tratando-os de maneira que alvoroçou tudo, e amotinou o gentio das aldeias, que todos os dias se ia queixar a Pernambuco, e sobre o avisarem que parecia mal tomar o forte a quem tinha dado homenagem dele, e que lho tornasse, se desentoou em palavras com o ouvidor-geral, esquecido de sua obrigação, e de quanto gasalhado e mimos lhe havia feito em Pernambuco; e assim se enfrestou logo com ele, e com a Câmera, e com todos os portugueses, que houve muitos requerimentos o tirassem de lá, e o mandassem a el-rei, por muitos excessos, que sempre nele foram crescendo, ajudado dos ruins conselhos, que lhe mandavam de Pernambuco inimigos do ouvidor-geral, que por inveja dos seus bons sucessos o queriam infamar, assim cá como no reino, o que tudo o ouvidor foi passando, e dissimulando até o fim de setembro do dito ano, porque aos vinte e sete dias dele lhe vieram novas da Paraíba, e cartas que avisaram serem chegadas à baía da Traição cinco naus francesas com muita gente, e munições, determinados a se ajuntarem com os Potiguares para combaterem, e assolarem o forte da Paraíba, com as quais cartas vinha um grande requerimento do capitão Morales, e moradores, e assim ao mesmo ouvidor, como ao capitão de Pernambuco, e Câmera os fossem socorrer.

Recebido este requerimento, fez logo Martim Leitão ajuntar no colégio o capitão de Pernambuco, Câmera, oficiais da Fazenda, e os mais nobres e ricos da terra, onde por todos foi assentado que por não crescer mais aquela ladroeira, e sair dali algum grande exército de franceses, que junto com os Potiguares destruíssem o que estava ganhado da Paraíba, convinha acudir-lhe, e que ninguém o podia fazer senão ele, como dantes tinha feito; e assim todos juntos lho pediram, e requereram em nome de el-rei, e ele aceitou, ordenando logo que se aprestassem duas naus, que não estavam mais no porto, e alguns caravelões, em que fossem 150 homens de peleja, fora os do mar, e alguma gente de cavalo por terra, que se ajuntariam com os que estavam na Paraíba, para que lhes dessem por terra, e por mar uma boa guerra, porque estando-se os navios concertando, e as mais coisas necessárias, chegou nova que Francisco de Morales se queria vir da Paraíba, lhe escreveu Martim Leitão tal não fizesse, e que chegando lá o acomodaria, e serviria em tudo, como sempre fizera, e quando de todo em todo se quisesse vir neste tempo não trouxesse os soldados de el-rei; mas nada bastou para deixar de se vir, e trazer os soldados de el-rei, e persuadido de alguns de Pernambuco, invejosos, e inimigos do ouvidor-geral, largou o forte, e se perdeu e estragou na vila de Olinda até se ir para o reino, e porque a 20 de outubro se soube haverem chegado mais à baía da Traição outras duas naus, que eram já sete. Pelo que se requeria melhor recado se tomou mais uma, que chegou do reino, e posta a monte, provida de xareta, e fortalecida para poder sofrer a artilharia como as outras até a entrada de dezembro, se puseram a pique todas três naus mercantes, e dois bons caravelões ou zabras, de que eram capitães Pero de Albuquerque, Lopo Soares, e Tomé da Rocha, Pero Lopes Lobo, capitão da ilha de Itamaracá, e Álvaro Velho Barreto.

Ordenado isto, foi o ouvidor-geral até o engenho de Filipe Cavalcante, que é sete léguas da vila de Olinda, com 25 homens de cavalo bons, e despedindo-os dali para a Paraíba se tornou para a vila a embarcar, prometendo-lhes primeiro seria com eles na semana seguinte; e assim se foi logo ao Recife, onde estiveram embarcados 13 dias, sem poderem partir com tão grande tormenta de nordeste, que dentro do rio se desamarrou uma nau, e deu à costa; e temendo o ouvidor-geral a tardança, quis mandar um caravelão com aviso a Paraíba, e eram tais os nordestes, que o levaram sem remédio além do cabo de Santo Agostinho à ilha de Santo Aleixo.

Com este trabalho e estando todos pasmados, e o ouvidor-geral atribulado de não poder fazer viagem, chegou Mauro de Resende com grandes requerimentos; e protestos de largarem todos tudo, se o ouvidor-geral não era lá até o dia de S. Tomé, por estarem todos assombrados da muita gente francesa, e Potiguares, que quatro dias havia tinha dado em uma aldeia das nossas fronteiras, cujo principal era Assento de Pássaro, o melhor índio dos nossos, onde mataram mais de oitenta pessoas, e dois Castelhanos, com o que se davam todos por perdidos; pelo que o ouvidor-geral, vendo que o tempo lhe não dava lugar a ir por mar, determinou ir por terra, dizendo aos mais que o seguissem, se partiu quase só de madrugada, e no rio Tapirema, que são nove léguas de Olinda, se achou ao segundo dia com alguns trinta e dois homens, com os quais seguiu avante, que por ir assim, e os homens despropositados para o acompanharem, por terra o seguiram somente estes, e com eles chegou à nossa povoação da Paraíba, a que os moradores chamam cidade de Nossa Senhora das Neves, aos 23 de dezembro, véspera da véspera do Natal, onde se começou logo a pôr em ordem, e aviar para haver de partir no dia seguinte, como partiu, caminho da Copaíba, onde teve por novas que estava todo o gentio, e alguns franceses fazendo-lhes pau-brasil para a carga das naus, porque estorvar-lha era a maior guerra, que podia fazer assim a uns como a outros.